Capítulo um

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O sol ainda nem havia dado os primeiros sinais e lá estava eu e mais uma dezena de criadas, ainda sonolentas, aguardando a autorização da Sra. Raquel para entrar nos aposentos da rainha.

O nervosismo entre nós era comum, já que a Rainha Beatriz não era o que podíamos chamar de alguém doce e gentil. Tínhamos que agir perfeitamente, ou ela gritava, beliscava e estapeava quem estivesse em sua frente.

Porém, hoje a tensão era maior. Visto que ela escolheria uma de nós para acompanhá-la ao reino de seu futuro marido, Afonso de Bragança.

-Espero que ela me escolha. - Cochichou Olívia, rindo baixinho. -Acha que estou vestida comportada o suficiente?

A analisei.

Todas nós usávamos um uniforme padrão: Vestido que nos cobria até os pés, um avental e uma toca, uma combinação de preto, cinza e branco.
Olívia, porém, ajustava-o na cintura e aumentava o decote o bastante para insinuar os seios.

-Tu terias mais chances se não estivesse usando batom. - Ela esfregou os lábios com a manga. - E se fosse muda. Lembra o que disse a respeito do noivo dela?

-Fui sincera. Ele é muito bonito, vi na pintura que nos enviaram.

-Foi sua sentença. - Eu disse, e ela suspirou.

Sra. Raquel se aproximou rapidamente, abrindo caminho entre as criadas e empurrando a porta sem se importar em fazer barulho. Foi até a janela, abriu as cortinas e se virou para a cama da rainha Beatriz.

Ela nem se mexeu. Continuou dormindo pesadamente, com os longos cabelos louros cobrindo o rosto.

-Majestade. - Sra. Raquel começou, com um tom ameno. -Está na hora.

Silêncio.

-Ó céus, o que direi ao rei, seu noivo? - Começou ela, com seu discurso matinal. - Que ficou até tarde acordada e não está preparada para seu dever, que já adiou diversas vezes.... Acredito que ele ficará decepcionado. Ó céus...

-Meu Deus! - Beatriz resmungou, apertando o travesseiro sobre a cabeça. - Ainda está cedo.

-Está para amanhecer, e a senhorita deve estar na carruagem dentro de duas horas. Há muito o que se fazer. Banhar-se, arrumar os cabelos, fazer as unhas, alimentar-se, vestir-se....

Sra. Raquel era a única que a repreendia sem apanhar. Cuidava dela desde que a rainha Mãe havia morrido há anos.

-Se eu levantar, vai calar a bendita boca? - Beatriz sentou-se na cama. Seu rosto parecia amassado e seu olhos e lábios estavam borrados de maquiagem.

Sra. Raquel pulou, surpresa pela aparência da rainha. Se aproximou, passando o dedo na mancha de batom na lateral dos lábios de Beatriz. Esfregou os dedos por um segundo e a fitou:

-Quantas vezes preciso lhe dizer para tirar a maquiagem antes de dormir? Olha tua aparência! Parece uma prostitutazinha de rua. - Beatriz empurrou a mão dela. - Claro que a diferença é que.... - Sra. Raquel baixou a voz, mas eu, estando por perto, pude ouvir. - Prostitutas recebem dinheiro pelo serviço. Devia ter vergonha. Pobre da tua mãe, que deve estar se revirando no túmulo.

-Cale a boca! - Disse Beatriz. Então ela olhou para mim e demorei um segundo para desviar o olhar. -O que está olhando, santinha? Sai daqui, vai fazer algo que preste. Antes que eu esfregue teu rosto no tapete.

Pronto, ela havia me escolhido para descontar sua raiva. Como se isso fosse novidade. As outras até pareciam mais aliviadas, já que hoje era o dia de escolher a criada que acompanharia Beatriz para a corte. E eu já estava riscada da lista, não que eu me importasse.

-Sim, majestade. - Fiz a mesura e me retirei. Troquei um olhar com Olívia, que sorriu para me consolar.

Nos dividimos em tarefas pelo quarto, e eu escolhi cuidar do vestido. O retirei do armário e estendi ele sobre a poltrona mais próxima. Me permiti admirá-lo. Era rosa, com rendas no decote e na armação discreta.
Lembrei-me dos que eu usava antes da minha queda social. Meu padrinho, o pai de Beatriz, fazia questão que eu usasse o melhor vestido em qualquer ocasião. Eu gostava dos de saias bem armadas e de combiná-los com sapatos forrados de seda.

Mas isso já fazia muito tempo...

-Saia de perto do meu vestido. - Começou a rainha, me retirando das minhas lembranças. -Vai sabotá-lo? Ou invejá-lo a ponto de ele se desmanchar?

-Não, majestade. - Me afastei.

-Anastácia, querida. Pegue as joias dela e me traga aqui. - Disse Sra. Raquel. Se virou para Beatriz. - E a senhorita vai para o banho.

A rainha bufou e foi o banheiro.

-Não se importe com o que essa megera diz de ti. - Sra. Raquel me abraçou de lado.

Eu sorri, lhe entregando o porta-joias.

-Devo admitir que fico feliz em lembrar que não a verei por um longo tempo. Talvez nunca mais.

-Ah, querida. - Ela acariciou meu rosto. - Ela vai embora, mas tu...

-SE PUXAR MEU CABELO OUTRA VEZ EU TE MATO! - Beatriz gritou, no banheiro, para alguém.

Sra. Raquel saiu em socorro da criada. Minutos depois Olívia saiu, gargalhando. Estava sem toca e seus cabelos molhados.

-Ela tentou me afogar! - Ela riu. - Puxei aquele cabelo com vontade. Valeu a pena.

-Tu és maluca! - Mas eu ri também.

Tempo depois rainha Beatriz estava pronta, toda pomposa. Seus cabelos estavam presos em uma trança elaborada até a cintura e ela usava um leve pó rosado nas faces. Calada e vista de longe, até parecia angelical.

-Agora escolherei quem irá comigo. - Ela começou a falar, andando de um lado a outro.

-Na verdade, majestade. - Sra. Raquel começou. - O rei decidiu.

-Como assim ele decidiu? - Beatriz uniu as sobrancelhas. - Ele disse-me em carta que eu escolheria.

Sra. Raquel estendeu uma carta lacrada com o símbolo real em cera. Demorei para notar que o selo, na verdade, estava rompido.

-Eu já a li, como faço com todas as correspondências reais. - Disse ela. - O rei Afonso disse que quer que tu leves Anastácia.

Eu? Não podia ser verdade. Esperei que ela desmentisse e confessasse se tratar de uma anedota.

Beatriz me encarou e riu. Abriu a carta, a leu e me encarou.

-Tu és uma bruxa! Eu sempre soube disso. Como fez isso? - Seus olhos ficaram vermelhos de ódio. -Pediu para ele, não?

-Não fiz nada! - Respondi, mas não a acalmou. Olhei para Olivia que, ao contrário do que eu pensava, não estava com raiva por eu ter sido escolhida. Estava se divertindo com a cena.

-Fez sim! Farei da sua vida um inferno! Se prepare!

-E como eu saberei a diferença? - Perguntei, sem conseguir me conter. Um segundo depois as mãos dela estavam agarrando meu pescoço.

Sra. Raquel a empurrou para longe.

-Devo te alertar mais uma vez que em Saream não é tolerado o desrespeito com ninguém, muito menos com a criadagem. Se continuar se comportando assim, será devolvida. Não haveria vergonha maior.

Beatriz saiu, me xingando baixinho. Olívia me abraçou e me ofereceu água.

-Eu só poderia aceitar perder essa chance para ti, minha amiga. Tu mereces. - Ela sorriu. - Me escreva com frequência, está bem? Logo eu vou visitá-la.

-Não sei se quero ir. - Tossi.

-Vai sim. - Disse Sra. Raquel. - Não precisa levar mala, receberá roupas novas na corte, assim como Beatriz. Boa sorte, minha querida.

Ofeguei.

-Deus te ouça.

Além dos Muros do PalácioWhere stories live. Discover now