1.Adelia

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Ele dorme com a cabeça recostada entre meus seios, está tão cansado que sequer desperta quando o empurro para o lado. 

Anos atrás teria me apoiado na beirada da cama para admirá-lo. É um homem lindo. O cabelo castanho claro sempre arrumado, a pele uniforme, as mãos de quem raramente entra em contato com asperezas e dedos experientes que sabem exatamente quando e onde tocar.

Possuí a voz grave, nem o excesso de confiança no tom o deixa menos atraente. Até a respiração  de William me parece bonita e mesmo após uma década de relacionamento não havia ali nada materialmente desagradável, exceto o caráter. O meu amado não vale nada.

Não valia nada quando o conheci no carnaval de Veneza e continua com a índole moldada do nono círculo do inferno dantesco, mas diferente dos traidores condenados ele não experimenta amarguras.

— William, levante. Há de tardar para visitar seu futuro sogro. —

Seguro as cordas do espartilho recém encontrado com a mão esquerda enquanto o sacudo violentamente com a direita. Minha vontade é de lhe arrancar a carne do rosto com as unhas.

Lembro de quando anunciei as núpcias muito tempo atrás. Ele teve uma explosão de ira que transformou em lixo metade do meu mobiliário, agora finalmente bebo do mesmo veneno. 

William se coloca de pé e para minha fúria o seu humor segue leve.

Compreensível, em pouco tempo estará face a face com a mais inspiradora das musas: dinheiro.

A noiva é filha única de John Watson, o banqueiro, tão rico quanto a rainha. Já a mocinha acabou um tanto prejudicada por falatórios maliciosos, a alcunha de "anjo caído" e a fama da mãe, porém saiu rica o bastante para não ser ignorada e conseguir um bom casamento. 

É engraçado porque o objetivo de Watson sempre foi laçar alguém da nobreza, mas ninguém mandou o sujeito investir porcamente no que poderia garantir acesso a única parte do mundo que ficou livre de sua ganância: reputação ilibada. 

Nenhum Watson fica longe de escândalos, eram lendários pela beleza, fortuna e escândalos. O velho não estava tão desesperado por título ao ponto de sacrificar um bom negócio juntando a filha com algum duque falido. 

Will beija-me ambas mãos e toma o cordão do espartilho para apertá-lo. Sabe do meu gosto melhor que minha criada e diferente dela não tem receios ao me ajudar a colocar ou tirar a roupa. Arfo e por pouco não me viro para impedi-lo de ir embora. 

 — Vai usar isso sem a chemise? — que cuidadoso, quem não o conhece realmente acredita nessa 'nobreza' ensaiada em salas de estudo com preceptores estrangeiros.

— Deveria cuidar da própria vida, acabará perdendo a noivinha por não calçar as botas a tempo— Cortei sem meandros.

— Vai pro inferno, Adelia. Uma palavra sua e termino com todos os arranjos. —  me vira de frente num movimento brusco  que deixa meu braço dolorido, mantendo nossos corpos perfeitamente alinhados. Tem os olhos azuis postos nos meus — Casaria comigo, Sra. Needham? — pressiona por saber a reposta e ainda assim não deixa de perguntar, sufocante.

— Claro que não. Sua mãe faria da minha existência um inferno e você não gosta do meu filho — 

— Então deixe de reclamar, já tenho trinta anos, preciso e vou casar.  Poupa-me, nem você gosta do seu filho. Nunca o visita, mandou-o para Alemanha. Duvido até que ele saiba falar inglês. — 

Assim como havia beijado minhas mãos, beijou meus lábios e testa. 

— Estúpido— resmungo sem devolver a afronta ou as carícias, William não mente em nada. É difícil gostar de uma criança que veio sem aviso, fruto de anos infelizes e que herdará todo patrimônio que multipliquei antes da minha morte. 

Nesse caso devo pedir para deter o casamento e assumir os riscos? Detesto a ideia de precisar dividir o que me pertence, entretanto, casamento não faz parte de meus planos. Gosto da vida que levo, abomino a mãe que ele tem e me parece impensável pedir que um homem se livre de todos e esqueça as obrigações. Terei que aguentar e torcer para a esposa ser uma burra apática. 

Três horas depois, quando já estou conformada, minha criada bate anunciando a entrada. Entrega um bilhete de William com os seguintes dizeres:

Minha primavera,

Antes e após as núpcias virei te ver. Lamento não poder levá-la também para lua de mel.

Ass. William Blake, seu eterno apaixonado.



⁜ 


𝐵𝑒𝑚 𝑣𝑖𝑛𝑑𝑜𝑠, 𝑒𝑠𝑝𝑒𝑟𝑜 𝑞𝑢𝑒 𝑔𝑜𝑠𝑡𝑒𝑚 𝑑𝑎 𝑙𝑒𝑖𝑡𝑢𝑟𝑎! 

ARSÊNICO (em andamento, repostando)Where stories live. Discover now