II

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Debruçado sobre o parapeito ele observava a água corrente. Seus olhos marejados, embotados. Tratava-se de um homem corpulento, bem vestido, apesar de todo amarrotado. Havia um pedaço de pano atado ao seu pulso direito com uma bandagem e algo em seu semblante que personificava de alguma maneira o significado de devastação.

Você é corajoso ou covarde o suficiente para...

- ... Pular? Então, você quer mesmo pular? - disse uma voz que vinha de trás, arrancando-lhe do transe.

O homem se sobressaltou. Crera estar sozinho. Quando aquela pessoa havia chegado ali?

Virou-se para trás e deparou-se com um rosto jovial; grandes olhos castanhos, penetrantes, de certo modo perturbadores. A pessoa usava um sobretudo escuro e longo como uma noite de inverno; os cabelos, muito pretos e brilhantes, cortados à altura das orelhas. Por alguma razão, num primeiro momento, não conseguiu determinar se tratava-se de um homem ou uma mulher. Num segundo momento, ainda menos. Nem mesmo a voz da pessoa ajudou quando a ouviu novamente lhe perguntando:

- O que espera encontrar lá embaixo, além de água suja?

- Não sei. - pegou-se respondendo com sinceridade. - A morte, de repente?

A pessoa se colocou ao lado do homem e olhou para o rio lá embaixo.

- Hmmm... Não sei - disse sorrindo de forma maldosa. - Não me parece alta o suficiente.

O homem poderia ter respondido que na verdade pretendia afogar-se, mas a nota de sarcasmo que ouviu da pessoa o enfureceu.

- Então, talvez eu devesse lhe atirar daqui primeiro para testar a altura.


A pessoa gargalhou. - Muito intimidador! Mas não sou eu quem quer morrer aqui, sou? Mesmo assim fico contente por despertar algum ânimo em você, nem que seja o de cuspir ameaças vazias.

- O que você sabe sobre mim, hã? - vociferou, o dedo em riste. - Você não me conhece!

- Conhecê-lo - a pessoa deu de ombros - não é o importante.

- Então o que é importante? Por que quer me demover da ideia de pular?

- Ora, não quero demovê-lo de nada. Se quiser pular, pule. Foda-se! O que me incomoda é presenciar tanta estupidez baseada em ignorância. Na verdade, qualquer estupidez me aborrece. Mas não tiro o direito que cada um tem de cometê-las. O importante, no entanto, é que existem outros caminhos. Eu poderia...

O homem já ouvira essa conversa fiada antes. Ia começar a psicologia barata.

- Nem comece - ele interrompeu. - Sei muito bem onde você quer chegar. Que eu tenho que enfrentar os meus problemas, que não posso me entregar, que eu tenho que reagir... O mesmo monte de merda de sempre. Eu não quero reagir, eu quero paz, então faça-me o favor, me deixe quieto!

Tornou o olhar à água corrente de aspecto lamoso, numa atitude de absoluto desprezo, mas ainda extremamente consciente dos movimentos daquela pessoa esquisita ao seu entorno. O homem não sabia por que simplesmente não a ignorava. Possivelmente fosse a curiosidade em descobrir afinal se era um homem ou uma mulher, não chegara a uma conclusão. Pensando bem, fazia tanto tempo que não sentia curiosidade por nada...

- Bem, na verdade - disse a pessoa enquanto dava dois ou três passos pela ponte estreita e sentava-se distraidamente no parapeito do lado oposto ao homem -, eu não ia falar nada disso. Você falou em paz, pois é, eu também quero paz e são raros os momentos que a tenho. Aliás, quem a tem verdadeiramente? Os mortos? A vontade que dá é a de fugir. Aliás, não há pecado nenhum em fugir às vezes. Você enfrentaria uma bala vindo na direção da sua cabeça? Não deveria. O mais coerente seria tentar se esquivar, fugir do tiroteio; se possível, é claro. Mas a que lugar chega alguém que está sempre fugindo? Isso pode depender do que se está fugindo. Você, do que, e para onde, está fugindo?

O homem pensou em xingar e voltar para seus pensamentos solitários, mas novamente sentiu-se compelido a pensar seriamente sobre a questão que lhe fora dada. Não se lembrava exatamente do que fugia. No entanto, respondeu a si mesmo que fugia para a morte, mas logo questionou-se, seria a morte um lugar para o qual se possa fugir?

- Não - disse aquela pessoa indecifrável às suas costas como se lesse a sua mente. Ou teria o homem dito algo sem perceber? - A morte não é o lugar. Ela é a porta, não o cômodo. O barco, não o mar. No entanto, ela o carregará para onde achar que deve. Não acho que você fosse gostar disso.

A pessoa tinha razão, ele não gostaria.


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