III - SEGUNDA PARTE

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III

Não tardou que a notícia da menina bonita de Santa Teresa se divulgasse entre certa roda de moços que não se contentam com as rosas e margaridas dos salões, e cultivam também com ardor as violetas e cravinas das rótulas.

A solitária e plácida rua animou-se com um trânsito desusado de tílburis e passeadores a pé, atraídos pela graça da flor modesta e rasteira, que uns ambicionavam colher para a transplantar ao turbilhão do mundo; outros apenas se contentariam de crestar-lhe a pureza, abandonando-a depois à miséria.

Os olhares ardentes e cúpidos dessa multidão de pretendentes, os sorrisos contrafeitos dos tímidos, os gestos fátuos e as palavras insinuantes dos mais afoutos, quebravam-se na fria impassibilidade de Aurélia. Não era a moça que ali estava à janela; mas uma estátua, ou com mais propriedade, a figura de cera do mostrador de um cabeleireiro da moda.

A menina cumpria estritamente a obrigação que se tinha imposto, mostrava-se para ser cobiçada e atrair um noivo. Mas, além dessa tarefa de exibir sua beleza, não passava. Os artifícios de galanteio com que muitas realçam seus encantos; a tática de ratear os sorrisos e carinhos, ou negaceá-los para irritar o desejo, nem os sabia Aurélia, nem teria coragem para usá-los.

Depois de uma hora de estação à janela, recolhia-se para começar o serão da costura; e de todos aqueles homens que haviam passado diante dela com a esperança de cativar-lhe a atenção, não lhe ficava na lembrança uma fisionomia, uma palavra, uma circunstância qualquer.

No primeiro mês a investida dos pretendentes não passou de uma escaramuça. Rondas pela calçada, cortejos de chapéus, suspiros ao passar, gestos simbólicos de lenço, algum elogio à meia voz, e presentes de flores que a menina rejeitava; tais eram os meios de ataque.

Breve, porém, começou o assalto em regra; e quem abriu o exemplo foi pessoa já muito nossa conhecida, e da qual não se podia esperar semelhante desembaraço.

O Lemos, que andava sempre metido na roda dos rapazes, veio a saber do aparecimento da bisca da Rua de Santa Teresa. Entendeu o árdego velhinho, que em sua qualidade de tio, cabia-lhe um certo direito de primazia sobre esse bem de família.

Entrou na fieira, e à tarde fazia volta pela Rua de Santa Teresa para conversar um instante com a sobrinha, a quem desde o primeiro dia se dera a conhecer.

Aurélia teve grande contentamento por ver o tio. A afabilidade com que lhe falara ele, encheu-a da esperança de uma próxima reconciliação com a família.

Temendo a oposição do pundonor ofendido de sua mãe, ocultou dela a ocorrência.

Nos dias seguintes medrou a esperança da menina. A estada à janela deixara de ser-lhe intolerável; já havia um interesse que a demorava ali, a espiar o momento em que apontasse o tio no princípio da rua.

Ela que não tinha para os mais elegantes cavalheiros um pálido sorriso, achou de repente em si para seduzir o velhinho, o segredo da gentileza e faceirice, que é como a fragrância da mulher formosa.

O restabelecimento das relações entre D. Emília e o irmão interessava Aurélia mui intimamente. Assegurando-lhe um arrimo para o futuro, essa conciliação não só restituiria o sossego à mãe, como lhe pouparia a ela essa espera ao casamento, que era para a pobre menina uma humilhação.

Foi para a turba dos apaixonados arruadores grande assombro e maior escândalo, esse de verem todas as tardes, recostado insolentemente à janela de Aurélia, o rolho velhinho, conversando e brincando na maior intimidade com a menina. Ignorantes do parentesco, atribuíam essas liberdades a uma preferência inexplicável; pois o Lemos, notoriamente pobre, se não arrebentado, carecia do condão, que dispensa todas as virtudes, o dinheiro.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Where stories live. Discover now