X - PRIMEIRA PARTE

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X

O portão ficava a uns trinta passos da casa que se erguia no centro de vasto jardim inglês.

Todas as janelas do primeiro pavimento estavam abertas e despejavam cortinas de luz, que tremulavam nas águas do tanque e na folhagem verde agitada pela brisa.

As visitas foram conduzidas pelo criado ao salão, onde apenas se achava D. Firmina Mascarenhas, e o Torquato Ribeiro, com quem o velho trocou algumas palavras no vão de uma janela, enquanto Seixas sentado junto ao sofá aguardava o terrível momento.

Ouviu-se um frolido de sedas, e Aurélia assomou na porta do salão.

Trazia nessa noite um vestido de nobreza opala, que assentava-lhe admiravelmente, debuxando como uma luva o formoso busto. Com as rutilações da seda que ondeava ao reflexo das luzes, tornavam-se ainda mais suaves as inflexões harmoniosas do talhe sedutor.

Como que banhava-se essa estátua voluptuosa, em um gás de leite e fragrância.

Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas, borbotavam em cascatas sobre as alvas espáduas bombeadas, com uma elegante simplicidade e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o imite, e que só a própria natureza incute.

Via-se bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um fardo, talvez o espólio de um crânio morto, jogo cruel que a moda impõe às moças vaidosas. O que ela ostentava era a coma abundante de que a toucara a natureza, como às árvores frondosas; era a juba soberba de que a galanteria moderna coroou a mulher como emblema de sua realeza.

Cingia o braço torneado, que a manga arregaçada descobria até a curva, uma pulseira também de opalas, como eram o frouxo colar e os brincos de longos pingentes que tremulavam na ponta das orelhas de nácar.

Com o andar crepitavam as pedras das pulseiras e dos brincos, formando um trilo argentino, música do riso mavioso que essa graciosa criatura desprendia de si e ia deixando em sua passagem, como os harpejos de uma lira.

Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não ser ela quem avançava; mas os outros que vinham a seu encontro, e o espaço que ia-se dobrando humilde a seus pés, para evitar-lhe a fadiga de o percorrer.

Se Aurélia contava com o efeito de sua entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança; porque os olhos do mancebo, nublados por um súbito deslumbramento, não viram mais do que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no sofá.

A moça porém não carecia dessas ilusões cênicas. Aquela aparição esplêndida era em sua existência um fato de todos os dias, como o orto dos astros. Se sua beleza surgia sempre brilhante no oriente dos salões, assim conservava-se toda a noite, no apogeu de sua graça.

O Lemos, vendo entrar sua pupila, foi-lhe ao encontro e acompanhou-a até ao sofá:

- Aurélia, tenho a honra de apresentar-lhe o Sr. Seixas.

A moça correspondeu com uma leve inclinação da fronte à cortesia de Seixas, a quem estendeu a mão, que ele apenas tocou. Ainda neste momento o moço não conseguiu de si fitar a pessoa que tinha em face.

Esse rosto desconhecido incutia-lhe indizível pavor: porque era a fisionomia de sua humilhação.

Aurélia para romper o enleio da apresentação começara com o tio uma dessas conversas de sala, que suprem o piano e o canto; e que não passam, como eles, de um rumor sonoro para entender o ouvido.

A extrema volubilidade com que a palavra lhe brincava nos lábios, fazia contraste com a rispidez do gesto sempre harmonioso, e com um refrangimento que por assim dizer congelava-lhe o lado do perfil voltado para Seixas.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora