CAPÍTULO 9

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Wys atravessou as ruas escuras de Kalamar a passos rápidos. O Templo ficava na divisa da região da Velha Kalamar com o Centro Comercial, e não era uma caminhada muito longa partindo do apartamento de Alee'Na. Ela morava no Vale das Pessegueiras, uma área relativamente nobre, povoada por artistas, escritores e sábios que viviam em apartamentos não muito diferentes do dela.

Ele se perguntou como uma rata das Covas conseguia manter aquele estilo de vida, mas percebeu que, provavelmente, esse era o motivo para ela precisar tão avidamente do dinheiro.

Wys deu a volta pelos muros do Templo e entrou pelo pequeno portão por onde havia saído pouco depois do toque de recolher. Nos jardins, perto de uma moita, ele tinha deixado uma pequena pilha com suas roupas de Cyfar. Trocou-se rapidamente e colocou os trajes de batalha em uma sacola de pano. Jogou a sacola sobre o ombro, garantindo que o colar de Alee'Na estivesse devidamente escondido sob a manga de sua túnica azul, e partiu em direção a seu quarto.

Os corredores estavam desertos, como sempre ficavam naquele horário, apenas iluminados pelas pedras mágicas.

Faltava pouco para ele chegar a seu quarto quando o eco dos corredores denunciou que mais alguém estava por perto.

Wys se escondeu nas sombras atrás de uma pilastra segundos antes de duas pessoas virarem a curva diante dele.

Ele pôde ver Mestre Albar acompanhado de Maretta, uma Cyfar mais velha de trinta e poucos anos. Eles caminhavam lado a lado conversando baixo.

— Sinto hesitação por parte de Cyfar Wys —disse o mestre.— Caso ele recuse, sua decisão será crucial, Maretta.

— Será uma honra, Mestre — disse a mulher —, mas com todo o respeito ao senhor, gostaria de saber porque sou sua segunda opção. Tenho muito mais experiência. Além de que, Cyfar Wys já demonstrou que pode ser um tanto quanto... imprevisível.

O mestre suspirou, mas não hesitou em responder à pergunta.

— Não tenho dúvidas de sua capacidade, Cyfar Maretta, porém, conhecendo Wys e conhecendo a rainha, sei que essa união de forças seria positiva para ambos. Além disso, você está em uma etapa crucial de seus estudos para se tornar Mestra, e não poderia ficar muito tempo no cargo.

— E teme que ele recuse sua proposta?

— Cyfar Wys está passando por um momento de conflitos e acredito que uma posição importante como a de Alto-Cyfar o ajudaria tremendamente. Porém, essas mesmas dúvidas talvez turvem seu julgamento para fazer essa escolha.

— Não quero contrariar sua decisão, Mestre — os dois estavam diante de Wys agora, mas pareceram não notar sua presença —, mas não seria o caso de aproveitar esse período em que eu seria Alta-Cyfar para preparar Cyfar Wys para assumir minha posição quando eu me tornar Mestra?

— Sei que você não irá contrariar minha decisão, Maretta, e por isso também irá compreender que não posso revelar mais sobre ela nesse momento.

— Claro, Mestre.

— Então vamos aguardar a decisão do nosso jovem Cyfar. Logo saberemos qual será o próximo passo a ser dado.

Wys esperou os dois virarem a curva no fim do corredor antes de sair de seu esconderijo e disparar rumo ao seu quarto.

As palavras de Maretta ecoavam na mente dele como uma afronta. Ele sabia que era perfeitamente capaz de ser Alto-Cyfar. Sua capacidade não havia sido, em momento algum, o motivo de sua dúvida. Mas agora Wys estava decidido.

Daria a resposta a Mestre Albar no dia seguinte. Aceitaria a proposta e se tornaria Alto-Cyfar.

***

Valenttia acordou sobressaltada com uma forte dor na cabeça. A sensação era como a de agulhas penetrando seu crânio.

Nunca tinha doído tanto.

Ela se desvencilhou dos lençóis molhados de suor e se sentou na beirada da cama. O tônico receitado pelo curandeiro estava sobre a mesa de cabeceira. Valenttia pingou algumas gotas do remédio em um copo d'água, como recomendado, e bebeu tudo de uma vez. O efeito era rápido e, em poucos segundos, ela já pôde sentir algum alívio na dor.

O quarto girou um pouco quando ela ficou de pé, foi até a janela e a abriu. O ar frio da noite a atingiu, mas ajudou a diminuir a dor um pouco mais.

Valenttia pesou o corpo sobre o parapeito da janela e fechou os olhos. Tocou a moeda presa ao colar em seu pescoço, a mesma moeda que encontraram nas mãos dela quando era bebê. O objeto era como um amuleto da sorte, que ela não tirava por nada.

A sensação de agulhas em sua cabeça ainda persistia, mas agora ela conseguia pensar novamente.

E se preocupar.

Ela nunca havia sentido uma dor tão intensa em toda sua vida. Suas mãos tremiam e seu corpo estava gelado sob a camisola molhada diante do vento frio. Ela pensou em chamar alguém, solicitar um curandeiro imediatamente, mas suas ideias estavam começando a voltar para o lugar, e ela temeu que aquela não fosse uma boa opção.

Boatos sobre sua saúde se espalhariam como fogo na palha. Precisava ser cuidadosa. Sua força desde seu renascimento era, sem dúvida, um dos alicerces que sustentavam seu reinado. Um alicerce fundamental, que não podia ser abalado.

O frio da noite se tornou excessivo para suportar e Valenttia fechou as janelas novamente. Acendeu uma lamparina e a luz bruxuleante tomou conta do enorme cômodo. Inquieta demais para se deitar novamente, ela andou de um lado para o outro.

Se contasse a Aler'Ich sobre aquilo, ele se preocuparia ainda mais. Talvez buscasse ajuda sem o consentimento dela, o que faria a notícia se espalhar. Ela não poderia simplesmente pedir a Milliard que chamasse outro curandeiro, mesmo sabendo que ele faria de tudo para conter a informação. Talvez o mais seguro a se fazer fosse esperar mais alguns dias. Caso o quadro daquela noite se repetisse, ele chamaria outro curandeiro. Talvez um especialista vindo de Alte Makir.

Estava analisando cuidadosamente as possibilidades quando parou diante do espelho. As gotículas de suor brilhavam sobre sua pele clara. Seus cabelos cor de sangue se grudavam ao suor em suas têmporas. Seus olhos escuros, sempre vívidos e acesos, pareciam fundos e opacos.

Ela respirou fundo e passou as mãos pelos cabelos, tirando-os do rosto. Mas então viu algo que não estava ali antes: uma mecha saindo da parte de trás de sua orelha esquerda, que não possuía o tom de vermelho vivo do restante dos fios. Em vez disso, era negra como carvão, a cor que seus cabelos tinham quando ela nascera; antes de sua morte e retorno à vida.

Valenttia viu seus olhos se arregalarem em seu reflexo enquanto ela pegava a mecha entre os dedos e a analisava de perto. Não tinha o brilho vivo e saudável do restante de seus cabelos. Ali os fios pareciam fracos e quebradiços.

Aquilo seria um pouco mais difícil de esconder do que uma dor de cabeça noturna. Mas ao menos agora ela sabia o que precisava fazer.

Iria ver Mestre Albar no dia seguinte.

As Crônicas de Adhelar - Livro 1 [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now