O Retrato na Parede

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Emília de Castro acabara de ser contratada como governanta da casa de Vladmir, este fora um sucedido empreendedor no ramo da perfumaria, buscava pelos mais peculiares odores para misturar fragrâncias doces e profundas perfeitamente balanceadas numa amalgama de aroma penetrante, com uma gotinha, de sabor mel e uma singela mistura de óleos tropicais.

Vladmir sempre tivera um ar frio e áspero, seu nariz arrebitado possuía a capacidade de distinguir com exatidão cada um dos cheiros que se aproximavam mais de um metro do seu faro. Viajava muito para fazer negócios fora do país para sua marca de perfumes, por isso a necessidade de contratar uma governanta, após o ocorrido com sua jovem esposa.

Emília aceitou prontamente o trabalho assim que fora recomendada a Vladmir, com o salário ela poderia muito bem enviar dinheiro a sua mãe e com uns seis meses compraria um sobrado num bairro qualquer da baixada fluminense. Ela tinha acabado de soltar as malas gordas da viagem, com tantas trochas de roupa que pareciam um vulcão prestes a explodir lançando todas aquelas cobertas e blusas claras, permanecendo presas somente por pequenos botões e um zíper defeituoso de latão.

— Você é a moça que vai cuidar de mim..?

A vozinha feminina e infantil perguntou a ela. Era ruiva, tinha sardas, nariz pequeno afilado e prendia seu cabelo em duas tranças curtas, o vestido azul estava bem-passado e tinha o mesmo tom de uma piscina.

— Sim, querida. — Emília a respondeu depois se ajoelhou pertinho da menina, — Você é a Isabela, não é? — Sorriu gentilmente enquanto olhava os olhos verdinhos da garota.

Isabela era uma doce menina, nunca respondia as ordens de Emília, escovava os dentes no horário que seu ríspido pai ordenara, nem mesmo comia doces e era uma aluna acima da média na sua escola. Somente um fato conseguia perturbar Emília, um retrato que fora pendurado na casa um pouco antes da morte de Melissa. A mulher no retrato era igualzinha a Isabela, cabelos ruivos e sedosos, com algumas sardinhas e os olhos de esmeralda, na foto ela estava com um colar de prata reluzente e vestido verde-água.

Certas vezes atarefada passando pelos corredores, Emília, tinha a impressão de que a garota falava com o retrato, mas nunca dissera nada, pensava em como fora pesada a perca prematura da sua mãe. Em um dia desses, varrendo e passando roupa, pois, era a única quem cuidava de tais serviços, os outros empregados eram um jardineiro, que pouco vira, somente tratava das tulipas, podava a grama e verificava o estado das rosas. O outro contratado era Estevão, um contador, por natureza “mão de vaca” segundo Emília, que nunca o vira abrir a mão um pouco nem para dar tchau a Isabela, que também não parecia dar-se bem com o empregado de seu pai. Além de Emília a única outra mulher que visitara a casa da família que não tivera o mesmo sobrenome era a professora particular, esta era rechonchuda e tinha uma listra branca no cabelo que parecia um gambá, não lhe ajudando a fisionomia o fato de ter dentes pontudos serrados indo um de encontro ao outro.

Emília deu de cara com Isabela conversando rosto-a-rosto com o retrato, espantou-lhe o fato da menina soltar gordas lágrimas de seus olhos, era como se ela abrisse somente seu coração ao retrato que estava pregado mais de um metro e meio do chão. Isabela precisou subir uma cadeira de madeira para alcança-lo. Encobriu o corpo pequeno da menina com um abraço, estava nervosa, não se sentia confortável adentrando num espaço tão íntimo da garota, afinal, não passava de uma empregada naquele casarão, pensou consigo mesmo que falta de coração tinha o pai da garota por não ficar presente, somente encontrar outra figura feminina para cuidar da criança.

Passado alguns dias, ela e a menina se aproximavam pouco a pouco, a cena no corredor fora significativa para às duas, um laço sentimental parecido com os de uma mãe e sua filha, quem não gostara nada desse achegamento fora Vladmir, retornou de França num voo tranquilo folheando alguns romances britânicos para afiar o seu inglês já bem mais do que razoável.

Vladmir não gostava de achegamentos, e seu fiel fofoqueiro, o contador, assim que viera repassar os balanços mensais para o chefe, contou-lhe todas as notícias sobre a governanta ficar tão próxima de sua filha. Ele fora ver os jardins, gostava de refletir sentindo o aroma das flores bem aparadas por Genésio, o jardineiro. Um vento estival arrastou para suas narinas o cheiro tão querido, quem sabe por um milésimo de segundo seu coração tenha apertado por ser um pai tão ausente, ao menos era o que Emília esperava enquanto observa da varanda larga do casarão. Ele olhou a cima com sua expressão de tormenta, Emília sentira seu espírito sendo massacrado por mil agulhas e seu corpo sendo consumido por tal sensação estranha que era a de olhar para aquele homem diretamente.

Depois que tomara seu duro sermão, Emília, estava de volta ao seu lugar de somente uma empregada que deve prover o que for necessário a saúde do lar e nada mais, após isso, nunca mais comentou a respeito da morte de Melissa, ou deu seus abraços apertados em Isabela, se afastou.. mas ainda via a menina chorar enquanto conversa com o retrato na parede, e essa cena se tornara cada vez mais melancólica e sombria, ao ponto que Emília sempre se sentiria perseguida por olhos invisíveis naquele corredor.

A governanta tinha o costume de acordar bem cedo, pouco passara das cinco horas da manhã e ela já se preparava para cuidar do café da manhã de Isabela, tirar o pó da casa, abrir as janelas e claro, conferir se Isabela já tinha se arrumado e escovado os dentes para a escola. Quando passou pelo corredor que lhe afligia o peito, notou a falta do objeto que lhe causava cada vez mais pavor. Os passos de Emília ficaram mais largos e rápidos, não encontrou ninguém no quarto, estava apavorada por não encontrar a doce menininha.

Verificara cômodo a cômodo em busca da menina sem que Genésio tivesse chegado, ou Estevão, e nada da encontrar a garota. Foi então, que Emília chegou a “Sala roxa”, Vladmir nomeou assim pelo divã roxo de largas almofadas, o cômodo afastado de forma octogonal tinha diversos retratos pendurados, mas nenhum deles tinha um rosto. Ao centro, um cavalete, Isabela estava pintando, ela nunca vira a menina demonstrar tal talento artístico, seu coração tinha se aliviado, afinal.. tinha finalmente encontrado Isabela, porém deveria se manter séria e distante.     

— Vamos, Isabela. Você precisa ir para a escola.

Ela não respondeu, apenas continuou a pintar, Emília puxou o ombro da garota o que revelou ser uma representação da governanta, mesmo que mais bonita e juvenil. Olhou em volta, e num dos retratos sem rosto se formara um retrato no mesmo formato pintado pela menininha.

O terror tomara conta de Emília devido o surrealismo do acontecimento, soltara um suspiro tão pesado quanto o aço, o tom de sua pele era alvo a ponto de quase se tornar visível o espanto, o sangue borbulhara a ponto de parecer estar prestes a fugir pelos seus poros. Virou e deu de cara ao homem que lhe dera tanto pavor quanto o acontecimento, os dedos de Emília estavam formigando e seus olhos disparavam de um lado ao outro em busca de uma porta, uma fenda, um buraco, qualquer coisa para onde pudesse correr e fugir daquele lugar pavoroso. Pela primeira vez Vladmir, sorrira, mas não era um sorriso generoso e bondoso e sim um malicioso e felino.

Emília estará imóvel com a pressão assustadora e pesada que aquele cômodo causara no seu corpo, Vladmir aproximara sua mão do pescoço frágil e fino, ele apalpara o formato delicado daquele rosto e com sutileza aproximara seu nariz para sentir o cheiro, um perfume embriagador e atraente, de uma beleza irresistível, ela tinha adormecido dentro daquele corpo tal fragrância. O rosto pálido de Emília estava prestes a ser concluído por Isabela então Vladmir achegou suas presas do pescoço nu e fincou seus dentes na governanta.

Ela olhara para trás Isabela sorrindo de forma maliciosa, seus olhos brilharam em carmesim e sua aparência pouco a pouco se transformara para o mais próximo da aparência da governanta, pensara que talvez Melissa fosse apenas fabricação das mentes psicóticas de Vladmir e Isabela, sabe se lá se este era mesmo o nome de tais monstruosidades, fora naquele dia mais tarde que Emília se tornara mais um retrato na parede do casarão.

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