Capítulo 5

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Revirei na cama pela enésima vez, inconformado por tê-la deixado sair daquela forma.

Contudo, minha natureza reservada jamais poderia fazer diferente: toda a resolução e firmeza que tinha em outra aspectos da minha vida, se dissipavam se o assunto envolvia um conjunto de sentimentos interditados pela minha racionalidade em boa parte da vida.

O caso se apresentava ainda pior, já que era unilateral e para mim, inédito: minha vida amorosa e sexual nunca foi ativa e a iniciação ao tema tinha sido tão traumática quanto compulsória no purgatório que precisei chamar de lar até a metade da adolescência.

Foi sujo.

O sexo entrou em minha vida pelos ouvidos e olhos desde muito cedo e da pior maneira que poderia imaginar, tendo minha mãe como protagonista, como a estrela de um filme de terror que precisei assistir mesmo que não quisesse, noite após noite, dia após dia.

Para mim, era algo que só fazia sentido na literatura, como fantasia. Na realidade, o que existia era ruim, pervertido, forçado, uma correlação de forças.

Pelo menos até Mikasa aparecer e mudar essa perspectiva deslocando nosso flerte do concreto para o ideal, onde nossas ações, descoladas da realidade, puderam assumir uma natureza e naturalidade impossíveis no mundo.

Pela primeira vez, vi o prazer pago com prazer e não com dinheiro ou submissão, fruto de vontade mútua.

Tinha consciência do quanto esse raciocínio era torto; anos de reflexão serviram para construir esse entendimento de que meu problema com relacionamentos íntimos era eco de meu passado; mas que era possível ter algo saudável.

Só nunca tinha vislumbrado essa possibilidade, e logo agora que me baixei a guarda talvez tenha sido justamente para um caso passageiro, já que no dia seguinte tentei ligar para o número de celular no cadastro de Mikasa, apenas para descobrir que era falso; por um segundo pensei em checar o endereço, mas considerei invasivo e psicótico demais.

Me concentrei em lembrar de suas expressões, gemidos, toques. Apesar de tudo, algo dizia que ela tinha gostado, tanto quanto eu, de mergulhar na ficção.

Mikasa voltaria.

E quando isso acontecesse eu precisaria ter alguma indicação condizente com seu temperamento arisco e misterioso.

Mesmo às duas da manhã, desci as escadas e me embrenhei entre madeira e papel, procurando a fantasia que a traria para mim.

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Só tive que esperar três dias até vê-la novamente, a pose indiferente e serena ao sumir pela selva literária nos corredores. Acompanhei seus movimentos excitado com as lembranças, tenso com a proximidade da conversa inevitável.

Depois de um tempo veio até mim segurando um volume com certo cuidado, como se fosse algo de grande valor. A cumprimentei e continuei atendendo outro cliente, tão tranquilo quanto possível, pedindo que aguardasse um minuto. O minuto, porém, transformou-se em quase dez através de perguntas e exigências do homem detalhista.

Sua expressão estava entediada quando finalmente lhe dei atenção de forma polida, impessoal. Não queria constrangê-la; partiria dela a decisão de tocar no assunto, uma vez que foi embora daquela forma intempestiva.

— Pois não?

— O que acha de Philip Roth?

Empurrou o livro um pouco incerta, provavelmente esperando que eu questionasse sua fuga. Não; ficava feliz em desvendá-la aos poucos.

Tomei o livro, uma edição recente e que vendeu bem. No título, um nome sugestivo: O professor do desejo. Conhecia pouco dele, apenas o suficiente para orientar os leitores.

— Um dos maiores romancistas estado unidenses. Um pouco polêmico, tem saído bastante. Acredito que uma boa escolha.

— Mas o que você acha dele?

Flexionou a palavra "você", insatisfeita com a resposta invasiva que recebeu.

— Fico devendo a impressão pessoal; ainda não li.

Sorriu satisfeita com a informação, orgulhosa de apresentar algo novo para alguém cuja profissão era conhecer livros.

Chegava a ser irônico ficar feliz por tão pouco, depois de ter sido a primeira mulher em minha vida. Tive curiosidade de saber o que ela pensaria sobre essa revelação.

— Gostaria que lesse.

Absorvi a informação da sinopse, mesmo já conhecendo, para demonstrar interesse e obter a informação relevante.

— Já leu? O que achou?

— É sobre um professor de literatura... Que se envolve com uma aluna. Achei... curioso. Gostaria de conversar sobre ele com você, depois.

— Se envolve, como?

— Sexualmente.

— Sexualmente, apenas?

— Sim. Aliás... é sobre isso que gostaria de conversar. Os limites desse envolvimento.

Ela veio para colocar as cartas na mesa, uma negociação engenhosa e intrincada que só me atraía ainda mais.

Ocupei seus pensamentos, exiji planejamento; daria muita coisa para saber como chegou à conclusão de que esse livro seria uma boa indicação para nossa relação.

— Tenho prazo?

A pergunta implícita era quando voltaríamos a nos encontrar. Ao redor, clientes passeavam, faziam perguntas e vinham pagar suas compras, alheios à conversa aparentemente banal que mantinha com a morena.

Como saberiam que falávamos de sexo em meio a tantas pessoas? O flerte inteligente e instigante que ela impunha envenenou minha desejo, tornando-a cativa de suas vontades.

— Leia no seu tempo. Qual vai ser o livro dessa semana, Levi?

Apesar de se esquivar de uma resposta direta, estabeleceu uma periodicidade sutil. O título que escolhi previamente estava ao alcance e o entreguei, antecipando sua reação desgostosa antes mesmo que abrisse a boca para reclamar.

— Tereza filósofa?! Jura?

Foi impagável ver a confusão estampada no rosto bonito.

— Também reclamou de Reparação antes de ler. Você é muito difícil de agradar, Mikasa.

— E você conseguiu.

O sorriso contido em meio a um morder de lábios me fez ganhar o dia e retribuir o sorriso cúmplice; fiquei literalmente sem palavras, as bochechas ardentes entregando minha timidez.

A morena prosseguiu o assunto.

— O que vou encontrar nesse?

— Tereza faz o caminho inverso do seu protagonista; Não busca limites mas sim, a conciliação entre sentimentos conflitantes.

A coincidência foi agradável. Ela também estava em conflito, confusa sobre o que acontecia entre nós.

— Será possível?

— É o que vamos descobrir quando terminarmos a leitura.

Um convite, em termos nebulosos e superficiais e ainda assim, um convite para aceitar mergulhar nas minhas fantasias.

— Preciso ir. Até semana que vem, Levi.

Despretensioso, estabeleci um limite.

— Volte terça ou quinta.

— Combinado.

Reduzi minha ansiedade a duas opções. Mal a esperei sair para iniciar a leitura e descobrir o que Mikasa queria de mim.

O livreiroWhere stories live. Discover now