Capítulo três

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Minha cabeça estava pesada e eu não sabia ao certo onde estava. Eu tentava abrir os olhos ou falar alguma coisa, mas falhava em ambas as tarefas. Eu não tinha certeza se estava consciente. Duas vozes masculinas pareciam sussurrar algo em minha mente. Com muito esforço pude perceber que não era coisa da minha cabeça, Théo e Mathias estavam falando sobre mim.

− Talvez eu deva ir a cidade buscar um médico − Mathias disse, com certo desespero na voz.

− Não é preciso - foi a vez do maldito. – Ela já desmaiou assim antes. Aos poucos ela recobrará a consciência.

− Então vocês se conhecem? − Quis saber. Ignorei o ciúme explícito em sua voz e Théo fez o mesmo.

− Sim. É uma longa história − ele respondeu como quem sente saudades. Desgraçado mentiroso!!!

− Por que você a chamou de Mia? O nome dela é Ana − afirmou convicto. – Talvez você a tenha confundindo.

− Vamos esperar que ela acorde para esclarecermos tudo − e nesse preciso momento sua mão acariciou o meu rosto. Sim, a mão DELE acariciou o meu rosto. Isso era demais. Reunindo todas as forças existentes em mim, abri os olhos. Olhei em volta e constatei que o cenário era pior do que eu imaginava. Théo estava me segurando em seus braços. Meu rosto estava colado ao seu peito nu e seus olhos verdes penetravam os meus de forma desconcertante. Afastei-me dele tão rápido quanto pude e respirei fundo. – Fique calma, Mia. Você desmaiou e eu te segurei para que você não batesse a cabeça − ele explicou, todo dissimulado.

− Não encoste essas mãos imundas em mim nunca mais, Théo, ou eu cortarei a sua garganta mais rápido do que você pode imaginar − Mathias nos encarou boquiaberto, estava obviamente confuso.

− Théo? Mia? Que diabos está acontecendo aqui, afinal de contas?

          Jude estava arrumando as malas. Finalmente deixara de ser covarde e decidira sair da casa de seus pais para procurar o seu lugar no mundo. Na conversa da noite anterior fora tachada de rebelde, mimada e irresponsável. Ouvira repetidas vezes a frase: “Como você pode não querer ir para a faculdade?” Além de “Mas você precisa de cuidados especiais.” Tendo a certeza de que não importava quanta saliva gastasse, seus pais jamais a entenderiam, fingiu que ia repensar o assunto e foi para o seu quarto. No dia seguinte, quando seus pais saíram para trabalhar, ela se apressou em reunir o essencial para sua viagem sem rumo ao lado de Mikael, o estranho seminu com quem acordara recentemente. A campainha toca. Ela pega sua mochila e corre para abrir a porta. Mikael está lá. Ele parece calmo, tranquilo. Traz um sorriso confiante no rosto. Mas não aquele sorriso babaca dos filhinhos de papai que parecem prometer às garotas uma vida estável e segura. O sorriso de Mikael não oferecia absolutamente nada e era bom. Sem compromissos, sem expectativas, sem planos precoces para toda uma vida. Jude se jogou em seus braços e suspirou aliviada. Ele não lhe fez perguntas, o que era incrível. Ele apenas a levantou do chão e desceu os três degraus da varanda carregando-a no colo. Sorriam enquanto caminhavam até o carro dele. Jude abaixou o banco do carona, tirou os sapatos e apoiou os pés no para-brisa. Ao som do melhor solo de guitarra que ela já ouvira, Mikael lhe entregou um mapa que rapidamente ela constatou ser o mapa do Lar.

− Vamos lá, escolha o nosso destino − ele disse, dirigindo com um sorriso sedutor. Jude abriu o mapa e ponderou suas opções.

− Bom, podemos sair da Capital rumo a Província. Podemos conhecer as sete localidades do interior, seguindo a mesma ordem do trem. Isidro, Catedral, Midsy, Soho, Ágora, Palermo e Botsy. Depois disso podemos ir até o Estado e aí já teremos percorrido todo o Lar.

− Uma volta pelo país −Mikael concordou, gostando do plano.                                                                                                                                 

          Deixamos o pobre Mathias confuso e sem respostas enquanto o expulsávamos do celeiro. Eu e Théo havíamos concordado em apenas uma coisa: precisávamos conversar a sós antes de explicar qualquer história. Eu, obviamente, não estava disposta a ouvi-lo. Pretendia apenas golpeá-lo e avisar que só não o mataria naquele momento, pois haveria testemunhas. No entanto, pensei brevemente na cena e percebi o quão patética, ela era. Por fim eu estava admitindo que o meu plano havia falhado e tudo havia se transformado numa piada. Eu estava na vida real e não em um dos meus livros. Enquanto escrevo é possível deixar a história perfeita, idêntica ao que eu idealizei. Na vida, no entanto, isso parece impossível.

− Em primeiro lugar, − ele disse antes mesmo de eu conseguir interromper meu discurso mental – eu não sou o Théo − ele disse essa frase com extrema cautela, como se a tivesse repetido inúmeras vezes e não aguentasse mais fazê-lo.

− Certo. E eu não sou a Mia Prescott. Sou a Lauren Kate. Ou a Stephenie Meyer se você preferir − sorri, aquele sorrisinho debochado que irritava qualquer um.

− Você é, definitivamente, mais sensual e talentosa que as duas juntas − ele disse, ignorando meu sorrisinho com tranquilidade. Como é possível? − Há muitas coisas sobre mim que você não sabe, Mia. E há muitas coisas sobre a sua própria história que você não sabe. Nós podemos procurar um lugar tranquilo, tomar um café e conversarmos ou podemos continuar com o seu plano de cortar a minha garganta e realizar a sua vingança. No entanto, se escolher a segunda opção, você ficará sem respostas.

          E foi assim que o desgraçado me desarmou e acabou me levando para um café no centro daquela cidadezinha esquecida. Quando chegamos, ignorei o cardápio e pedi o de sempre:

− Um café mocha, por favor − pedi, com um sorriso educado. A garçonete ficou me encarando como se eu fosse uma alienígena enquanto Théo, prendendo o riso, apenas negou com a cabeça. – Certo, talvez um cappuccino então − tentei esperançosa. A garçonete continuou me encarando mal humorada. – Mas que droga. Então me dê um expresso. Isso vocês tem, não é?

− Mia, você não vai conseguir nada além de um bom café preto por aqui – ele encarou a garçonete, sorriu para ela e no mesmo instante a mulher pareceu mais amigável. – Traga-nos dois cafés e algumas torradas, por favor.

− Claro que sim, Gael. Eu volto em um instante − a vaca da garçonete saiu rebolando e jogando seus cabelos como se aquilo pudesse, de alguma forma, ser sensual. E ela ainda falou o nome dele com tanta... Espera aí!

− Gael? − Minha pergunta foi quase um grito. – Por que diabos você também estaria usando um nome falso?

− A questão é que eu não estou usando um nome falso. O detetive que você contratou devia ter te dito isso − nosso pedido chegou nesse momento. Enquanto processava aquelas informações, Théo, Gael, ou seja lá quem ele for, bebericou um gole de seu café e voltou aqueles olhos verdes profundos para mim.

− Como você sabe que eu contratei um detetive?

          Eu estava me sentindo patética e vulnerável. Achei que o meu plano era ótimo, que ia surpreendê-lo e quando chego aqui percebo que ele já sabia de tudo e que estava a minha espera. Percebo ainda que ele não me desperta toda a raiva de costume, pelo simples fato de que o seu olhar parece outro. Parece o olhar doce e carinhoso pelo qual eu me apaixonei, e não o olhar duro e violento daquele que me enganou, me violentou e colocou a minha vida de cabeça para baixo.

Ponte de cristal (degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora