6.Ava

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Não fui convidada para o casamento de Pauline Watson, uma amiga de longa data e por mais que isso me incomode, não considero nenhuma surpresa. É injusto e degradante que muitos espaços me sejam negados.

Quanto a Pauline, ela não elegeu nem o marido, que dirá a lista de convidados.

Papai tenta compensar essas agressões cotidianas com vestidos, joias, viagens e regalias, entretanto, isso não basta, fica sempre um gosto amargo de algo que não aprendi a colocar em palavras e que ainda assim me derruba — ou tenta.

A minha fisionomia me torna como água e óleo dentro da sociedade inglesa. Ouço cochichos intermináveis mesmo quando faço breves visitas e isso transforma a maioria das saídas num trabalho hercúleo.

Mamãe era indiana e saí um retrato vivo: grandes olhos castanhos, pestanas longas, maçãs do rosto proeminentes, cabelos grossos escuríssimos e pele marrom dourada. Sou bonita, muito mais do que gostariam, só que não me misturo. 

Sinto falta dela.



Chegar a nada modesta propriedade Hornsey toma duas horas dentro da carruagem e custa uma mudança nos planos do cocheiro Tom e da Sra. Davies, responsável pela limpeza dos quartos e da sala de jogos. Precisaram me acompanhar até a nova residência de Pauline. Papai não tolera que eu ande só, ainda mais tão longe.

De muito longe pude ver o teto e parede brancos a despontar entre uma imensidão verde . A arquitetura do lugar imitava colunas jônicas, como se o palácio de Buckigham e o Parthenon tivessem virado um só.

O isolamento é o preço pago para estar próximo do campo e longe dos pobres, mas William Blake jogou duríssimo. O que ele queria afinal? Papai tem uma propriedade bem localizada e menos inexpugnável.

Meus acompanhantes esperam do lado de fora, numa sombra próxima a fonte circular espalhafatosa, pois a água jorra pelos lados através das asas de um arcanjo nu. Isso faz a Sra.Davies corar e ralhar comigo quando viro para dar outra olhadinha.

Entro só. A Sra. Blake, sogra de Pauline, não troca mais que cinco palavras após minha presença ser anunciada, manda suba até o quarto principal.

Sou recebida por uma recém casada de cabelos soltos, roupa de dormir e rosto inchado, como se tivesse chorado a noite inteira.

Segura minhas mãos ternamente, puxando-me para dentro. O barulho da chave girando entrega que ela opta por conversar de portas trancadas. Não me lembro disso ter acontecido noutra ocasião, nem na que acabamos embriagadas o suficiente a ponto de querermos nadar no inverno.

Inesperadamente e sem aviso anterior Pauline recosta a cabeça na penteadeira de madeira escura e chora, as lágrimas caem sobre o papel manchando a correspondência de tinta.

Ainda consigo ler o nome do remetente quatro palavras: 1- Russell, 2- querido , 3- embora, 5-daqui.

Puxo a carta sem sequer averiguar o escrito, não importa. Na falta do fogo para destruir a prova apago as palavras comprometedoras virando o tinteiro em cima.

Não fui impedida, ela ficou letárgica.

— Russell não sabe ler — Faltam muitas coisas nele: posses, nome, traquejo social, a mão direita. — Não podes danar a chamá-lo de querido em lugar diferente do pensamento. E escapar? Morrerão os dois. De tiro ou de fome. —

— Não pode, não pode, não pode. Era "querido amigo", Ava. A Sra.Smith poderia ler para ele.Devo fingir que nunca tive amigos porque me casei? Sinto falta dele e de casa. Nada disso tem o menor sentido. Existe alguma coisa que podemos de fato fazer além de comer, defecar e morrer? —

ARSÊNICO (em andamento, repostando)Where stories live. Discover now