IV - TERCEIRA PARTE

146 4 0
                                    

IV

Fernando dirigiu-se a seu aposento com tanta precipitação, que esqueceu-lhe o objeto fechado em sua mão; só deu por ele no toucador, ao cair-lhe no chão.

Abriu então o papel. Havia dentro uma chave; e presa à argola uma tira de papel com as seguintes palavras escritas por Aurélia: chave de seu quarto de dormir.

Ao ler estas palavras Seixas tornou-se lívido; e lançou um olhar esvairado para o reposteiro da câmara, e em que ele que entrara na véspera palpitante de amor e que não poderia nunca mais penetrar, senão ébrio de vergonha e marcado com o ferrete da infâmia.

Com o movimento que fez descobriu uma modificação que sofrera o aposento. Fora arredado o guarda-roupa, que ocultava uma porta agora patente, e apenas coberta por uma cortina também de seda azul.

A chave servia nessa porta que dava para uma alcova elegante, mobiliada com uma cama estreita de érable e outros acessórios. Era o mais casquilho dormitório de rapaz solteiro que se podia imaginar.

Seixas adivinhou pela onda de fragrância derramada no aposento, que Aurélia ali estivera pouco antes. Talvez saíra ao ouvir o rumor da chave na fechadura.

- Meu Deus! exclamou o mancebo comprimindo o crânio entre as palmas das mãos. Que me quer esta mulher? Não me acha ainda bastante humilhado e abatido? Está se saciando de vingança! Oh! ela tem o instinto da perversidade. Sabe que a ofensa grosseira ou caleja a alma, se é infame, ou a indigna se ainda resta algum brio. Mas esse insulto cortês cheio de atenção e delicadezas, que são outros tantos escárnios; essa ostentação de generosidade com que a todo o momento se está cevando o mais soberano desprezo; flagelação cruel infligida no meio dos sorrisos e com distinção que o mundo inveja; como este, é que não há outro suplício para a alma que se não perdeu de todo. Por que não sou eu o que ela pensa, um mísero abandonado da honra, e dos nobres estímulos do homem de bem? Acharia então com quem lutar!

Seixas vergou a cabeça ao peso dessa reflexão.

- A força da resignação, essa porém hei de tê-la. Não me abandonará, por mais cruel que seja a provação.

Os dias seguintes, essa fase nascente da lua-de-mel, passaram como o primeiro. Entraram então os noivos na outra fase, em que o enlevo de se possuírem já permite, sobretudo ao homem, tornar às ocupações habituais.

No quinto dia Seixas apresentou-se na repartição, onde foi muito festejado por suas prosperidades. Tomaram os companheiros aquele pronto comparecimento por mera visita. Se quando pobre, sua freqüência somente se fazia sentir no livro do ponto, agora que estava rico ou quase milionário, com certeza deixaria o emprego ou quando muito o conservaria honorariamente, como certos enxertos das secretarias.

Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição. Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às 3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho: apesar das contínuas tentações dos companheiros, não consumia como costumava outrora a maior parte dele na palestra e no fumatório.

- Olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! dizia-lhe um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade.

- Vivi muitos anos à custa do Estado, meu amigo; é justo que também ele viva um tanto à minha custa.

Outra mudança notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhes mais nobreza e elevação. Ainda seus lábios se ornavam de um sorriso freqüente; mas esse trazia o reflexo da meditação e não era como dantes um sestro de galanteria.

O casamento é geralmente considerado como a iniciação do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem perdido muito de sua importância; indivíduo há que se casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Where stories live. Discover now