Capítulo catorze

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O sol já havia se recolhido e a floresta agora parecia quinhentas vezes mais assustadora. Uma lua pálida iluminava o céu da pequena e isolada Midsy. Pedras, raízes, galhos e buracos estavam à espreita dos meus deslizes. Respirei fundo. Durante horas, a adrenalina impediu que centenas de pensamentos invadissem a minha mente. Agora, mais calma, eu começava a compreender o que tinha acontecido. A dor das palavras de Gael dissipava-se gradativamente enquanto eu caminhava pelo território desconhecido sentindo-me viva. Mais que viva, eu me sentia invencível.

Meu estoque de água e frutas já havia esgotado. Eu andava pela mata na esperança de encontrar o caminho de volta para casa. Quando percebi que era inútil continuar tentando, afinal na escuridão tudo parecia igual, me acomodei embaixo de uma árvore, usando a minha mochila como travesseiro. Esforcei-me para ignorar os insetos e o calor desumano, e deixei minha arma travada próximo ao peito. O cansaço era tanto que nem a fome, os insetos, o calor, o chão duro e cheio de folhas me impediram de dormir rapidamente. Acordei no dia seguinte com uma chuva fina refrescando-me o corpo. Recomecei minha caminhada pensando na estupidez que tinha feito ao sair por uma mata desconhecida sem uma bússola ou um mapa. Mas eu não estava arrependida. Eu precisava ficar sozinha, precisava escapar de tudo o que estava me sufocando, precisava dar o meu grito de liberdade.

A certa altura, escutei vozes ao longe. Segui para mais perto delas e quanto mais me aproximava, percebia que eram vozes conhecidas. Comecei, de repente, a escutar meu nome. "Mia! Mia, cadê você?", eu escutava. Corri para cada vez mais perto delas, gritando de volta que eu estava próximo e que estava bem. Quando vi Stevie vindo em minha direção, corri até ele e me joguei em seus braços. Era bom estar em casa. Stevie passava a mão pelo meu rosto e corpo procurando algum ferimento grave.

— Pare com isso − ordenei, sorrindo enquanto ele me apertava em seus familiares braços e me tirava do chão. — Eu estou bem − assegurei.

Em poucos minutos todos se reuniram próximo de nós. Primeiro Rose, em seguida Mathias e por último Gael. Ele pareceu aliviado por eu estar bem, mas não arriscou falar comigo. Ele parecia bem, apesar de abatido. Seu nariz estava no lugar – e eu me perguntei quem teve estômago para colocá-lo de volta – mas estava bastante inchado, tornando seu rosto lindo um pouco deformado. Todas suas feridas estavam devidamente tratadas. Fiquei feliz de ver que havia deixado minhas marcas. O caminho de volta para casa foi animado. Ninguém me perguntou o que havia acontecido e eu me questionei sobre o que Gael teria dito a eles. De qualquer maneira, era bom não ter que explicar nada. Voltamos para casa e tomamos um café da manhã reforçado. Eu estava esfomeada, comi tanto que até me senti cansada. Foi Rose quem interrompeu minha comilança.

— Então, vamos voltar aos treinos? Stevie está se mostrando um caso perdido − ela resmungou, olhando-o de cara feia. — E como Gael garantiu que você fez ótimos progressos, talvez você possa mostrar a ele como se faz − ela piscou para mim, enquanto tirava a louça suja da mesa.

— Depois de um bom banho posso mostrar a Stevie o que ele quiser − sorri para ele, com uma piscadinha ao fim.

— O que eu quiser? − Stevie perguntou, o sorriso malicioso e uma sobrancelha erguida.

— Acho que sim. Vamos ver se você merece − eu e ele rimos enquanto Rose revirava os olhos e murmurava palavras incompreensíveis. Mathias, que não saía do lado da minha melhor amiga, parecia fascinado demais para entrar na conversa. Gael era o único que parecia muito desconfortável. Desconfortável em sua própria casa.

Depois de arrumarmos tudo e lavarmos a louça, fui até o quarto de Gael, onde o mesmo estava sentado na cama, revirando os desenhos que havia feito de mim. Ele levantou o olhar para mim e eu tive vontade de abraçá-lo e dizer que estava tudo bem.

— Vou sair para que você tome o seu banho, tranquila − ele disse, começando a juntar os desenhos.

— Não se preocupe − minha voz saiu tão dura que eu quase não a reconheci. — Não tomarei banho em seu banheiro. E tampouco dormirei no seu quarto. Só vim pegar as minhas coisas.

— Mia − ele disse, novamente a adoração preenchendo meu nome em sua voz.

— O quê? − perguntei, tentando esconder o quanto minhas pernas e mãos tremiam. — O que você ainda tem a me dizer, Gael? As palavras de ontem não foram o suficiente? − ele passou as mãos pelo cabelo e seus movimentos eram tão trêmulos quanto os meus.

— Eu sei que isso pode não fazer o menor sentido para você agora... − ele se levantou da cama e veio em minha direção. Não recuei. — Mas tudo o que fiz foi por você − eu ri, uma risada forte e descrente. Ele só podia estar brincando. — Aquelas palavras me doeram tanto quando doeram em você. Você não faz ideia do que elas significam para mim, Mia.

— Não, Gael, eu realmente não faço ideia. Que tal você me contar? − ele respirou fundo e por um instante senti que estávamos suspensos no ar. Nossos olhares se comunicando em sua própria linguagem. Nossos corpos incapazes de se afastar.

— O motivo para eu querer me vingar do meu irmão − e justo quando ele estava prestes a revelar o que eu tanto queria saber, Stevie entrou no quarto e pareceu incomodado com a cena. Eu rapidamente me afastei de Gael. Eu não havia notado que estávamos tão próximos.

— Está tudo bem, Mia? − Stevie perguntou, embora seu olhar estivesse voltado para Gael, que permaneceu imóvel, encarando-lhe de volta.

— Tudo ótimo − respondi não muito convincente. — Vou tomar o meu banho. Stevie. Leve algumas roupas para mim, sim? − pedi, saindo do quarto o mais rápido possível.

Os treinos haviam ganhado um novo sentido para mim. Eu não apanhava todo o tempo e era, por fim, considerada uma adversária real. Três dias se passaram e eu podia sentir uma nova agitação. Eu não sabia explicar muito bem, mas podia sentir uma vibração diferente se aproximando de nós. Stevie havia evoluído bastante, embora Rose acreditasse que sua motivação estivesse relacionada a me dominar e ficar por cima de mim.

Por duas vezes treinei com Gael e tentei ignorar a eletricidade pulsante em meu corpo. Quando ele eventualmente me dominava, eu sabia que demorava a reagir propositalmente. A sensação de ter o seu corpo sobre o meu era diferente de tudo o que eu já havia experimentado na vida. Eu sabia que Gael notava esse detalhe, pois seu rosto se aproximava do meu e, nossos lábios quase se tocavam. Para esse caso havia dois desfechos possíveis. Na melhor das hipóteses, meu bom senso se lembrava das palavras cortantes direcionadas a mim e reagia, me fazendo esquivar de seu corpo o mais rápido possível. E na pior das hipóteses Stevie gritava com Gael, algo sobre cortar sua garganta se não saísse de cima de mim. Era constrangedor, mas funcionava.

Há quatro dias eu dormia na sala, acomodada junto aos outros. Normalmente eu dormia no chão com Mathias e Rose. Na verdade, no meio dos dois, a pedidos da minha amiga. Mathias parecia não acreditar que Rose era lésbica, apesar de ela já ter dito isso um milhão de vezes. E apesar também do seu jeito masculino, do seu cabelo raspado e da sua aversão ao sexo oposto. Eu admirava o rapaz, ele realmente era persistente. Na noite passada eu dormi no sofá, abraçada com Stevie. Nós estávamos conversando quando eu peguei no sono. Acordei no dia seguinte com o barulho de alguém esmurrando nossa porta.

Gael, com sua pistola, passou pela sala feito um furacão e seu olhar nos atingiu apenas por um segundo. Não havia tempo para crises de ciúme. Todos nós nos levantamos e fomos atrás dele, Rose também armada. Quando abrimos a porta, apenas uma ofegante e indefesa Dona Adelaída nos surpreendeu.

— Abaixem essas armas − ela disse, seu sorriso bondoso e natural de vó me aconchegando subitamente. — Trago novidades e elas não são muito boas.

Ponte de cristal (degustação)Where stories live. Discover now