01. O TEMPORAL

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Era verão, mas aquela noite parecia atípica e incômoda demais para uma cidade onde o Sol reinava. Não era só o temporal que devastava metade da cidade, mas também o silêncio incomum no Edifício 83 que era tão antigo quanto todos os outros prédios com estrutura histórica que recheavam as ruas abandonadas do tão turístico bairro da Lapa. Bairro boêmio, cheio de pontos turísticos, bares lotados, mas que se calaram para ouvir o som da chuva torrencial. Da água podre que borbulhava pelos bueiros lotados de lixo e escorriam pelo morro, empossando as estradas, atrapalhando o trânsito engolido pela sua própria liberdade.

A cidade deu um nó. Havia mais caos do que geralmente existe. Por conta disso ninguém se preocupava com o prédio caindo aos pedaços. Exatamente naquela noite nem mesmo os seus moradores estavam preocupados com as infiltrações nos corredores, as goteiras gotejando pelo piso quebrado e remendado no térreo, as escadas parecendo ecoar passos silenciosos.

Dona Ana tentava manter a firmeza nos dedos enquanto segurava as bolinhas do terço de Nossa Senhora. Ecoava as Ave-Marias entre um temor e outro que agitava seu peito. Estava tarde, mas não conseguia dormir. Ter insônia não fazia o seu tipo, o que tornava tudo aquilo ainda mais angustiante.

Do outro lado da cidade, Alana tentava, sem sucesso, se proteger da tempestade, mas no altinho da loja que não conseguia afastar a pequena enchente, a água arrastava o lixo e aquelas ondas emporcalhadas encharcavam seus pés. Odiava a si mesma por ter dado a parcela da carrocinha de salgados pro Mauro, aquele babaca. O homem se achava o bam-bam-bam por vender coisas de segunda mão por um preço exorbitante. Aquela coisa já havia tirado metade dos seus lucros por dois meses seguidos por conta dos problemas na estrutura e mesmo insistindo não conseguiu nada daquele machista transfóbico de merda. Se não fosse por isso poderia ter sapatos novos e não teria xixi de rato e esgoto nos seus pés correndo o risco de pegar leptospirose ou algo pior.

Em outro ponto da cidade, diferente da inundação que engolia todas as pessoas no asfalto, Henrique se sentia seguro no topo do morro. No beco sentia a água pingar continuamente no capuz do seu casaco. A mão tremia ao redor dos papelotes dentro dos bolsos e os pés expostos pelos chinelos estavam gelados, sendo um contraponto ao cigarro que queimava entre seus dedos. Nem a nicotina era capaz de trazer algum tipo de conforto naquele lugar. Era em momentos assim que se perguntava que merda estava fazendo. Lá embaixo, longe dali havia um apartamento esperando por ele, mas não podia sair, era prisioneiro das suas próprias escolhas. O cara se aproximou de capuz, e fungando estendeu a nota ao redor dos dedos imundos. A chuva mascarava o cheiro insuportável de quem não dorme, não come, nem toma banho há dias. Henrique estava do lado errado, sentiu isso ao apagar o cigarro e tomar o dinheiro dos dedos do homem em troca dos papelotes em seu bolso. Faltavam quatro, se não vendesse aqueles naquela noite não teria grana suficiente para pagar a boca e se não pagasse a boca não poderia ter paz, e não ter paz significava que o seu mero devaneio em ser feliz ao lado de alguém cairia por terra.

Entretanto, alguns sonhos só existem quando as pessoas dormem. Na realidade eles não conseguem abrir espaço nem para ser, pois ela é dura, fria e totalmente insensível. Amarga feito o beijo dado por lábios que não lhe pertencem e nunca pertencerão. O sexo mecânico e repetitivo que ela tinha a certeza de que lhe dava algum tipo de amor. Helô sentia amor, mas nunca viu o amor. Para ela a mera presença nua do outro era suficiente para dizer que tinha algo bom, mesmo que esse tal algo bom lhe fizesse chorar com lágrimas tão incessantes quanto a chuva que não parava de cair e de pingar, e de inundar o seu travesseiro. Era salgada, amarga e quase doentia naquela solidão. Naquela noite o seu amor não foi e nem mesmo conseguia sentir de longe o seu amor, porque de fato ele não existia e pensar naquilo doeu.

Se não conseguia sentir aquele amor que era tão próximo teu, como conseguiria em algum momento sentir algum outro? Será que não tinha a capacidade para retribuir da maneira devida? Talvez fosse alguém rejeitável...não conseguia parar de chorar e foi assim que no ápice daquele temporal ela dormiu agarrada ao travesseiro dentro de um sonho onde não estava tão só.

Ninguém viu, ninguém nem ao menos ouviu debaixo daquele temporal, os passos pesados subindo degrau por degrau até o segundo andar. Naquela hora, Dona Benedita forçava os olhos por trás das lentes nas linhas do crochê entre as agulhas. Estava inquieta. Acendeu uma vela, rezou para o seu santo de devoção e foi tricotar, a ação sempre a deixou mais tranquila em dias e noites turbulentas, porém aquela não era uma noite qualquer. O temporal continuava a persistir lá fora, mas dentro do seu apartamento, que apesar de ser aconchegante, a senhora sentia frio. Um arrepio estranho sobre a pele retinta. Observou a foto já desbotada dela e do falecido marido. Vez ou outra sentia sua falta, mas já havia tantos anos que não sabia mais se deveria continuar sentindo aquilo. Parou de tricotar e escorreu os dedos enrugados pela imagem velha, do marido novo e robusto. O que será que ele pensaria ao vê-la acordada no meio daquele temporal sem seus braços, seu carinho, sem outra presença além de si mesma?

Foi quando um barulho ecoou da cozinha, que era o primeiro cômodo de quem entra. Reforçou as rugas na testa olhando por cima do ombro. Por um momento só ouviu a própria respiração. Havia luz na cozinha e na sala o abajur sobre o móvel ao lado da poltrona lhe fazia companhia. O barulho não se repetiu. Aconchegou as costas no estofado e começou a murmurar a antiga canção que embalava a sua paixão. Ela nem percebeu quando o silêncio foi preenchido pela voz daquela que cantava a música que murmurava. O temporal continuava sussurrando vendaval e no apartamento 204, Dona Benedita nem conseguiu gritar ao ser surpreendida. Os passos lentos, em uma falha tentativa de salvar a si mesma, tropeçou nas próprias passadas. A agulha quebrou e o corpo caiu.

Dona Ana murmurava ave-marias a cada golpe que o corpo frágil de Dona Benedita recebia. Ela não ouviu nada no andar de baixo. O sangue espirrou contra a fotografia do marido novo e robusto, morto, sorrindo enquanto via a esposa no chão, e um outro corpo alto e forte como ele um dia foi, esmagar sua cabeça contra o chão de madeira. As linhas brancas de crochê iam se avermelhando no sangue que escorria das feridas abertas, dos cortes profundos, da cabeça que mantiveram os olhos abertos e sem vida.

Dona Benedita morreu no ápice do seu desespero e no clamor de uma oração murmurante. 

O Assassinato no Edifício 83Where stories live. Discover now