XI

14 6 3
                                    


“Não se lembra de tê-la buscado no portão, naquela noite. Esta noite. Quando ela esteve conversando com uma amiga qualquer, despreocupadamente, sobre nada de importante, ao chegar da escola. Você havia chegado cedo, muito mais que de costume, além de bastante contrariado após uma demissão inesperada. Essas coisas acontecem, homem, as pessoas são demitidas. É frustrante? Sim. Mas nada disso justifica, nada explica sua crueldade... Do mesmo modo, o que explica o segundo a mais que você se demorou na janela observando as duas? O que ambos sabemos é que você se deparou com elas de mãos dadas no momento em que pousou os olhos através do vidro e da cortina de renda. Não fosse esse pequeno detalhe ter chamado a sua atenção, provavelmente teria voltado para o seu sofá duro largado ante a televisão para assistir ao telejornal enquanto ruminava desgostoso sobre as injustiças do mundo e da vida. Só que elas riam alto, inclinadas uma para a outra, quase como um flerte. Logo veio-lhe à mente aqueles cortes de cabelo estranhos que ela gostava, sempre curtos demais. As roupas meio masculinas, os interesses por coisas não lá muito delicadas, a forma como às vezes ela vinha parecendo mais um menino, ou coisa alguma...

“E no instante seguinte, durante a menor e mais fugaz fração de tempo, os lábios delas se encontraram. E em sua mente, foi uma coisa tão molhada e nojenta, que você ainda pode ver um tênue fio de saliva, ligado a ambas as bocas, desfazendo-se no ar enquanto se distanciavam. Não há nome inventado para descrever o que você fez a seguir, homem”.

Sob a sola do pé do mestre o homem apenas chorava e soluçava.

— Eu vou relembrá-lo, caso tenha esquecido também: você a arrastou dali pelos cabelos, como se ela fosse uma puta que estivesse fodendo com algum animal no meio da rua. Levou-a até o quarto e trancou a porta. Ela caiu na cama chorando. E você desafivelou o cinto. A princípio apenas para espancá-la até vê-la mijar sangue, inocentemente, como qualquer pai severo e justo faria. Mas a forma como ela estava, na cama, e a cintura da sua calça afrouxando, trouxeram-lhe uma ideia mais sombria...

O homem gemeu do chão.

— N-não... não...

“‘Não’ o quê?”, continuou a consciência, impassível. “Por acaso foi ela que lhe implorou para ser estuprada? Para sua esposa você disse que foi para fazê-la virar mulher. ‘Filha minha tem que ser mulher, nessa porra! Mulher de verdade! Não aceito esse tipo de nojeira, ela vai aprender!’. Foi o que você disse a si mesmo o tempo todo, não foi, enquanto arrancava suas roupas? Enquanto deitava-se sobre ela? Enquanto forçava-lhe o membro entre suas pernas? Por trás de tudo havia uma luxúria secreta, uma vontade imunda de possuí-la, embora não admita a si próprio. Quando a garota reagiu, mordendo o seu pulso quase ao ponto de lhe arrancar um pedaço, você revidou. Com raiva. Quebrou o braço da menina, socou o seu rosto até cansar, antes de terminar o ‘serviço’”.

— É mentira! — o homem gritou.

— Então, que ferimento é esse no seu braço direito? — disse a consciência, afastando-se.

O homem se levantou vagarosamente, apenas o suficiente para ficar de joelhos. Ofegante como um fugitivo; os olhos, duas profusas nascentes de um rio agridoce. Levou o nó da faixa à boca para desatá-lo com os dentes e depois a retirou com a mão esquerda, trêmula, volta a volta. Seus olhos desceram ao ferimento: havia um leve inchaço, além da vermelhidão, em torno de cada um dos pequenos cortes espaçados que formavam uma espécie de “U” mais aberto. Uma típica mordida. Ele se lembrou da dor que sentiu e de todo o resto que sua consciência lhe negara esquecer.

Quando seus olhos se ergueram não havia mais ponte alguma. Estava em outro lugar.


Caminhos de Céu e InfernoWhere stories live. Discover now