CAPÍTULO 5

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Wys sentia todos os olhares sobre ele. Era como se todos soubessem o que ele fez e o pior, o que ele tentou esconder. Ele sabia que era paranoia, claro, mas mesmo assim manteve os olhos baixos e comeu em silêncio durante o almoço, tentando prestar atenção nas conversas que preenchiam o refeitório.

Ele ainda precisava descobrir uma forma de substituir o Ternisal. Seu truque com a tinta na noite passada enganaria apenas os olhares desavisados, mas qualquer um que tentasse usar o artefato perceberia o problema. Aquilo levaria a uma investigação da causa, e um feitiço de revelação mostraria tudo o que aconteceu naquela sala.

O grande problema, porém, não era o que tinha acontecido, e sim o que tinha causado o problema. Se Mestre Albar descobrisse o que ele andava fazendo, a forma desregrada com que vinha usando o Ternisal, aquilo poderia causar grandes problemas.

Existiam duas possíveis soluções. Substituir o Ternisal rapidamente para não levantar suspeitas. Ou impedir que as pessoas entrassem naquela sala pelos próximos dias. Feitiços de revelação, mesmo feitos por magos poderosos, tinham seus limites e só conseguiam revelar informações com clareza até certo tempo no passado. Se mais de uma semana se passasse, era possível que as informações se embaralhassem e Wys conseguisse se safar.

Mas é claro que ele não poderia arriscar.

Ele não sabia mais se queria se tornar Mestre, nem se queria se tornar Alto-Cyfar, como a conversa entreouvida na noite passada havia sugerido.Mas ele também não sabia se não queria.

Uma coisa crucial sobre o processo de se tornar Mestre era o fato de ele não poder ser interrompido. Era algo contínuo, uma jornada de aprendizado que deveria seguir de forma ininterrupta por cerca de dez anos da vida do indivíduo que pretendia se tornar Mestre. Não existia espaço para dúvida, apenas para certeza. A maioria dos Cyfares que desistiam do processo o faziam depois de, no mínimo, cinco anos, após ponderar cuidadosamente sobre todas as alternativas.

No fim das contas, se a punição determinada pela transgressão de Wys causasse a interrupção de seus estudos para se tornar Mestre, ou manchasse sua reputação e o tornasse inelegível, seria um caminho sem volta.

Agora ele precisava arrumar um jeito de resolver aquilo. Precisava de um novo Ternisal, e rápido.

Ele deixou o refeitório tentando parecer calmo e tranquilo. Esbarrou em alguns colegas que o cumprimentaram e tentaram puxar assunto, mas se desvencilhou facilmente dizendo que estava atrasado para uma reunião com Mestre Albar. Ninguém questionaria aquilo.

Seguiu para seu quarto querendo fugir de qualquer contato humano, mas então alguém o chamou.

— Cyfar Wys! — gritou a voz do outro lado do corredor.

Wys se virou e viu um aprendiz que não devia ter mais que treze anos vindo em sua direção.Wys parou e esperou o garoto alcançá-lo.

— Cyfar Wys — repetiu o garoto —, Mestre Albar está te chamando na sala dele.

Ele gelou. Teria sido pego? Não, não... Não tinha como saberem que ele tinha feito aquilo, ao menos não ainda. Um feitiço de revelação teria levado muito mais tempo, mesmo para Mestre Albar...

Ele notou que o aprendiz ainda olhava para ele, esperando uma resposta.

— Obrigado— Wys respondeu, sem conseguir lembrar o nome do garoto.

Não tinha como fugir, ele precisaria enfrentar Mestre Albar.

Ele seguiu pelos corredores pensando em desculpas, justificativas, mas a sala do Mestre não era tão longe, e ele não conseguiu pensar em nada que parecesse convincente.

— Entre, Cyfar Wys — disse a voz dentro da sala, antes mesmo que ele batesse na porta.

O cômodo era arredondado, da mesma pedra clara que o restante do prédio. Uma estante de madeira e uma mesa eram os únicos móveis no lugar.

Mestre Albar estava sentado diante da mesa, apenas uma silhueta diante da enorme janela atrás dele.

— Queria me ver, Mestre? — Wys perguntou, ainda de pé à porta.

— Sente-se, por favor. — O mestre indicou a cadeira diante dele.

Wys engoliu em seco, mas obedeceu.

— Cyfar Wys — começou o mestre —, recebemos uma mensagem muito importante do palácio informando que o atual Alto-Cyfar irá deixar o cargo em algumas semanas. A rainha me incumbiu de selecionar um novo Alto-Cyfar que, como você sabe, deve compor o Conselho Real junto dos outros dez conselheiros.

Wys não sabia se estava aliviado ou ainda mais nervoso. As feições enrugadas do mestre eram suaves, e ele continuou:

— Você foi, sem dúvida, meu aprendiz mais talentoso em décadas, e já demonstrou seu talento inúmeras vezes em seu pouco tempo como Cyfar. E eu acredito, seria um excelente Alto-Cyfar. Então gostaria de recomendá-lo, se for de sua vontade.

Wys encarou os olhos pálidos do mestre por alguns instantes, sem ter uma resposta.

— Não sabia que era possível se tornar Alto-Cyfar com minha idade, Mestre.

O senhor idoso deu de ombros.

— Nunca acontece, mas não é proibido. Além do mais, temos uma rainha jovem e progressista, então nada mais adequado.

Wys engoliu em seco e mediu as palavras.

— Seria uma honra para mim, Mestre — ele disse, enfim —, mas creio que preciso de algum tempo para pensar.

— Claro, claro. — O mestre apoiou os cotovelos sobre a mesa, olhando um papel diante de si. — A decisão é sua, Cyfar Wys, mas temo precisar de uma resposta em menos de uma semana.

Wys conteve um suspiro.

— Tudo bem, Mestre. Te darei a resposta antes disso.

— Certamente.

O mestre se recostou na cadeira novamente e Wys pôde ver melhor o papel que havia diante dele. Era uma carta escrita em uma caligrafia elegante e, no fim, havia o carimbo real. Era uma carta da própria rainha.

— Isso é tudo, Cyfar. Está liberado.

— Obrigado, Mestre. — Wys se curvou respeitosamente antes de se retirar da sala, tentando parecer calmo.

Quando chegou aos corredores, seu coração disparava tão rápido que ele tinha a impressão de que qualquer um que passasse por ele conseguiria ouvir.

Ele não sabia se queria ser Alto-Cyfar. Mas se aceitasse a proposta, a situação com o Ternisal poderia arruinar tudo.

Ele precisava resolver aquilo, e rápido.

De volta a seu quarto, Wys se jogou na cama, frustrado. Encarou o teto por vários minutos, sentindo sua cabeça girar. Como se não bastasse suas dúvidas incessantes sobre tudo que dizia respeito a seu futuro, sua lista de problemas só parecia crescer.

Ele fez seu melhor pra deixar de lado o dilema da proposta de Mestre Albar enquanto pensava em uma solução para o problema do Ternisal.

Ele sabia que a única forma de substituir o Ternisal quebrado seria comprar um novo. Mas não fazia ideia de onde se encontrava esse tipo de artefato. Certamente não era algo que se comprava casualmente em uma loja comum. Ele sabia, porém, que era possível encontrar quase tudo que se imagina no mercado Submundo. Sabia também que, apesar de ser a opção mais rápida, era também muito arriscado. Aquilo poderia deixá-lo em uma enrascada ainda maior.

Mas, independentemente de onde ele compraria Ternisal, ele precisaria conseguir dinheiro.

Apesar de Cyfares e Mestres terem direito a acessar os fundos da Ceita Lassar por motivos pessoais, de acordo com seu tempo de atuação e serviços prestados, ele não poderia pedir qualquer quantia aos tesoureiros sem levantar suspeitas. Ele precisaria a pelar para outra fonte de renda.

E mais uma vez ele sentia-se impelido a se voltar ao Submundo, pois só havia um lugar que ele conseguia se lembrar. Um local onde conseguiria toda a quantia necessária em pouco tempo. Um lugar onde ele nunca havia pisado, mas já tinha ouvido histórias o bastante para saber que existia de verdade:

As Covas.

As Crônicas de Adhelar - Livro 1 [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now