Capítulo 7 - Que os jogos comecem

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Desde pequena eu sempre fui péssima para acordar cedo. Não me incomodava em ser uma pessoa avessa às manhãs, mas incomodava-me não ter tempo de tirar a minha cara de zumbi com água fria e até mesmo maquiagem. A noite anterior não tinha servido para nada além de encher meu cérebro de perguntas, receios e palavrões. Praticamente não dormi nada. Era certo que meu primeiro dia na West Coast High School seria comigo parecendo uma anomalia apocalíptica.

Eu sabia que encontraria com os garotos e Juliette, só que eu também estava ciente de que eles eram todos do último ano, enquanto eu era uma secundarista. A parte fácil seria chegar à sala de aula e afundar na carteira por todo o período das aulas, a difícil seria ser a única aluna nova de todo o ensino médio. Como eu era uma adolescente e sabia como esse meio funcionava, já tinha em mente que receberia vários olhares curiosos, uma vez que eu possuía o combo completo: desconhecida, cheia de segredos e quieta.

A situação toda se parecia quando eu tinha oito anos e fui para a minha primeira festinha. Era o aniversário de nove anos de Sally, nós havíamos ficado amigas em uma das sessões em grupo de terapia. Felizmente a sua história não envolvia abusos sexuais, como a minha, mas era igualmente triste.

Para começar, Sally era francesa e fugiu de sua casa com seis anos ao lado de sua irmã de apenas doze. As duas eram as únicas garotas em uma família de sete pessoas, uma vez que sua mãe havia falecido durante seu parto. O pai de minha amiga bebia tanto quanto minha mãe, de maneira que vivia agredindo seus filhos. Assim, os irmãos mais velhos das garotas repetiam seus atos com ambas. A mãe de Sally tinha uma irmã que morava no Alasca, Hannah entrou em contato com ela e depois disso vieram para os Estados Unidos. Minha melhor amiga ainda sofria com pesadelos envolvendo os irmãos, o que a levou até o Dr. McDonell, e até a mim.

A tia de Sally era dona de uma pista de patinação, então seu aniversário foi lá mesmo. Uma das primeiras coisas que fiz ao chegar foi me sentar isoladamente com uma caixa de fritas na mão. Vovô tentou fazer com que eu fosse até a pista, mas eu estava com medo. Medo de cair, de me machucar, de sair da minha zona de conforto... Quando se tem um passado conturbado com abuso sexual e psicológico, a sede por aventura diminui drasticamente. Não sei se era algo universal, mas eu sentia isso em mim.

Eu já fazia balé há um bom tempo, então eu tinha equilíbrio e até um pouco de coordenação motora. Foi o Dr. McDonell que passou uma atividade de lazer para mim, ele disse a vovô que era importante eu ter um hobby ao qual me dedicar e distrair. Daí as aulas de balé e as aulas de piano com vovô.

De qualquer forma, tomei coragem para entrar na pista quando Sally disse que permaneceria ao meu lado o tempo inteiro. E ela realmente o fez, em todas as vezes que caí, ela me levantou; todas as vezes que me desequilibrei, ela me aparou. Eu sabia que nossa amizade duraria anos, nós tínhamos nos conectado. Sally era a minha pessoa e eu a dela.

Apesar das quedas, dos arranhões e das sensações que meus pés e mãos estavam congelando, eu tinha amado patinar. Tinha amado ao ponto de ir todo dia para o clube e passar horas do dia só rondando pela quadra sem pretensões alguma. Até o dia em que Art me colocou na escolinha de patinação. Ele dizia que quando eu patinava, parecia que eu estava em outro mundo. E era exatamente assim que eu me sentia. Depois disso vieram as primeiras apresentações, competições e os títulos e prêmios.

Respirei fundo e levantei da cama determinada a tomar banho e descer para o café da manhã. Como Arthur ainda não estava em São Francisco, mentalmente eu já estava escolhendo o cereal que iria comer, já que vovô não era exatamente um expert na cozinha.

Assim que desci, fui surpreendida por ver Hermes de avental em frente ao fogão. Fiquei ainda mais surpresa quando senti o cheiro de panquecas e café recém passado.

Por trás do gelo [Em revisão]Onde histórias criam vida. Descubra agora