Charles Dickens

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Artistas passam tempo demais procurando por inspiração, numa busca que geralmente é inútil e infrutífera

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Artistas passam tempo demais procurando por inspiração, numa busca que geralmente é inútil e infrutífera. São uns idiotas, viciados em inspiração. Posso dizer com certeza, porque eu sou também, um grande idiota viciado. A gente procura e procura, mas no final é a inspiração quem encontra a gente, nos momentos mais aleatórios. Pode surgir de qualquer coisa, uma música, um filme, um livro. Uma vez fiquei inspirado feito o diabo depois de ver uma senhora passeando com seu cachorrinho na rua. Era um cachorrinho triste e velho, mas a moça olhava pra ele com uma cara capaz de comover o mais duro e metálico dos seres humanos. Porra, aquilo era amor de verdade, eu vi logo, e o cachorrinho já estava quase que morto mesmo. Acho que só estava vivo por causa daquela senhora, porque sabia que ela não ia aguentar sua ausência. Acho que a própria Morte deve ter ficado comovida.

Naquele dia eu voltei pra casa e pintei um dos meu melhores quadros, "A Espreita". Sem crase. É que não é "à espreita", mas a própria espreita: a morte. Também, detesto crase, mas deixemos isso de lado. Outra coisa que detesto é ter que explicar quadros. Mas aposto toda a minha fortuna em como aqueles dois pereceram juntos, compartilharam até mesmo do último suspiro. O quadro ficou bonito pra cacete.

A inspiração vem dumas coisas assim, sem sentido e sem aviso. E comove a gente até o âmago quando finalmente nos encontra, as células todas do corpo vibrando num frenesi louco, e a arte sai quase que pronta. É como uma criança que se perde dos pais no supermercado e sai andando a esmo, procurando pela mãe entre corredores de comida enlatada. A mãe preocupada também está zanzando por aí, à procura. Se encontram bem mais rápido se um dos dois simplesmente ficar parado, e com a inspiração é assim também, quanto mais se busca mais se distancia. E quando ela aparece é incômoda feito um chiclete grudado na sola da bota. Você só fica satisfeito quando consegue se livrar dele, quando deixa a obra sair pelos poros, dolorosa, feito um parto. Eu já nasci dando à luz, desde as primeiras pinturas com as pontas dos dedos nus sujos de tinta guache, antes mesmo de aprender a andar ou falar.

Eu não passo de um paridor de quadros com um baita chiclete na bota.

Enfim, estou divagando. Mas foi uma divergência importante, porque talvez dê uma mínima noção de como eu me senti ao abrir a porta velha da minha modesta cabana e dar de cara com tudo o que meu ego inflado de artista poderia querer. Merda, era mais. Eu sei lá como que se explica um troço desses. Eu podia ficar só olhando pra ele, horas.

O surto de inspiração veio, todo de uma vez só. Já disse que geralmente preciso tocar minhas musas para ver sua cor verdadeira, mas V já era pura cor antes mesmo que seu sentisse a temperatura de sua pele. Sem nem uma palavra, dei espaço para que ele entrasse no ateliê e fechei a porta, que rangeu num gemido arrastado e deprimente. Até a porta simpatizou com minha angústia.

É, angústia. Porque aquela sensação de incompletude, a falta do meu pincel, começou a me deixar maluco. Por sorte, tinha uma tela em branco à postos no cavalete. Eu tinha ficado dias e dias olhando pra essa tela, enquanto a porcaria do tecido me julgava e gozava de mim, e por vezes pensei sinceramente que devia estar amaldiçoada. Mas não, assim que V cruzou meu olhar eu tive certeza de que o amaldiçoado era eu mesmo, e corri pras tintas, eufórico para me vingar logo daquela droga de tela, mesmo sabendo que ela não tinha culpa nenhuma.

Vinte Minutos e V Where stories live. Discover now