2.Russell

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William Blake é um sujeito bonito e pelo que escuto dos outros criados parece ser uma ótima pessoa. Boa reputação, dinheiro a perder de vista e acabou sendo o noivo da mulher que amo. 

Conheci Pauline quando entrei na casa dos Blake como aprendiz do falecido jardineiro. Apesar das diferenças, crescemos juntos. Nos vemos todos os dias desde que ela retornou do instituto da Sra.Pikett no último ano, acabamos nos identificando. Não temos família grande, odiamos caçadas e recentemente começamos a nos sentir terrivelmente sós. 

Em um dia éramos apenas amigos, pouco depois, antes que me desse conta o mínimo toque fazia disparar meu coração, uma troca de olhares se tornava paralisante.  Tinha também aquela sensação estranha de que o estômago virava do avesso só por estar no mesmo ambiente.

No começo achei que se tratava de alguma condição de saúde rara, por ter coincidido com um forte resfriado tive quase certeza de que poderia ser a mesma enfermidade que levou o outro jardineiro. 

Estarei mentindo se digo que lembro exatamente do momento em que tudo se tornou claro e me veio a luz que respondeu todos meus questionamentos. 

Talvez tenha sido quando a tirei do lago após escorregar e quase ser arrastada para o fundo pelo peso das roupas, ou então no dia em que nos perdemos na floresta e esquecemos que o Sr.Blake havia marcado uma caçada. 

Poderia ser ainda mais simples, acordei curado do resfriado e todos os sintomas persistiram, acompanhados de algo que conheço muito bem: a saudade. 

Estou sempre sentindo falta de algo ou alguém. De meu amigo Jacob, da mãe que nunca vi, de sentar numa mesa aconchegante, do cheiro do gergelim torrado e pão fresco, de ter libras a mais para gastar, dormir sem estar terrivelmente cansado e agora de Pauline, uma pessoa que fala comigo todos os dias pelas manhãs, tardes e noites. 

"Sou jovem, superarei rápido."

Repito essa frase diariamente quando fico sabendo do noivado. Nunca tive a menor chance, mas apesar de estar conformado com não ser escolhido e do bem falar dos criados em relação a Blake, me assusta saber que em pouco ela precisará se unir a um estranho. 

— Não tem medo? — Pergunto a Pauline ao ajudá-la descer da árvore. Não saiu pequena e doce como as criaturas das histórias românticas que tanto lia em voz alta no jardim. Terminou por ser volátil, preguiçosa, com o rosto de um anjo caído.

Fede a álcool, usa o vestido de baile da noite anterior. As barras da saia de seda verde estão marrons por conta da terra e os punhos manchados de vinho. Todo esse conjunto combina com o penteado desfeito. Os cachos loiros caem indisciplinados, emoldurando o rosto.  Nunca esteve tão bonita. 

— Não. —  Responde num tom vacilante que entrega a mentira. Sinto o toque das mãos geladas e também o tremor que começa nos dedos e ameaça se espalhar. 

Sem aviso Pauline envolve minha cintura num abraço, não a afasto. Abraço com força, deixo que se recoste em meu ombro e chore, ignorando a sensação de que meu coração e pulmões parariam de trabalhar a qualquer instante. 

Permanecemos juntos sem trocar uma única palavra até que os passos da Sra. Smith, a governanta, a forçam seguir às pressas para o quarto. 

Fico a sós com a Sra. Smith que me contempla em estado de horror, ela sabe. Puxa o ar lentamente e caminha até mim, solta a barra do vestido para desferir um tapa seco em meu rosto antes de dar meia volta para retornar até o interior da residência. Foi difícil digerir o golpe, é perturbador que essa humilhação me atormente menos do que minhas inquietações. 

Pauline casará em uma ou duas semanas no máximo. Quanto a mim, ainda estou perdido. Sou incapaz de definir se nesse mesmo tempo estarei conformado, louco ou morto. 

ARSÊNICO (em andamento, repostando)Onde histórias criam vida. Descubra agora