QUARENTA E QUATRO

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   Quando você se apaixona, internamente, acredito que o cérebro e o coração fazem um tipo de acordo. Algo que dê a possibilidade de uma pessoa, — qualquer uma a qual você resolva cair de amores, — tenha, em implícito, a posse da escolha de te magoar. Imagino ambos em uma mesa de negócios, olhando-se de maneira séria e o cérebro, com a expressão fechada, dizendo para o coração "você tem duas escolhas, parceiro, virar as costas e ir embora, ou continuar no meio dessa sinuca de bico esquisita com a probabilidade enorme de se machucar". 

   O coração pestanejaria e soltaria um suspiro apaixonado demais até para ilustrar, falando um "por Beltrano? Eu fico até o fim, haja o que houver, não importa o que acontecer." Para no tão citado "final", se encontrar no meu atual estado. Entalada com enormes pedras na garganta — figurativas — indo dormir na mesma cama, junto ao homem que adicionou mais um solavanco a minha já tão conturbada vida.

  Eu tinha os meus motivos para manter distância de relacionamentos durante todo esses anos. Não foram só as coisas mal resolvidas entre os meus pais que me fizeram ter uma visão completamente diferente sobre casamentos, mas também o fato da minha intensidade poder assustar as pessoas. 

  Vocês viram no começo do livro como eu agi em relação ao Marcel. Simplesmente não aceitei sua falta de interesse momentânea, acabando por sossegar o facho quando notei que nós não combinávamos. Sou quente demais, pessoas mornas ou frias me afastam e me deixam maluca. 

  Gosto de gente que explode, demonstra, enlouquece. 

  Mas o Guilherme, bem... 

  Ele é o vácuo perturbador do silêncio e o caos que o barulho traz. 

  Sem o contrato, o Imperium estava suscetível a golpes. Isso significava que todo o suor que o maluco, — vulgo Pai do Fragoso — dedicou àquele lugar iria ser em vão e cairia em mãos bem erradas. Os projetos sociais aos quais tanto me esforcei para criar e arrisquei minha garganta para manter se afogariam no mar de materialismo da nova Diretoria. 

  E se, para salvar a memória do lugar que me acolheu e me ajudou a cuidar dos meus pais mesmo naquela época, sendo uma adolescente que nunca havia trabalho na vida, abriram as portas para mim e me deram a oportunidade de mostrar que poderia ser competente, eu tenha que casar com o Guilherme, eu o farei. 

E falando nele, outro ruído perturbador vindo do banheiro me fez respirar fundo. Ele estava a minutos vomitando lá, tanto que eu tomei banho no banheiro social. Eu queria ajudá-low? Sim. Mas ainda sentia as coisas recentes demais. Afinal, ele obviamente achou que ia dobrar a Jess com sexo. 

Logo depois de ter me dito que não o faria. 

O que mais me doía era a mentira. 

O silêncio repetino me deixou preocupada, mas logo passou quando o quarto foi preenchido com o som do chuveiro ligado. Soltei o ar e procurei me ajeitar na enorme cama king size. Nós poderíamos facilmente dormir confortáveis e afastados ali. Hoje, não tive nenhuma animação para colocar camisolas provocantes, só um dos meus shorts de renda e uma camiseta EXG escrita "I ♥ MY DOG". 

  Na situação que me encontro, nem sei de qual dos cachorros que estou falando, se é do que está deitadinho nos pés da cama, brincando com um ursinho azul ou se é o que está saindo de toalha do banheiro. 

  É, ponto para o Fragoso. 

  Aposto que na cabeça dele, sair de toalha era uma tática de guerra para reconciliações. A água caindo e desmanchando sob os gominhos de músculos no abdômen, o cheiro de loção pós barba, misturado com o "fresh" do creme dental. 

Ok, tenho que admitir que o show de sensações até é tentador. 

Peguei um dos livros de cabeceira que havia deixado lá, suspirando copiosamente. 

— Eu não transei com a sua prima. 

Não pude reprimir a risada.

— E o meu nome é Pintonilda Josefa. — resmunguei, caçoando. 

Ele bufou.

— O que tenho que fazer para que acredite? — respondeu, exasperado — Aquela maluca me deu praticamente um Boa Noite, Cinderela. 

— Coisa que não teria acontecido caso tivesse recusado o convite — dei de ombros, tirando os olhos do livro para encará-lo. — Nem sei porque acreditei nesse papinho de mudança. Galinha uma vez, galinha sempre. Cansou de pegar uma mulher inexperiente, Fragoso? 

Guilherme arregalou os olhos.

— Você realmente acha que eu trocaria as fodas maravilhosas que tivemos nesses últimos dias por um momento com a sua prima doida? Pensei que me conhecesse, Joyce! — ele realmente estava bem desesperado. 

Soltei o ar, o ignorando. 

Fragoso se virou, livrando-se da toalha. 

E é claro que o livro perdeu toda a graça. 

Aquela bunda parecia ter sido escupida por algum artista renascentista muito inspirado. As costas com os músculos delineados e os fios negros já tomando um comprimento que cobria a nuca deliciosa. 

Como cogitei ficar com o Marcel tendo esse homem por perto todo santo dia? 

— Nós sabemos que eu tenho plena consciência de que está encarando a minha bunda, perguntando a si mesma se foder comigo agora poderia fazer com que esqueça isso e acabe deixando passar uma suposta traição. — resmungou, apertando o botão para abrir o closet, observei a cena — Uma traição que nunca aconteceu e que está fantasiando. 

Engoli a seco, irritada por ele sempre saber o que eu estava pensando.

— Meu doce... — quando ele colocou a boxer mesmo? Estava tão perdida em pensamentos — Nós vamos nos casar amanhã, não faça isso com raiva de mim — tentou anuviar a voz. Ele estava tentando me dobrar? É sério isso? 

Pela enésima vez no dia, bufei alto.

Joyce... 

— Nós vamos casar, aparentar ser bem felizes na frente daquele amigo do seu pai e só. Você mentiu para mim e sinto te dizer que um "meu doce" falado de modo manso ou ficar nu na minha frente pode me fazer ficar de calcinha molhada, mas não vou te perdoar de uma hora para outra. Na verdade, se aquela vadia não estivesse no meu apartamento e eu não amasse o que eu faço, teria ido embora á muito tempo. — externei tudo. 

Ele exibiu um sorrisinho fraco, deitando-se na poltrona que fica quase colada a cama. 

Guilherme apagou as luzes com uma batida de palmas. 

— Vou me casar amanhã. 

Eu também estava nervosa.

— Nem que eu precise chamar a Jessyca, vou provar à você que eu não fiz isso. 

E eu desejava ansiosamente por isso. 

Pelo menos, a esperança não havia me deixado. 

O Sabor Dos Seus Lábios - As Whiter'sDonde viven las historias. Descúbrelo ahora