VII - SEGUNDA PARTE

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VII

Um dia, por manhã, bateram à porta de D. Emília.

Quando a viúva e a filha vieram à sala, acharam sentado no sofá um velho alto e robusto, cujo traje denotava provinciano ou homem do interior. Tinha o rosto sangüíneo e os traços duros e salientes.

Cravou ele o olhar pesado no semblante de Aurélia, sem erguer-se à chegada das senhoras. Depois de ter assim examinado a menina, com insistência desusada, volveu a vista para a viúva; reparou no vestido preto desbotado que ela trazia por casa, e tornou a descarregar os olhos torvos sobre a moça.

D. Emília, assustada com estes modos, trocou um sinal de inteligência com a filha. Ambas receavam achar-se em presença de algum louco ou ébrio; julgando-se expostas a um desacato, não sabiam que fazer.

Entretanto as lágrimas saltavam aos molhos das pálpebras do velho, que erguendo-se de supetão correu a Aurélia, e suspendeu a moça nos braços antes que ela se pudesse esquivar.

- Que é isto, senhor? Está louco? disse D. Emília levantando-se para defender a filha.

Às palavras da viúva e ao grito que soltara Aurélia, o velho recuou e quis falar; mas o soluço embargava-lhe a voz:

- Não me conhece, minha filha? Sou o pai de seu marido!

- O Sr. Lourenço Camargo?

- Ele mesmo. Não consente que abrace minha neta?

Foi Aurélia quem se lançou nos braços do velho, e este depois que a teve cerrada ao peito por algum tempo, desviou-se bruscamente, e foi sentar-se no sofá, enxugando o rosto com o grande lenço de seda enrolado em uma bola.

- É o retrato de meu Pedro. Pobre rapaz! murmurou o velho.

Depois de algumas perguntas acerca do nome e idade de Aurélia; explicou o fazendeiro a razão de ali achar-se naquele momento, reconciliado com sua nora, e pesaroso do modo por que se portara com ela.

Na estalagem ou rancho em que falecera, deixou Pedro Camargo sua maleta. Guardou-a o dono da casa com tenção de levá-la à fazenda ou mandá-la pelo primeiro portador. Por lá ficou anos até que pairou aí por acaso um formigueiro, nome que dão ao indivíduo perito em destruir o inseto daninho que devora as roças.

Esse de que se trata ia à fazenda do Camargo oferecer os seus serviços, e incumbiu-se de levar a mala. Ao recebê-la, avivaram-se ao fazendeiro as saudades do filho; enxugou os olhos, e mandou acender uma fogueira no terreiro para queimar os objetos que haviam pertencido ao morto.

Enquanto se cumpria sua ordem, abriu ele próprio a maleta, e tirou uma por uma as peças enxovalhadas, um pequeno estojo de toucador, e outras cousas de uso comum. No fundo havia um volume envolto em papel e atado com uma fita preta.

Continha as fotografias de Pedro Camargo, da mulher e dos dois filhos; a certidão de casamento e as de batismo dos dois meninos, e finalmente uma carta sem sobrescrito dirigida ao fazendeiro.

Essa carta de data muito anterior ao falecimento indicava que Pedro Camargo tinha a princípio pensado em suicidar-se, e se preparara para levar a efeito esse desígnio, escrevendo ao pai a fim de implorar-lhe o perdão de sua falta.

Depois de fazer a confissão do casamento que havia ocultado só pelo receio de afligir ao pai, suplicava-lhe que protegesse sua viúva e aqueles órfãos inocentes, que eram seus netos, e que o haviam de substituir, a ele Pedro, no amor e na veneração.

Lendo essa carta, Lourenço Camargo afigurou-se receber as últimas palavras do filho; e lembrou-se quanto fora injusto duvidando da realidade desse casamento de que ali tinha a prova irrecusável.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora