IX

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Um soco no estômago provavelmente não doeria tanto. Sentiu-se injustiçado. Depois de tanto esforço para salvá-la esse era o agradecimento que recebia? Mas ainda assim estava preocupado com ela. "Esta menina está delirando, precisa de ajuda", o pupilo concluiu. "Eu com certeza não a conheço e nem ela a mim", tentou convencer a si mesmo, ainda que em algum lugar profundo de sua mente houvesse alguma sombra de reconhecimento, de familiaridade. Certamente tudo não passava de algum tipo de loucura que infectara a ambos.

A garota começou a espernear, se debatendo alucinada, tentando fugir. Seu choro agora carregado de um desespero atormentado onde antes só se ouvia lamento. O homem a pegou pelos ombros e a chacoalhou, numa tentativa de trazê-la à realidade. - Pare com isso! - ele praticamente gritava. - Eu estou tentando te ajudar, menina! Eu estou tentando te ajudar! O que aconteceu? Você está bem?

- Eu... tenho sede - ela murmurou em choramingas por entre lábios rachados.

O coração do homem acelerou. "Sim, ela precisa de água!". Imediatamente tirou sua camisa e a enrolou na menina, a fim de abrandar um pouco o frio que ela obviamente sentia; depois tomou-a em seu colo e correu, frenético. Voltou pelo caminho por que viera, pois somente por ali seria possível. Os galhos espinhentos por onde passara antes em busca da criança estavam agora semiabertos, o que tornou a volta um pouco mais simples. Ainda assim, naturalmente, o homem não conseguiu evitar alguns novos ferimentos, mas chegara ao ponto de não sentir mais dor. No entanto, na menina nenhum galho sequer triscou; a pobre já havia passado por demasiadas provações e o homem não permitiu que ela se ferisse outra vez.

Finalmente brotou de volta à estrada. Mas para onde seguir, esquerda ou direita? Numa fração de segundo centenas de pensamentos embaralharam sua mente. Poderia tomar a direção esquerda, sim, o caminho de volta para a ponte; havia a água do rio... mas seu Mestre lhe dissera repetidas vezes que era suja e ele mesmo já comprovara tal fato. Soma-se ainda a questão dos arbustos de espinhos, que, sabe-se lá por qual maldição, estavam fechando a passagem. À direita seguiria para o destino original, aquele que seu Mestre lhe propusera no início, contudo, isso já não era importante. Tudo o que lhe importava na vida naquele momento era dar de beber à menina. Entre a certa água suja e todas as dificuldades da direção esquerda e a incerteza repleta de possibilidades da direita o homem decidiu que preferia arriscar: Virou à direita.

Como previra, não foi fácil. As cercas de espinhos se enroscavam em seus tornozelos tentando o atrasar. A forte ventania que se levantou em forma de chicotadas cortantes e geladas quase o fez ceder. Sua vontade foi se atirar preguiçosamente ao chão e esperar a morte vir amainar suas dores. Mas não. Não com ela no colo, a menina merecia mais. E pelo o que se pareceram horas o homem se arrastou pela estrada traiçoeira carregando a criança chorosa nos braços.

Aos poucos a vegetação à sua volta foi mudando. Os arbustos retorcidos e espinhentos dando lugar, cada vez mais, a árvores majestosas e imponentes em sua altura e beleza. O vento enfim transformava-se em brisa, e de repente estavam dentro de uma floresta fechada. O homem apenas seguia em frente. Não podia parar, precisava encontrar a água...

E uma certa visão, um pouco além das árvores defronte, de súbito, trouxe nova energia ao homem, embora, em sua emoção, trouxesse-lhe também alguma umidade aos olhos.

- O poço... - disse, sem fôlego. - O mesmo maldito poço!

Correu até lá. Colocou a menina cuidadosamente deitada na grama. O balde e a corda ainda estavam onde os vira pela última vez. O resto do trabalho era simples e ele o fez rapidamente. Quando o balde subiu transbordando provou a água, tinha um ótimo sabor. Com as duas mãos fez uma concha com a qual apanhou um pouco da água e levou à boca da menina. E ela a bebeu, voraz.

- Mais... por favor...

O homem repetiu o gesto, várias e várias vezes, até saciá-la. Lavou as feridas da pequena criança e as suas próprias. Depois viu-a adormecer em seus braços, um sono tão profundo e tranquilo como certamente ela não experimentava há tempos.

Então amanheceu.

Um pequeno fio de luz enfiou-se por entre as folhas das árvores e foi perturbar o sono da menina. Ela abriu um grande e bonito olho castanho e fitou o homem. Pôs a mão na bochecha dele e lhe disse simplesmente:

- Obrigada.

Foi a vez dele de chorar feito uma criança.

Mas a verdade é que ela teria apertado sua garganta.


Caminhos de Céu e InfernoWhere stories live. Discover now