Capítulo 3

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A rotina se encarrega de tornar a progressão de dias até a morte ainda mais lenta.

Bendito o refúgio que encontrei nos livros, portas para realidades mais suportáveis e até mesmo, aprazíveis.

Escrevi esses devaneios em uma folha solta, impaciente ao ver o sol a pico jogando na minha cara as horas restantes para o fim do expediente.

Clientes entravam e saíam em uma procissão silenciosa e amorfa que não chamava minha atenção, exceto quando reconheci entre eles a moça de dias atrás.

Ao me ver, desviou o olhar e rumou para as prateleiras, sumindo de vista nos fundos da loja – sua posição devia ser visível da copa, e estranhei o súbito interesse em observá-la.

Resisti ao impulso, embora isso me custasse a imaginação: de repente, aqueles olhos marcantes se tornaram meu único pensamento.

Em menos tempo do que das outras vezes, ela veio até o balcão, dessa vez de mãos vazias.

— Pois não?

— Quero participar do clube do livro.

Sua fala foi assertiva, contrariando o rubor em suas bochechas, desnecessário e para mim, inexplicável. Muita coisa nela era misteriosa.

Ajustamos os valores e outros detalhes técnicos enquanto seu nome recém revelado martelava em minha cabeça, tão peculiar quanto sua dona: Mikasa.

Como se não bastasse, partilhava o sobrenome comigo, fato que omiti por julgar uma coincidência menor.

— Já escolheu seu primeiro livro?

— Não. Pode me indicar?

A pergunta comum e corriqueira no meu cotidiano assumiu dessa vez um verniz complementarmente diferente: lembrei dela insatisfeita, procurando entre os livros eróticos algo que nunca chegou a encontrar, e senti uma vontade genuína de apresentar um dos meus favoritos.

Felizmente, tive bom senso o suficiente para suprimir essa intenção.

— Qual gênero prefere?

— Romance.

Abaixou o tom um pouco como se revelasse algum segredo, ficando adorável e dando a impressão que essa timidez era uma isca, uma armadilha. E embora ignorasse se intencional, estava muito próximo de cair.

— Prefere clássicos, contemporâneos, ou de algum movimento literário específico?

— Prefiro os bons.

Sua sinceridade soou atraente; sai de trás do balcão e a convidei a me acompanhar, mostrando alguns clássicos.

Curioso como é possível conhecer muito de uma pessoa através do que ela lê, e a vontade de saber o que se escondia atrás da personalidade discreta só crescia. Por hora, descobri que era curiosa: além de querer saber a sinopse do livro, perguntava também o que eu achava dele, ocupando parte da minha tarde com uma inusitada conversa.

Por fim, se decidiu por Madame Bovary; eu sabia muito bem que não era o tipo de livro que procurava, mas ela mesma ainda parecia ignorar o que queria, e foi estranhamente excitante a ideia de conduzi-la por sua estrada literária até os livros que tirariam seu fôlego. Será que eu conseguiria interpretar e satisfazer seus desejos através da leitura?

Retornamos ao caixa para registrar o empréstimo. Mesmo sem querer, desviava a atenção da tela e a fitava em sua distração; Mikasa tinha chamado minha atenção e estava genuinamente feliz com seu ingresso no clube; uma garantia de que a veria periodicamente.

O livreiroWhere stories live. Discover now