17. A MORTE LIBERTADORA

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O Edifício 83 sofreu uma inundação terrível na década de 60, ficou abandonado e foi refúgio para diversos tipos de plantas na década de 70. Foi o cemitério para o descanso eterno da alma de mais de 50 homens negros desaparecidos na época da Eugenia brasileira. Sim, pessoas negras foram apartadas da sociedade "branca" brasileira, pode ver nas diversas maneiras de tratar a comunidade negra e lgbtq+ no Brasil.

Samuel era só um dos diversos homens e mulheres apegados ao ideal branco europeu, e Alana queria que toda essa merda explodisse, ou melhor pegasse fogo junto com ele pois só assim todos os seus irmãos enterrados debaixo daquela estrutura decrépita conseguiriam descansar em paz.

- Tá com medo?

Mas talvez o fogo não fosse o suficiente para ele. A garota tinha sede de sangue, do sangue dele escorrendo pelas suas próprias mãos enquanto aqueles olhos estúpidos tinham medo dela. Alana precisava que ele tivesse medo dela.

As unhas pressionaram as palmas em uma raiva avassaladora no peito. A garota avançou sobre ele, mas Samuel esquivou, dando um soco em sua barriga. Ela grunhiu e levou um golpe no rosto que a fez cambalear para trás. O corpo estava dolorido de maneira física e sentimental.

- Por que a gente não pula tudo isso?

O olho estava doendo e tinha gosto de sangue no céu da boca. Alana achou a maior graça daquela pergunta.

- Vocês nunca vão entender. - Lembrou daquele golpe que te ensinaram quando criança. Já havia sido obrigada a lidar com muito babaca racista na sua vida, não era a primeira vez que as lutas eram desiguais.

- A burrice de vocês com certeza não. - Tossiu.

- Diferente do que você acha, eu e os meus não morremos, a gente dá frutos.

Um pedaço do teto no andar de baixo desabou. A tosse nele era persistente. Seus olhos arderam. A risada ecoou com dificuldade através da fumaça densa, a qualquer momento aquele andar iria cair.

- Vocês são patéticos.

- Pra mim você pode ir pro inferno. - Em uma distração dele, Alana cruzou o punho até o seu rosto.

O baque doeu suas articulações, mas com o outro punho atingiu o outro lado. Sangue escorreu do rosto dele e seu corpo cambaleou meio desnorteado. A lâmina da faca brilhou em meio a fumaça no chão. Alana se abaixou e tomou o objeto quente para os dedos, a ardência deixou a palma da mão avermelhada, mas ela ignorou. Guardou do lado de dentro da bermuda e de frente para os degraus, a garota empurrou aquele corpo que vomitava atrocidades, antes de se silenciar ao rolar degraus abaixo.

As labaredas eram cada vez mais fortes. Com toda a força que tinha, ela puxou o corpo desmaiado pela gola da camisa, deixando um rastro do sangue que escorria do emaranhado de fios do seu cabelo. Haviam mãos invisíveis ali, respirações sufocantes no pé do seu ouvido e aquele murmúrio estranho de vozes ancestrais sobre sua pele.

Algo estava quebrado na altura das costelas, pois respirar era difícil, por vezes quase desmaiou, mas precisava tirar ele dali vivo.

Do lado de fora, Henrique recobrava a consciência, mas não conseguia ficar de pé. Seu corpo estava um caco. Helô sustentava aquele corpo quase moribundo, acariciando a testa que queimava em febre, com o olhar ansioso na direção do prédio. Apesar da escuridão da noite, dava para perceber alguns pedaços do prédio caindo, se destruindo pouco a pouco como o pesadelo que viviam nos últimos dias. Tudo parecia ter sido apenas isso, um grande pesadelo, mas havia dor e traumas vivos demais para serem dissipados após uma noite ruim.

Lia não conseguia reagir. O desespero tremia a região abaixo da sua pele. Precisavam chamar os bombeiros, a polícia, ou qualquer coisa do tipo, mas quem acreditaria neles? Alana já poderia estar morta e caso eles não desaparecessem dali, poderiam ficar na mesma posição do Seu Raimundo, de vítimas se tornarem assassinos dos seus algozes. Que ironia.

- É ela...

A sombra com o rosto inchado e ensanguentado foi tomando forma conforme Alana se afastava da fumaça e era iluminada pela luz fraca do poste, junto com o corpo que arrastava para fora dali.

Ninguém percebeu, mas no início da rua, os dois carros pretos, com as janelas escuras encurtaram a distância até ali. A fumaça espessa subia pelo telhado que desabou do prédio.

- Alana!

A garota cambaleou e caiu a alguns metros da entrada do edifício.

- O que que você tá fazendo? - Lia olhava dela para o corpo horrorizada.

- Preciso tirar ele daqui.

- O que?

- Só me ajuda. - Engatinhou de costas e foi puxando o corpo pela calçada, depois pelo asfalto.

Lia, agarrou a gola da camisa e com ela arrastou o corpo do Samuel até o meio da rua. Ninguém que estava por ali ousou se aproximar. Pareciam pessoas distantes demais daquela realidade assustadora, meros figurantes.

- A gente precisa sair daqui, Alana.

A tosse insistente a fez cuspir sangue no chão. Olhou por cima do ombro e Helô a encarou com uma mistura de alívio e pesar. Henrique abriu um sorriso. De frente para os quatro, o Edifício 83 era consumido pelo fogo. Era possível ouvir o crepitar de papéis queimando, o corpo morto sendo incinerado, as memórias sendo destruídas, paredes e teto caindo, e por fim uma explosão.

Alana protegeu o rosto com o braço e Lia se esquivou das fuligens. A 100 metros de distância os dois carros pararam, chamando a atenção deles. Ficou lá, parado por um bom tempo, até o homem branco, com as lentes pendentes no nariz abrir a porta. Os olhos claros observaram surpresos cada um dos quatro do lado de fora e pareceu ainda mais chocado com o corpo do Samuel no meio da rua.

Alana encarou aqueles olhos que a encararam assustados, com medo. Ela sorriu. Os outros homens saíram do carro. Alana ficou de pé. A faca cortou a região da sua bacia por baixo do tecido jeans. O machucado era só mais um incômodo que não se comparava em nada com a adrenalina que corria nas suas veias. Tirou a faca da cintura, limpou o sangue na roupa. O homem acordou meio grogue e vislumbrou seus chefes, não conseguia compreender o que aconteceu. Talvez tivesse sido a quantidade de gases tóxicos em seus pulmões, a dificuldade no respirar, os machucados no corpo... não importava, ele desabou e foi pego por Alana.

- Seu...

Não pode concluir.

Alana agarrou o cabelo dele e levantou a cabeça com seus olhos esbugalhados de horror. O corpo dela estava pressionado contra a sua bacia e a coluna, o que impedia qualquer movimento da sua parte.

- Alana! - Tanto Lia quanto Helô soaram em tom de repreensão mas para ela só tinha uma maneira da vingança ser completa.

- Disse que teria medo de mim. - murmurou em seu ouvido.

A lâmina tocou a garganta e sem pensar duas vezes, a garota pressionou fundo contra a pele, o sangue espirrou do corte, sujando sua mão e o chão. O homem agonizou, as garotas sufocaram um grito e o prédio desabou causando um alvoroço.

As cinzas atingiram as pessoas próximas e dava para ouvir ao longe as sirenes do bombeiro, da polícia.

Seus dedos estavam trêmulos e presa naquele transe, viu as costas do corpo morto abaixo dela.

Os homens voltaram para os carros e sem se mover, os olhos claros encararam os seus, sérios no meio de toda a fumaça densa. Ela sorriu em um alívio que tinha o peso de décadas. Ouviu a voz dos seus amigos e o barulho de portas.

- Alana, a gente precisa sair daqui. - Lia sacolejou seu ombro e em um rápido desviar de olhos, viu Henrique no banco de trás do carro do Samuel e Helô desesperada.

Foi quando caiu a ficha.

Alana largou a faca ao lado do corpo e deu atenção para eles. O homem entrou no carro. Os dedos sujos de sangue tatearam os bolsos da calça justa do homem morto, atrás da chave no bolso da frente, quietinha.

Correu com Lia para o carro. Antes de dar partida, Henrique, apesar das dores, estendeu os dedos até o banco, alcançando os ombros dela. Alana olhou para trás e naquela mera troca de olhares com os três, soube que não foram os únicos a sobreviver aquela noite.

O Assassinato no Edifício 83Where stories live. Discover now