Um

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Valentim Del Torre

Estava intragável, não havia um dia em que eu saísse de casa sem ter me desentendido com Vivian. A mulher sentia ciúme do ar que eu respirava e do chão que eu pisava. Fazia seus melodramas pelo menos dez vezes ao decorrer do dia. Por esse motivo eu procurava passar todas as horas dentro do hospital e longe dela. Pegava um plantão atrás do outro, até dormia no meu consultório.

Eu não a odiava mas possuía um sentimento muito pior, pena.

  — Nem um beijo, querido?— perguntou-me assim que peguei a minha maleta e caminhei para a garagem. 

— Estou atrasado — olhei o relógio em meu pulso querendo sair o quanto antes.

Ela abaixou a cabeça e consentiu. 

Vivian tinha deixado sua autoestima se esvair com o vento há anos. Mesmo tendo uma beleza escultural, ela estava descuidada porque só se preocupava em saber sobre como eu me sentia e qual era o tamanho do meu amor por ela. Sua vida era em prol da minha. Obsessão.

Me sentia um imbecil retratando isso mais uma vez, como todas as manhãs anteriores. Até quando eu aturaria e reclamaria sem tomar nenhuma decisão? Um covarde, com doutorado e tudo.

— Fala, doutor — Álvaro, o responsável pela área de gastroentereologia e metabologia do hospital chegou tocando meu ombro com um soco.

— A equipe já chegou?

— Estão com as crianças, aquela loira veio e está deslumbrante. Preciso conseguir o número dela — meu amigo suspirou, sonhador.

Tínhamos vínculo com uma companhia de teatro, que duas vezes por semana visitava as crianças para proporcioná-las um momento de alegria, já que viver dentro de um hospital não era nada animador. Alguns voluntários se juntavam aos artistas da escola e a ala virava uma bagunça, uma bagunça boa.

— Doutor Valentim — dois enfermeiros acenaram com a cabeça para mim, parando em minha frente — Estão chamando-o para assistir a peça de hoje.

— Claro, tenho um assunto para tratar antes, e então irei para lá.

Sorri para ambos. Inflei minha postura, sabendo que a reunião seguinte seria um caos. O administrador financeiro do hospital era o ambicioso do meu irmão, que nunca aceitou o fato do nosso pai ter deixado o hospital em minhas mãos.

Saulo de longe era alguém fácil de lidar. Na infância tínhamos problemas de convivência, na adolescência ele se tornou alguém revoltado e violento. Depois da morte do nosso pai, colocou seu verdadeiro eu para fora, mostrando toda a sua ganância e interesse pelo dinheiro.

A conversa foi longa e exaustiva. Saulo reclamava dos pacientes que tinham pendências financeiras com o hospital ao longo dos tratamentos. Eu não me importava, dinheiro não era um problema para nenhum setor. O fato é que ele queria sempre mais, se não fosse por mim e pelo subdiretor, Saulo extorquiria os pacientes. Nossas conversas eram movidas a contrariedades, e opiniões completamente diferentes. Consigo vinha toda a energia negativa, e eu tentava ser breve todas as vezes que nos encontrávamos.

A associação oferecia uma sala de aula ampla para as crianças com câncer, onde todas, de diversas faixas etárias, se reuniam para aprender e recrearem. 

Entrei em silêncio porque a peça teatral havia começado. Todos estavam em suas cadeiras, os mais debilitados permaneciam conectados no soro com os cateteres heparinizados. Estavam felizes independente do estado de saúde que cada um possuía. E essa alegria típica de criança contagiava o ambiente. Eles adoravam os dias em que a companhia os visitava. 

Princípio Vital DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now