V

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— Poço! — ele gritava entre os golpes que desferia. — Um poço! Está zombando de mim!

Aquilo se arrastou por um tempo. Em momento algum o Mestre reclamou ou reagiu de qualquer maneira. Quando não conseguiu mais erguer os braços, e bater já era mais doloroso em si próprio que no outro, ofegante, o pupilo enfim cessou o espancamento. Estava todo ensanguentado. Contudo, nada se comparava à ruína desfigurada que era o rosto de seu Mestre. Se antes fora difícil determinar o que havia por trás daquelas feições incógnitas (homem ou mulher), agora tornara-se quase inconcebível distinguir quaisquer traços humanos que alguma vez pudessem ter existido naquela face. Chegou a imaginar se não o teria matado.

— Isto o fez se sentir melhor? — perguntou o Mestre naquela sua voz assexuada com a naturalidade de quem conversa à mesa de jantar.

— Sim! — mentiu. Ergueu o punho e desferiu outro golpe. Cada um de seus socos atirava violentamente o rosto de seu mestre para todos os lado possíveis, mas os olhos dele não o abandonaram sequer por um segundo. O rosto inchado, ferido, torto; os olhos, todavia, permaneciam os mesmos. O pupilo sentiu-se desnudo diante deles.

— Não... — admitiu por fim.

— Então por que continua? — inquiriu o Mestre. — Bater em mim é algo que queira ou precise fazer? Se sim, não me oponho. Mas se não, saía de cima de mim.

O pupilo se levantou e se afastou. O Mestre, ferido como estava, não demonstrava capacidade, ou vontade, de fazer o mesmo. Algo embrulhou-se dentro do estômago do pupilo. Um segundo depois estava debruçado sobre o parapeito da ponte vomitando. Surpreendeu a si mesmo a quantidade de vômito que fora capaz de produzir. Quando terminou, ofegante, ainda com o sabor da bílis na boca, virou-se para o seu Mestre estirado no chão.

— Você mentiu para mim — disparou ele.

O Mestre levou um tempo para dizer qualquer coisa. Até que finalmente, falou:

— Você conhece a verdade, meu pupilo? Alguns diriam que é preciso conhecê-la antes para ser capaz de reconhecer uma mentira. Eu, no entanto, posso dizer que a verdade possui muitos lados para ser vista por completo, a visão do homem é limitada. E a mentira, bem, esta não passa de outro lado da verdade, só que um lado mais sombrio.

— Você fala por enigmas.

— O que o homem não compreende ele chama de enigma. Agora, diga-me: acusa ao teu mestre de mentiroso, mas fez tudo conforme eu lhe disse que fizesse?

— O que isso tem a ver...

Fez?

— Fiz — o pupilo respondeu.

— Veja só, talvez encontre mentiras em tudo o que ouve por ser tão habituado a contá-las. Ou então, talvez, seja a minha memória que me falhe, pois não me lembro absolutamente de ter lhe instruído a beber a água suja desse rio, ou tirar um cochilo de um dia inteiro à sua margem — tudo o que o Mestre disse, disse com serenidade, mas suas palavras eram como ferro.

“Eu estava cansado”, pensou em retrucar, mas não o fez, pois até para si mesmo o argumento soou fraco. No lugar disso, perguntou atônito:

— Como você sabia?

A cara desfigurada do Mestre se contorceu em algo que poderia ter sido um sorriso.

— A verdade não muda sua natureza, mesmo quando ninguém a vê. Além disso, seu próprio estômago o denuncia. Eu disse que essa água era suja. Aliás, seus olhos inchados e remelentos de quem acaba de acordar também o traem — o Mestre riu disso. — Agora tome a sua outra estrada e faça como eu lhe digo: não pare por nada. Ouviu bem? Nada! Não fale com ninguém, não coma, não descanse. Não olhe sequer para os lados. Apenas caminhe, sempre avante, chegue ao seu destino e, somente então, volte para cá. Não há como ser mais claro do que isso.

O pupilo olhou seu mestre deitado como um moribundo, ferido, sangrando. Agora mais um espectro que uma pessoa. Poderia fazer qualquer coisa, até mesmo nada. Mas, sem saber exatamente qual linha de raciocínio o levara a essa conclusão, decidiu obedecer. Virou-se para o seu caminho. Contudo, refreou-se um segundo para perguntar:

— O que é você? — por alguma razão o pupilo acreditou ser essa a pergunta mais apropriada.

— Ora, eu já não lhe disse? — ele fitou o pupilo; nunca o deixou de fitar. — Eu sou o teu mestre.

O pupilo novamente o deixou.

Caminhos de Céu e InfernoWhere stories live. Discover now