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Chegaram juntos à ponte, de mãos dadas. Voltaram assim que a menina demonstrou-se um pouco mais disposta. O homem, enquanto calçava novamente os seus sapatos — pois os reencontrou, já que decidira tomar a estrada onde os deixara no dia anterior —, fantasiava a respeito da reação que o mestre teria. Havia algo de imprevisível, insondável, em tudo o que o envolvia. Estava claro, porém, que elogios lhe eram devidos pelo feito realizado. Além disso, refletiu um pouco sobre as duas estradas que percorrera e pensou entender o que seu mestre quis lhe mostrar. Só é possível reconhecer o céu quando se conhece o inferno; como só é possível reconhecer uma mentira quando se conhece a verdade. Aliás, seria essa a verdade que havia mencionado?

Mas todos os seus devaneios foram impiedosamente rasgados ao depararam-se com a ponte vazia.

No parapeito jazia apenas o sobretudo preto do mestre, repleto de sua ausência, dobrado, pontilhado de sangue, com uma pedra sobre ele para que nenhum vento forte o carregasse de lá. O homem largou a mão da menina e foi pegar o agasalho esquecido.

— Onde... ele está?

A menina se aproximou.

— O que esperava encontrar aqui?

— Havia uma pessoa... Foi quem me mandou pela estrada dos espinhos. Ela estava... estava...

— Estirada no chão, toda ferida?

O homem fitou a menina com olhos arregalados.

— Eu não lhe contei isso — disse, assombrado.

— Não é a primeira vez que alguém perto de você acaba assim, não é mesmo? — a menina o provocou.

— Do que está falando? Quem é você?

— De novo esta pergunta, homem? — a menina tomou o sobretudo de suas mãos bruscamente e vestiu-se com ele. — Você não cansa, não?

Então de súbito estava ali, diante dele, o mesmo perscrutante e castanho par de olhos. Nada mudara em seu rosto — os mesmo hematomas e inchaços, as mesmas feridas lavadas —, mas só agora notava que se tratava da mesma pessoa. O homem poderia ter se perguntado por que raios não reconhecera o seu mestre nela de antemão, ou como ela estava naquela floresta de espinhos, se estivera pouco antes na ponte quase moribunda. Contudo, o que primeiro veio à sua mente foi que “afinal, trata-se de uma mulher”, e por algum motivo aquela parecia a questão mais importante. E mais aterradora.

No mesmo instante sentiu uma pressão gradual em seu peito como se o seu coração estivesse tentando se encolher a ponto de sumir dando lugar a um vácuo engolidor de tudo. Seus pulmões e garganta também não iam muito bem, eles pareciam fechados, tornando-o quase incapaz de respirar ou tampouco falar qualquer coisa. Quando por fim emitiu algum som, para perguntar de novo “Quem é você?”, saiu uma coisa desajeitada, um urro, desafinado e triste, que o fez sentir ainda mais medo. Sim, medo; aquele que paralisa.

De algum modo aquela pessoa — mestre e/ou menina — conseguiu entendê-lo, uma vez que logo respondeu:

— Já que quer tanto saber, eu digo. Eu sou o único fantasma do qual você não pode se livrar...

De repente ela estava junto ao seu ouvido. — ...Sua consciência! — sussurrou.

As pernas do homem fraquejaram, o que o levou ao chão.

— Eu sou a parte mais importante do ser. A que bate de frente com o irracional e que conversa (ou esbraveja, ou tortura) o racional. Eu sou o que pesa em seus ombros, espreme o seu peito, ata sua garganta. Eu sou a centelha divina que habita o espírito, a partícula de Deus (muito menos misericordiosa que Ele, diga-se) que o mede e o julga. Eu faço parte de sua existência e o subjugo. Portanto, você não pode se ver livre de mim quando bem entender, no entanto eu, ah!, eu posso abandoná-lo no oceano do esquecimento no exato momento em que me der no saco.

Ela chutou o homem caído e pisou em sua cabeça.

— Você não se lembra, não é? Nem do seu próprio nome. Nem desse rosto familiar — disse enquanto deslizava os nós dos dedos pela sua face machucada. — O rosto de sua filha.



Caminhos de Céu e InfernoWhere stories live. Discover now