Não fui convidada para o casamento de Pauline Watson, uma amiga de longa data e por mais que isso me incomode, não considero nenhuma surpresa. É injusto e degradante que muitos espaços me sejam negados.
Quanto a Pauline, ela não elegeu nem o marido, que dirá a lista de convidados.
Papai tenta compensar essas agressões cotidianas com vestidos, joias, viagens e regalias, entretanto, isso não basta, fica sempre um gosto amargo de algo que não aprendi a colocar em palavras e que ainda assim me derruba — ou tenta.
A minha fisionomia me torna como água e óleo dentro da sociedade inglesa. Ouço cochichos intermináveis mesmo quando faço breves visitas e isso transforma a maioria das saídas num trabalho hercúleo.
Mamãe era indiana e saí um retrato vivo: grandes olhos castanhos, pestanas longas, maçãs do rosto proeminentes, cabelos grossos escuríssimos e pele marrom dourada. Sou bonita, muito mais do que gostariam, só que não me misturo.
Sinto falta dela.
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Chegar a nada modesta propriedade Hornsey toma duas horas dentro da carruagem e custa uma mudança nos planos do cocheiro Tom e da Sra. Davies, responsável pela limpeza dos quartos e da sala de jogos. Precisaram me acompanhar até a nova residência de Pauline. Papai não tolera que eu ande só, ainda mais tão longe.
De muito longe pude ver o teto e parede brancos a despontar entre uma imensidão verde . A arquitetura do lugar imitava colunas jônicas, como se o palácio de Buckigham e o Parthenon tivessem virado um só.
O isolamento é o preço pago para estar próximo do campo e longe dos pobres, mas William Blake jogou duríssimo. O que ele queria afinal? Papai tem uma propriedade bem localizada e menos inexpugnável.
Meus acompanhantes esperam do lado de fora, numa sombra próxima a fonte circular espalhafatosa, pois a água jorra pelos lados através das asas de um arcanjo nu. Isso faz a Sra.Davies corar e ralhar comigo quando viro para dar outra olhadinha.
Entro só. A Sra. Blake, sogra de Pauline, não troca mais que cinco palavras após minha presença ser anunciada, manda suba até o quarto principal.
Sou recebida por uma recém casada de cabelos soltos, roupa de dormir e rosto inchado, como se tivesse chorado a noite inteira.
Segura minhas mãos ternamente, puxando-me para dentro. O barulho da chave girando entrega que ela opta por conversar de portas trancadas. Não me lembro disso ter acontecido noutra ocasião, nem na que acabamos embriagadas o suficiente a ponto de querermos nadar no inverno.
Inesperadamente e sem aviso anterior Pauline recosta a cabeça na penteadeira de madeira escura e chora, as lágrimas caem sobre o papel manchando a correspondência de tinta.
Ainda consigo ler o nome do remetente quatro palavras: 1- Russell, 2- querido , 3- embora, 5-daqui.
Puxo a carta sem sequer averiguar o escrito, não importa. Na falta do fogo para destruir a prova apago as palavras comprometedoras virando o tinteiro em cima.
Não fui impedida, ela ficou letárgica.
— Russell não sabe ler — Faltam muitas coisas nele: posses, nome, traquejo social, a mão direita. — Não podes danar a chamá-lo de querido em lugar diferente do pensamento. E escapar? Morrerão os dois. De tiro ou de fome. —
— Não pode, não pode, não pode. Era "querido amigo", Ava. A Sra.Smith poderia ler para ele.Devo fingir que nunca tive amigos porque me casei? Sinto falta dele e de casa. Nada disso tem o menor sentido. Existe alguma coisa que podemos de fato fazer além de comer, defecar e morrer? —
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ARSÊNICO (em andamento, repostando)
Romance1878: Dez indivíduos de classes e situações distintas terminam com as vidas enredadas, em comum possuem somente os desamores e o arsênico. Pauline havia se casado recentemente com William Blake, um jovem e bonito investidor inglês. Estava apaixonad...