Mia Couto

3.4K 497 1K
                                    


O que é o amor?

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.

O que é o amor?

No século XX antes de V, eis o que o cético pintor em ascensão com o vergonhoso pseudônimo Seagull diria: O amor é uma reação química gerada no nosso cérebro feita para nos ludibriar, nos tornar submissos, garantir a sobrevivência da espécie. O amor é liberação de hormônios como resposta a algum estímulo: um corpo atraente, uma voz melódica, uma carícia. Tal reação química é viciante ao ponto de nos colocar num torpor constante. O amor não passa de uma droga. E, o coração partido, nada mais é do que uma crise de abstinência.

Isso o outro Jeon já sabia (conte para ele o que está prestes a acontecer e, eu te garanto, ele vai rir na sua cara).

Dizer que o amor é uma reação química no cérebro é o mesmo que dizer que uma obra de arte é uma tela de tecido com tinta óleo e verniz em cima. Inegável, um fato. No entanto, não cobre nem um por cento do que uma obra de arte realmente é.

O amor também é difícil de definir, como a arte. E é mutável. Num dia é o ciúme terrível que corrói a gente, no outro é um banho de banheira com cheiro de framboesa ou uma dança ao som das ondas do mar. Ele te surpreende nuns momentos aleatórios. Descobri que o amor está no som da respiração de V, baixinha, de madrugada, enquanto o sono não vinha. Está no jeito que ele me observava pintando quando pensava que eu não o via. Está na maneira como ele balançava a cabeça e ria consigo mesmo ao ler um livro. Fui encontrando amor pra todo lado. Juro que até hoje encontro, passagens sublinhadas em livros, o aroma dele numa camisa, chás fora da validade, memórias cotidianas. Encontro vestígios de V e o amo, ainda que doa feito o inferno.

Acho que ainda não tinha dito isso aqui, pelo menos não em termos tão escancarados. Imagino que seja óbvio para o leitor, à essa altura. Eu já sabia que amava V nessa etapa de nosso envolvimento, é claro. Posso ser orgulhoso feito o capeta, mas não sou estúpido. Eu sabia muito bem, só que não julgava necessário confessar. Eu e V éramos avessos aos nomes. Nosso afeto surgia de outras formas, em gestos, em cuidados, na cama. Surgia até em conversinhas ordinárias, sem propósito.

— Vem comer, Seagull, anda. Já faz horas que você tá aí e eu não te vi comer nada — V podia dizer, quando eu estava concentrado demais no trabalho. Às vezes eu perdia a noção do tempo, não era incomum passar o dia todo em jejum, absorvido numa obra. Eu responderia um "já vou" rápido e ele continuaria: — E tô falando de comida de verdade, não salgadinho de queijo. Você tem o paladar de uma criança de seis anos, eu juro por Deus, Seagull. Você deve estar anêmico.

V diria isso como quem não quer nada, os olhos fechados docemente e o nariz enfiado no meio das ondas espirais do vapor da xícara de chá de limão siciliano e gengibre, recém-preparado. V gostava de tudo feito na hora. Ele então abriria os olhos de um jeito sonhador, me observaria com todos aqueles tons castanhos antes de dar um pequeno gole e soltar um gemido rouco de sincero contentamento. A ardência do gengibre escorreria pela garganta, estimulando o pomo de adão a subir e descer, como se dançasse pra mim. E lá estaria eu, em transe de novo, um pouco mais rendido ao amor.

Vinte Minutos e V Where stories live. Discover now