II - TERCEIRA PARTE

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II

No centro da sala estava a mesa onde os mais finos cristais irisavam-se aos raios da luz, cambiando o esmalte da fina porcelana e as cores das frutas apinhadas em corbelhas de prata.

O almoço era um banquete, não pela quantidade, o que seria de mau gosto; mas pela variedade e delicadeza das iguarias.

Pelas janelas abertas sobre o jardim entravam, com a brisa da manhã e a claridade de um formoso dia de verão, a fragrância das flores e o trinado dos canários de um elegante viveiro.

Achavam-se na sala Aurélia e D. Firmina.

A moça recostara-se em uma cadeira de balanço no claro de uma janela, de modo que seu gracioso vulto imergia-se na plena luz. Ao vê-la radiante de beleza e risos, se acreditava que ela de propósito afrontava o esplendor do dia, para ostentar a pureza imaculada de seu rosto, e sua graça inalterável.

Trajava um roupão de linho de alvura deslumbrante; eram azuis as fitas do cabelo e do cinto, bem como o cetim de um sapato raso, que lhe calçava o pé como o engaste de uma pérola.

Fernando parou um instante ao entrar na sala; depois do que, firmando-se na resolução tomada, dirigiu-se a sua mulher para saudá-la. Todavia não calculava ele de que modo se desempenharia desse dever.

Aurélia viu o movimento. A saudação matinal do marido ia despertar suspeitas em D. Firmina.

Seixas adiantava-se. A moça ergueu-se estendendo-lhe a mão, e inclinando a cabeça sobre a espádua com uma ligeira inflexão, apresentou-lhe a face, para receber o casto beijo da esposa.

Aquela mão porém estava gelada e hirta, como se fora de jaspe. A face, pouco antes risonha e faceira, contraíra-se de repente em uma expressão indefinível de indignação e desprezo.

Fernando só reparou nessa mutação quando seus lábios roçavam a fria cútis, cuja pubescência erriçava-se como o pêlo áspero do feltro. Retraiu-se involuntariamente, embora naquela circunstância a carícia dessa mulher, de quem era marido, o humilhasse mais do que sua repulsa.

- Vamos almoçar! disse a moça dirigindo-se à mesa e acenando ao marido e a D. Firmina que se aproximassem.

Já não se via em seu belo semblante o menor traço do sarcasmo que o demudara; nem se conceberia que essa esplêndida formosura pudesse transformar-se na satânica imagem que Fernando vira pouco antes.

Aurélia tomou a cabeceira da mesa. Fernando ficou à sua direita, em frente a D. Firmina.

A princípio a moça ocupou-se unicamente em servir, depois trincando nos alvos dentes a polpa vermelha de uma lagosta, animou a conversação com uma palavra viva e cintilante.

Nunca ela tinha revelado como nessa manhã, a graça de seu espírito e o brilho de sua imaginação. Também nunca o sorriso borbulhara de seus lábios tão florido; nem sua beleza se repassara daquelas efusões de contentamento.

Seixas se distraíra a ouvi-la. Por tal modo embebeu-se ele no enlevo da gentil garrulice, que chegou a esquecer por momentos a triste posição em que o colocara a fatalidade junto dessa mulher.

Nas folgas que o apetite deixava à reflexão, D. Firmina admirava-se do desembaraço que mostrava a noiva da véspera, na qual melhor diria um casto enleio.

Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão das modas estrangeiras, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem os noivos o papel, ficando ao fraque o recato feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora