Pás-coa

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Nada mais aconteceu depois que eu joguei a pá suja de barro no porta-malas do santana quantum cinza desbotado. Minhas mãos doíam, pra variar. O silêncio fúnebre do meio do mato parecia invadir os meus ouvidos como se fosse alguma espécie de pressão.

Aquela terra parecia abandonada por toda forma de vida, como sem um ranço maligno afastasse os seres vivos de lá. Fechei o porta-malas e o som pareceu tão estrondoso quanto um trovão. Entrei no carro e dei partida no motor, quando os faróis se acenderam meus olhos doeram, era a primeira vez que via luz em algumas horas.

Noite de merda.

Acendi uma cigarrilha Café Crème, que é quase um charuto e me senti como Clint Eastwood interpretando um personagem sem nome num faroeste italiano.

Aliás, aquele dia não tinha sido diferente de um filme desses. Era sexta-feira "santa" e eu não queria que ninguém ressuscitasse no terceiro dia.

A fumaça invade meu pulmão e a falta de oxigênio me causa um torpor que relaxa por poucos segundos. O resto da experiência é apenas o burro ato de conseguir desenvolver câncer no futuro.

Depois de dirigir por uns vinte minutos paro à beira de um riacho. Abro o porta-luvas e por justiça poética retiro um par de luvas de couro as quais calço, e somente depois pego o revólver calibre 38, verificando se todas as cápsulas, agora vazias, ainda estão dentro do tambor, o que se confirma.

Trago.

Atiro o revólver dentro do rio, de encontro aos peixes. Justamente no dia em que tradicionalmente as pessoas comem peixe nesse país cheio de tradições hipócritas.

O que é engraçado que apesar de tudo hoje eu não comi carne. Na verdade, hoje eu não comi nada. Será que isso caracteriza um jejum?

A minha sexta-feira nefasta chegava ao fim, e seria seguida por um sábado de tristeza e ranger de dentes, trancado no meu escritório picando papéis.

Esses idiotas sem experiência pensam que só picotar um documento resolve. Muita gente pensa que eu tenho um liquidificador no meu escritório para fazer drinks, quem sabe até mesmo um suco. Mas ele fica num canto empoeirado para momentos de desespero como esse.

Pego água do bebedouro, e os documentos vão para dentro do liquidificador.

Você deve estar pensando que eu tenho medo da polícia. Isso me faz rir. Seria inocente ter medo de funcionários públicos mal-pagos que odeiam o trabalho que fazem. Policiais não resolveriam esse caso mesmo que eu jogasse as pistas na cara deles, mesmo que eu tivesse picotado esses documentos em apenas duas partes.

Agora, quando a história envolve os nomes certos, e a quantidade de dígitos correta eu já vi constituírem documentos queimados. Sim, queimados.

Quero ver reconstituir um documento liquidificado. Quero ver transformarem essa gosma cinza que se forma no copo do aparelho. Quero ver resgatarem isso da tubulação de esgoto.

É tão perfeito que é quase como se não tivesse existido.

Se as pessoas soubessem como é fácil se livrar de um crime neste país, elas não dormiram a noite. Elas repousam suas cabeças no travesseiro acreditando que ao discar 190 uma viatura com profissionais de segurança-pública bem treinados virão ao seu socorro...

Isso é inocência. Quase tão inocente quanto acreditar nesses programas que prometem apagar um arquivo definitivamente do seu computador. É por isso que eu tenho um laptop frondoso no meu escritório, em posição de destaque com Gigas e Gigas de pornografia criptografada para chamar atenção de quem se meter a procurar alguma coisa por aqui.

Imagino a cara de um nerd ao terminar seu trabalho e vendo um belo vídeo do Kid Bengala. Mas espero que isso nunca venha acontecer. Os únicos que conhecem meus segredos são os leitores dessa história.

E que segredos podem ser guardados sobre uma narrativa onde nada acontece?

É meia-noite e eu estou num motel desacompanhado. Um motel a cada noite, evitando repetir sempre que posso. Sem informar a ninguém onde estou dormindo. Pagamento em dinheiro, sem rastros, sem interação humana. Carros alugados.

Eu sou um fantasma vagando pelo mundo, sem tocar ninguém, sem ser visto. Uma assombração.

Só espero que ninguém ressuscite no domingo.

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