Fiódor Dostoiévski

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Meu irmão detesta que eu coloque as coisas na borda das superfícies

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Meu irmão detesta que eu coloque as coisas na borda das superfícies. Quando a gente era criança ele vivia empurrando tudo para o centro da mesa, longe das beiradas, onde é seguro. E, claro, como boa parte das relações fraternais se baseiam em buscar qualquer maneira, por mais tola que seja, de se diferenciar do irmão, acho que inconscientemente passei a deixar meu objetos cada vez mais nas bordas – há certa adrenalina no risco, de um milímetro que pode ser a diferença entre a segurança e a queda, de desafiar a física e o ponto de equilíbrio das coisas. Eu nunca tive medo das bordas e dos limites, gostava de caminhar pelas beiradas, os braços abertos, um pé bem na frente do outro. Só que nunca caí, sempre tive medo de me machucar, de me arriscar um milímetro longe demais, tropeçar na curva. V me fez ceder ao desejo insensato, ao descontrole, e eu caí e caí antes de alçar voo e flutuar na melhor sensação da minha vida, ainda mais alucinante que os surtos de inspiração artística. Pensei que ia me espatifar no chão e me quebrar em mil pedaços, mas lá estava, voando no céu do nascente, embalado pelos meus eternos vinte minutos, respirando V por todos os poros.

Começou ali, na nossa confissão. Eu, pseudônimo, V, anônimo, e entre nós um sentimento inominável — bastavam os chás, os livros, os passeios. Me parecia loucura e devia ser mesmo. A gente não batia bem.

Pactuei com as normas de V sem pestanejar. Queria agradá-lo, depois do surto e das lágrimas e dos pedidos de desculpas e do sexo. Eu estava entorpecido, ainda.

— Seremos só V e Seagull, então.

— Se estivéssemos num filme, nos chamariam de vgull – brincou, rindo consigo mesmo. V e suas manias de se fazer personagem, como sempre, mas fiquei secretamente satisfeito por fazer parte do enredo. – Que tal?

— Soa bem – admiti, sem esforço. A sonolência é como uma droga, nos tira os filtros. – E o filme tem um final feliz?

— É óbvio – disse, com um leve tom contrariado e infantil, que me fez rir de olhos fechados. – Quando um filme ou livro não tem final feliz, eu imagino o meu próprio. Eles vivem felizes para sempre. Depois de um tempo, nem lembro mais do final de verdade. Só vale o meu.

E nós podíamos não ter nos declarado de fato, mas para mim isso foi mais do que suficiente. Era a garantia que eu buscava e, de alguma maneira, a fala ingênua de V acalentou a angústia que me consumia o peito. V acredita em finais felizes, pensei. Estou seguro.

Se por um lado o nome pode nos aprisionar a ideias fixas, por outro lado a palavra pode nos curar dos males, isso é um fato. Seja no confessionário ou no divã ou no meu ateliê com pregos soltos no assoalho, pouco importa, é a palavra que guarda o antídoto. O que foi dito em voz alta naquele dia, enquanto chorávamos nos braços um do outro, não podia ser retirado. Passou a ocupar espaço entre as paredes de madeira e, invisível, porém não menos real, meu sentimento se erguia ao nosso redor. A verdade, minha verdade, se tornou transformadora. V voltou para mim. Não me condenou pelo ciúme mas, pelo contrário, se alimentou dele e ressurgiu com mais esplendor e força. Ele vestiu minha paixão e a ostentava como uma brilhante armadura.

Vinte Minutos e V Onde as histórias ganham vida. Descobre agora