Capítulo oito

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Estávamos os quatro reunidos na sala. Stevie e Rose chegaram juntos, trazendo consigo o cheiro ácido e agradável da chuva que caía lá fora. Rose me cumprimentou com um abraço e quando Stevie fez o mesmo, apertando-me em seus braços fortes e me tirando do chão, como ele sempre fazia, eu sussurrei em seu ouvido "Ainda estou magoada!" e ele então me soltou.

Acomodamo-nos na pequena sala, eu e Rose, esticadas uma sobre a outra no sofá, Stevie e Gael no chão, um bem longe do outro, só para constar. Comíamos a deliciosa torta de frango preparada por Gael e bebíamos algumas cervejas. Havia uma falsa descontração no ambiente. Todos estavam ansiosos com a declaração do Théo e apesar de não dizerem, sei que também estavam nervosos com a minha reação.

Quando o programa começou e David Samoé entrou no palco, eu cheguei a uma conclusão rápida. Ter a voz aguda e enjoada deve ser requisito para ser apresentador de TV, pois ele e Ellen Holmes estão na disputa de quem consegue ter a voz mais irritante. O programa seguiu durante mais de meia hora com a promessa de que Théo faria uma revelação inédita ao fim do programa. Eles enrolaram o programa inteiro para manter a audiência alta. Quando por fim o último bloco chegou, David anunciou a declaração que todos esperavam. Théo, ao invés de entrar no programa e ser entrevistado pelo apresentador, como todos acreditaram que aconteceria, apareceu em uma tela enorme que, em seguida, virou a única imagem sendo transmitida.

Théo usava uma camisa social branca com os primeiros botões abertos, seu cabelo era apenas uma pelugem, seus olhos verdes pareciam carismáticos e ferozes, em seu rosto não havia qualquer sinal de barba. Respirei fundo. Exceto pelo cabelo raspado, ele era idêntico ao irmão. Com um sorriso cínico e confiante no rosto, Théo começou a falar e não parecia estar lendo. "Boa noite", ele disse antes de qualquer coisa. "Hoje venho ao programa do nosso adorado David Samoé, em horário nobre, transmitir-lhes novidades a respeito da segurança do nosso Lar. Como vocês sabem, venho trabalhando incansavelmente ao lado dos nossos representantes a fim de intensificar a segurança de nossas crianças. Todos os nossos planos são pensados para que deixemos um bom legado para nossas futuras gerações". Revirei os olhos, pois sabia que aquilo era puro lenga-lenga. Mas por um momento me passou pela cabeça que para muita gente aquilo era sério. As pessoas na plateia – que não podíamos ver, mas podíamos ouvir – o aplaudiam fervorosamente e gritavam palavras de apoio. Ele seguiu o seu discurso, sem esperar que os aplausos cessassem e logo concluí que se tratava de uma gravação e não de um depoimento ao vivo. Ele continuou. "Não podemos viver inseguros, temendo, a qualquer momento, o ato brutal de rebeldes, como aconteceu há trinta anos. Foi pensando nisso que os representantes da Capital e do Estado se uniram e me chamaram para desenvolver esse projeto de precaução. A partir de amanhã, todo e qualquer lugar público da Capital e do Estado estarão sob a constante vigília de nano câmeras de segurança resistentes ao calor e à água. O tamanho incrivelmente pequeno delas garantirá que os vândalos não possam encontrá-las para depredá-las." Olhei para Stevie, Rose e Gael, boquiaberta, incapaz de dizer alguma coisa. Gael era o único que não parecia chocado. "Levaremos nosso projeto para todas as regiões do interior nos próximos dois meses. Isidro, Catedral, Midsy, Soho, Ágora, Palermo e Botsy receberão nano câmeras até o fim do ano. A Província decidiu não se unir a nós nesse projeto e deixa de ser, portanto, nossa aliada. Lembrem-se, queridos cidadãos: o pior inimigo é aquele que não se vê!" E assim, de repente, ele sumiu da tela.

Eu abri a boca para dizer o tamanho da minha indignação, mas não saiu nenhuma palavra. Aquilo era demais para mim. Eu não encontrava palavras para exprimir a minha incredulidade. Desde quando ele era alguém conhecido e aplaudido que se importava com o nosso Lar, nosso país? Havia alguma parte daquela história que não estava batendo ou eu era burra demais para compreendê-la. Encarei os outros na sala. Com exceção de Gael, que parecia submerso em uma folha de papel com um lápis na mão, todos pareciam tão chocados quanto eu.

Ponte de cristal (degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora