IX
Seixas surpreso e agitado pela proposição da moça, refletiu um momento.
O resultado dessa reflexão foi aproximar-se da mulher, ocupada nesse momento a ver os peixinhos vermelhos do tanque fervilharem à tona d'água para devorar os bocados de um jambo com que ela os tentava.
- Estes peixes agora a divertem; disse Fernando. Se amanhã a aborrecerem, mandará que os deitem fora, e que os deixem morrer à fome?
A moça ergueu para o marido os olhos cheios de surpresa.
- Talvez nunca lhe acontecesse refletir sobre este problema social, continuou Fernando. O senhor tem o direito de despedir o cativo, quando lhe aprouver?
- Creio que ninguém porá isso em dúvida, respondeu Aurélia.
- Então entende que depois de privar-se um homem de sua liberdade, de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado em um instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar essa criatura a quem seqüestraram da sociedade? Eu penso o contrário.
- Mas que relação tem isso?...
- Toda. A senhora fez-me seu marido; não me resta outra missão neste mundo; desde que impôs-me esse destino sacrificou meu futuro, não tem o direito de negar-me o que paguei tão caro, pois o paguei a preço de minha liberdade.
- Essa liberdade, eu a restituo.
- E pode restituir-me com ela o que perdi alienando-a?
- Receia talvez o escândalo que produzirá o divórcio. Não há necessidade de publicarmos nossa resolução; podemos viver inteiramente estranhos um ao outro na mesma cidade, e até na mesma casa. Se for preciso, temos o pretexto das viagens por moléstia, da mudança de clima, do passeio à Europa.
- A senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação é obedecer-lhe, como seu servo, contanto que não lhe falte com o marido que a senhora comprou.
Aurélia fitou no semblante de Seixas um olhar soberano:
- Acredita que eu possa mudar de sentimentos para com o senhor?
- Não tenha esse receio. Se eu não estivesse convencido que o amor entre nós é impossível, não estaria aqui neste momento.
Estranho sorriso iluminou a fronte de Aurélia, que vibrou com um gesto de sublime altivez.
- Qual é então o motivo por que não aceita o que lhe ofereço?
- O que a senhora me oferece custou-lhe cem contos de réis, e receber esmolas desse valor é roubar ao pródigo que as deita fora.
- Como quiser! disse Aurélia desdenhosamente. O senhor pensa decerto que sua presença me incomoda, e por isso lhe sorri a idéia de impô-la como uma contrariedade. Engana-se; pode ficar; não era por mim, mas por si mesmo que oferecia-lhe a separação. Rejeita-a? Melhor; não poderá queixar-se pelo que venha a acontecer.
Apesar da recusa de Seixas, suas relações com Aurélia tornaram-se desde aquela tarde mais esquivas. A moça já não caprichava como nas primeiras semanas em passar a maior parte do tempo na companhia do marido. Este de seu lado, receando tornar-se importuno, conservava-se arredio enquanto a mulher não manifestava o desejo de tê-lo perto de si.
Dias houve em que não se viram. Seixas saía muito cedo para a repartição; Aurélia ia jantar com alguma amiga; só no outro dia às 4 horas da tarde se encontravam de novo.
Essas tardes em que Fernando ficava sozinho em casa, pois D. Firmina acompanhava Aurélia, ele as aproveitava para ir ver a mãe, que ainda habitava na mesma casa da Rua do Hospício.
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Senhora ♥ José de Alencar ♥
RomanceCaí no Enem! Siga o meu perfil ♡ Senhora é um romance urbano do escritor brasileiro José Martiniano de Alencar, publicado em 1874, na forma de folhetim. É um dos últimos romances de Alencar, publicado três anos antes da morte do escritor. Da mesma...