III - QUARTA PARTE

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III

As partidas de Aurélia, ou recepções, como as chamava o Alfredo Moreira, à parisiense, eram das mais brilhantes que então se davam na Corte.

Sem galopes infernais e as extravagantes figuras que fazem das quadrilhas e valsas um perfeito corrupio de idos ou um remoinho de gente tocada da tarântula, reinava ali sempre uma animação de bom gosto que excitava o prazer e derramava a alegria sem amarrotar as moças, nem espremer as damas entre os cavalheiros.

Aurélia descobrira um meio engenhoso de obter este resultado. Quando os rapazes que deviam dar o tom à reunião, se retraíam com fingidas esquivanças, e não se apressavam em tirar pares e trazê-los ao meio da sala, a dona da casa anunciava a quadrilha dos casados.

Essa quadrilha, como o nome indica, era dançada unicamente pelos maridos com suas mulheres. Ninguém escapava; não se admitia insenção alguma, nem de idade, nem de moléstia. Aurélia era inflexível, e não havia resistir à sua doce tirania. Se ela tinha desses caprichos despóticos e impertinentes, possuía em compensação um tacto superior para cativar a todos com sua fina e graciosa amabilidade.

O disparate das idades e a obrigação do galanteio entre as duas caras-metades, às vezes tão desencontradas, servia de divertimento geral, até aos próprios velhos reumáticos. As matronas gostavam interiormente desta fantasia que as remoçava, embora deitassem sua cafanga, como exigia a decência.

O mais apreciado porém era a pirraça feita aos rapazes, que além de ficarem de fora e perderem os lindos pares escolhidos entre as senhoras casadas, sofriam de ricochete os amuos das meninas solteiras, aborrecidas por não dançarem e obrigadas a fazer o papel de tias, ocupando o lugar das mães que tinham tomado os seus.

Disso resultava que os rapazes com receio da tal quadrilha jarreta, desenvolviam uma atividade exemplar à primeira arcada da rabeca, e entretinham constante animação na sala, sem que Aurélia se incomodasse em rogar a esses meus senhores o especial obséquio de dançar.

A Lísia Soares dizia que essa invenção não passava de um disfarce de Aurélia para dançar com o marido, de quem andava cada vez mais namorada; a tal ponto que dava-se a esses desfrutes.

Aparecera nessas partidas Eduardo Abreu, a quem os camaradas desde muito não viam na sociedade. Aurélia acolheu-o com afetuosa distinção, e reservava-lhe sempre uma de suas quadrilhas tão disputadas pelos inúmeros admiradores.

Acabava de dançar com ele, e passeava pelo salão ao seu braço. O Alfredo Moreira, com esse espírito de restilo que fornece a vida leviana aos leões de sala, vendo-os passar, disse para um companheiro:

- Retrospecto sentimental!

- Não entendo a charada, tornou-lhe o outro.

- Não sabes que o Abreu teve uma paixão estrepitosa pela Aurélia, e fez as maiores loucuras para casar-se com ela?

- Já percebo.

- Ela recusou o casamento porque amava o Seixas; mas agora que está casada com este, é muito capaz de transportar o amor para o jovem lírio abandonado.

- O jeito é disso!

Este trecho de diálogo travou-se na alameda artificial, que em noites de reunião, se dispunha ao longo da sala de jantar com palmeiras, acácias e magnólias plantadas em vasos de louça e caixas de madeira.

Fernando que se havia refugiado um instante naquele recanto, e fumava sentado em um sofá rústico à sombra de um plátano, ouviu a maledicência dos dois leões. Buscando com os olhos o alvo do remoque, viu sua mulher que falava ao cavalheiro com uma insistência meiga e sedutora, que lembrou-lhe a época de seus primeiros amores.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Donde viven las historias. Descúbrelo ahora