Capítulo dezoito

83 6 0
                                    

A princípio, o conteúdo daquele envelope não me dizia muita coisa. Havia fotos do crescimento de um lindo bebê de olhos claros, pele branca e bochecha corada. Apesar de se tratar do bebê mais lindo que eu já havia visto, eu não sabia o que aquelas fotos queriam dizer. Continuei a passar as fotos e conforme o fazia, a situação começava a ficar estranha. E quando digo estranha, quero dizer realmente estranha. Apesar de ter certeza de nunca ter visto aquela criança – que agora aparecia nas fotos com seus mais ou menos três anos – era como se eu a conhecesse. Eu já estava chegando ao fim das fotos, quase sem conseguir respirar com o olhar estranhamente conhecido daquela criança loira, sempre com os cabelos presos, quando me deparei com uma moovfotografia, uma tecnologia nova disponível apenas para pessoas muito ricas e influentes. A moovfotografia trata-se de uma foto em movimento lento, como se você pudesse juntar cerca de cinco imagens e contar a história em um pequeno filme. E então eu assisti ao pequeno filme...

A menininha de aparentes cinco anos, loira, de cabelos presos e olhos claros, estava sentada no chão frio, de costas para quem a fotografava, desenhando compenetrada. Em seguida ela se levanta, vira de frente para a câmera com um sorriso triste. Ela solta os cabelos e balança-os, revelando formosos cachos dourados, que emolduram seu rostinho de maneira graciosa. Em seguida, a menina se abaixa, pega a folha de papel na qual estava trabalhando e mostra sua obra para a câmera. E tudo o que a folha diz é: MAMÃE.

Por um instante eu não consigo respirar. Uma avalanche se paralisou dentro de mim e quando eu finalmente consegui inspirar e expirar, a avalanche se moveu outra vez. Revirei aquelas fotografias desesperadamente, incapaz de acreditar na mensagem que Théo queria me passar. Isso só podia ser um truque para me enganar novamente. Como diabos eu teria uma filha sem nem saber de sua existência? Eu guardei as fotografias dentro do envelope e fui atrás de Stevie. Ele teria respostas. Revirei a casa inteira atrás dele e o encontrei no quintal, tomando chá com Florenza de maneira bastante íntima. Eu sabia que não tinha direito algum, mas senti uma leve pontada de ciúmes.

— Desculpe interrompê-los... − eu disse com a voz rouca, tentando camuflar todo o desespero entranhado nela. — Mas eu preciso muito falar com você, Stevie.

Stevie olhou para Florenza, como se pedisse sua permissão e se desculpasse ao mesmo tempo. Com um sorriso largo, ela assentiu e apertou a mão dele de leve, como se em tão pouco tempo já tivessem uma espécie de código. Eu não tinha direito nenhum de sentir ciúmes, seria extremamente egoísta se o fizesse, mas o problema é que Florenza não é o tipo de mulher que Stevie gosta. Pelo menos, não até onde eu sei. Ele gosta de mulheres como... Como... Como eu, oras!

Não pude pensar em toda essa situação estranha por muito tempo. Problemas de extrema gravidade me aguardavam e eu precisava de respostas. Fomos até o quarto de hóspede onde Stevie estava acomodado e eu tranquei a porta assim que entramos. Ele me olhou com dúvida e então eu avancei em cima dele.

— Você e minha mãe foram os únicos que me visitaram enquanto eu estive naquela clínica de reabilitação horrível − afirmei, encarando-lhe com olhos de fúria que ele provavelmente desconhecia.

— Certo − concordou, obviamente não entendendo minha linha de raciocínio. — E o que tem isso? − respirei fundo, passei a mão pelo rosto e fechei os olhos, bem forte.

— Você sabe que eu não tenho muitas lembranças daquele lugar − ele assentiu. — Eu só me lembro dos choques, das sessões de terapia onde um monstro me fazia reviver lembranças dolorosas, da comida horrível e dos dias em que fiquei trancada em uma sala escura, em condições desumanas − dizer cada uma daquelas palavras fazia meu peito se comprimir. Eu não me lembrava de quase nada do tempo em que fiquei internada, mas preferia que fosse assim.

— Eu sei de tudo isso, Mia. Enquanto esteve internada, você parecia outra pessoa. Sempre meio dopada e com machucados. Eu lhe disse para contarmos tudo para a sua mãe e você negou. Eu queria tirar você de lá, mas estava de mãos atadas − eu sabia o quanto isso lhe partia o coração.

— Tudo bem, mas, me diga uma coisa. Você me visitava todos os meses. Em algum momento achou que eu tivesse engordado ou... − eu respirei fundo, não conseguia pronunciar o que vinha a seguir.

— Ou estivesse grávida? − ele perguntou, seus olhos tão calorosos que chegavam a doer em meu peito. — Ah, Mia − ele abriu os braços e acolheu meu corpo pequeno. Eu senti que algumas lágrimas escaparam de seus olhos e caíram em mim e eu tentava pensar e meu cérebro dava um nó e eu pensava em Stevie e me lembrava daquela criança e... — Sua mãe achou melhor não te contarmos nada. Você não se lembrava e era melhor assim. Menos uma dor com a qual lidar. Nós achamos que você nunca fosse recuperar essa parte da memória.

— Mas, e o meu bebê? Como vocês puderam me separar dele? Como vocês − eu engasguei e então Stevie emendou; a urgência em sua voz.

— Nós jamais faríamos isso, Mia. Nós não falamos nada para você, pois o seu bebê nasceu morto. Ele não resistiu.

Saí do quarto de Stevie enquanto ele tentava me chamar e pedia para que eu me acalmasse, dizendo que devíamos conversar. Havia tanta informação para assimilar, tantas perguntas sem respostas. Eu estava saindo da casa de Florenza rumo a qualquer lugar onde eu pudesse ficar sozinha e respirar um pouco de ar puro, quando ela me interceptou na porta e me entregou um bilhete. Ela não disse nada, apenas sorriu de forma calorosa e apertou a mão na qual deixou o bilhete. Meus passos eram rápidos como se eu tivesse um destino concreto. Eu olhava os rostos daquelas pessoas e me perguntava quais seriam os seus fardos. Alguns homens estavam sendo escoltados para caminhonetes rumo ao inferno, a uma guerra que nem é deles. Crianças e mulheres choravam, despedindo-se dos homens que amavam. Alguns idosos também estavam sendo escoltados para uma caminhonete diferente. Eu não fazia ideia dos seus destinos. Respirei fundo e continuei andando, carregando a passos firmes, meus próprios fardos.

Sentei-me sozinha na beira do canal onde anteriormente resgatara Gael. Meu cérebro é uma bomba prestes a explodir. Eu tenho tanto no que pensar, que nem sei por onde começar. Revirei as fotos incontáveis vezes, explorando os detalhes que me escaparam anteriormente. A linda menininha de cabelos loiros, bochechas rosadas e olhos claros tinha uma beleza maltratada. Seu vestidinho rosa surrado tinha alguns rasgos e parecia pequeno demais para seu crescimento constante. Sua pele branca, feito neve, estava suja. Seu sorriso, apesar de doce e inocente, era triste. No ambiente, que eu julgava ser o seu quarto, não havia nenhum toque infantil ou feminino. Era apenas um ambiente pequeno e estéril sem qualquer tipo de conforto. Trinquei os dentes, de repente furiosa com a situação. Minha filha ou não, aquele não era o lugar adequado para uma criança crescer. Resolvi guardar o envelope preto dentro do bolso de minha calça e então encontrei o bilhete que Florenza havia me dado. Dentro dele havia apenas um endereço. Um endereço sem nenhum tipo de informação adicional. De alguma maneira, eu confiava em Florenza. E estava seguindo rumo ao desconhecido.

Ponte de cristal (degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora