VIII - QUARTA PARTE

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VIII

Aurélia continuou com os olhos fitos nas alvas pétalas aveludadas de um jasmim do Cabo:

- O recato é o mais puro véu de uma senhora. Feliz aquela que vive à sombra do zelo materno, e só a deixa pelo doce abrigo do amor santificado. Sua virtude tem como esta flor a tez imaculada, e o perfume vivo. Essa ventura não me tocou; achei-me só no mundo sem amparo, sem guia, sem conselho, obrigada a abrir o caminho da vida, através de um mundo desconhecido. Desde muito cedo vi-me exposta às suspeitas, às insolências e às vis paixões; habituei-me para lutar com essa sociedade, que me aterra, a envolver-me na minha altivez, desde que não tinha para guardar-me o desvelo de uma mãe ou de um esposo.

A expressão tocante e melancólica da moça ao proferir estas palavras comoveu Seixas, que já não se lembrava de seus ressentimentos.

- Quando eu era uma menina ingênua, que não deixava a companhia de sua mãe, e nunca se achara só em presença de outro homem a não ser aquele a quem amava e, unicamente, amou neste mundo, esse homem abandonou-me por outra mulher, ou por outra cousa; e foi entrelaçar o seu nome ao de uma moça que era noiva de outrem. Mais tarde, encontrando-me só no mundo, acompanhada por uma parenta velha, mãe de aparato e amiga oficiosa, que ainda mais só me tornava, fazendo as vezes de um reposteiro, esse homem desabusado casou-se comigo sem a menor repugnância.

A moça fitou os olhos no marido:

- Confesse que os escrúpulos desse senhor e o seu pânico de escândalo vêm tarde e fora de tempo.

- Esses escrúpulos nascem da posição atual.

- Outro engano seu. Essa posição é um encargo, e não um direito. O senhor falou-me em sua honra. Penso eu que a honra é um estímulo de coração. Que resta dela a quem alienou o seu? Se o senhor tem uma honra, e eu acredito, essa me pertence; e eu posso usar e abusar dela como me aprouver.

- Assim, julga-se dispensada de guardar qualquer re-serva?

- Para o senhor e para o mundo julgo-me dispensada de tudo; nada lhes devo; o que me dão, são apenas as homenagens à riqueza, e ela as paga com o luxo e a dissipação. Sou senhora de mim, e pretendo gozar da minha independência sem outras restrições, além do meu capricho. Foi o único bem que me ficou do naufrágio de minha vida; este ao menos hei de defendê-lo contra o mundo.

- Agradeço-lhe ter me desiludido a tempo. Acreditava que sacrificando a liberdade, não renunciava à minha honra perante o mundo e não me sujeitava a ser apontado como um indigno; a senhora entende o contrário; aplaudo esta colisão; ela vem a propósito para romper uma situação intolerável, e que já durou demais para a dignidade de ambos.

- Sobretudo daquele que tendo alienado sua pessoa em um casamento livre e refletido, conserva as prendas de outra noiva.

Seixas surpreso interrogou a mulher com os olhos.

- Nunca pensei ter feito a aquisição de seu amor nem contei com a fidelidade que jurou; mas esperava do senhor ao menos a lealdade do negociante, que depois de vendida a mercadoria, não substitui por outra marca à do comprador.

Seixas não podia compreender esta alusão, cujo sentido só atinou mais tarde, quando ao entrar no gabinete viu os destroços da prenda de Adelaide. Quis pedir a explicação; mas avistou um criado que dirigia-se para ali.

- Está aí o Sr. Eduardo Abreu que deseja falar à senhora.

- Bem! disse Aurélia despedindo com um gesto o criado que afastou-se.

Seixas custou a conter-se até esse momento:

- A senhora não pode receber esse homem!

- Era minha intenção. Tinha-o recebido esta manhã pela última vez; mas à vista de sua desconfiança mudei de resolução, respondeu Aurélia friamente.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Where stories live. Discover now