IV - A silhueta na noite

210 67 526
                                    


Eu ouvia apenas o silêncio enquanto meus olhos, muito acordados – eu tinha certeza – acompanhavam os cachos harmônicos da silhueta esgueirarem-se, como se ela inteira flutuasse pelas sombras. Apesar do clima macabro que isso pode vir a passar para você que me acompanhou até este ponto da narrativa, lhe prometo, eu não sentia nenhum temor. Alguma coisa inquietante na presença daquela sombra me confortava, como deitar após um dia cheio em uma cama de flores e contemplar as estrelas pontilharem o firmamento escurecido. 

Por alguns instantes, senti uma ansiedade gostosa, daquelas que costumamos sentir quando ainda somos crianças e nossas mães prometem nos levar ao parque no final de semana. Quando eu era criança esses momentos eram raros, mas tão preciosos! Lembro de ir dormir cedo na véspera, mas deixar minha luz noturna acesa na cabeceira; O abajur que meu pai fez com suas próprias mãos – era um homem habilidoso, Austin Jones – possuía furos vazados em forma de foguetes, e quando a lâmpada estava acesa, a base da luminária girava suavemente, fazendo com que os foguetinhos se projetassem enormes por todo o quarto escuro que eu dividia com um de meus irmãos, o caçula. Ele me deu esse abajur cinco dias depois de eu dizer que quando crescesse, queria ser astronauta. E sete antes de morrer naquele assalto. Eu o tenho até hoje.


Estou me dispersando, estou me permitindo esquecer. Sua voz, seu cheiro, sua risada. Tudo é tão vago agora, que em alguns momentos, é como se fosse nada. Pode parecer cruel e injusto, mas só quem perdeu alguém sabe o quanto é mais fácil fingir que nada aconteceu para manter sóbrios os dias que vem pela frente, e esta, meus amigos, é uma história sobre perdas. Nada disso faz sentido algum, mas é real, e era real que eu sentia aquela ansiedade que me impedia de conseguir dormir na véspera do parque. Aquela ansiedade que nos traz sensação de que algo mágico está escalando de nosso estômago até nossa garganta. Aquela sensação de que não se controla mais o corpo da cintura para baixo. 

Enquanto a peregrina da noite ocultava-se de minha visão, eu queria vê-la mais, queria saber o que desejava de mim, ansiava por ouvir novamente o que acreditava ser sua voz. Sentia que nossos destinos – voltamos a falar desse jocoso personagem, o destino – estariam sutilmente conectados por tempo maior ao que eu existia. Demorei para notar a voz sussurrante de Josephine, que vinha de onde emanava uma pequena luz azul de tela de celular.


-A.J? Tá tudo bem? Você tá bem? - Minha diretora e amiga quis saber, pois eu a essa altura já havia me apoiado nos cotovelos e erguido metade do corpo para enxergar melhor.

-O que? - Nadei de volta para a margem de meus pensamentos como se um predador marinho me perseguisse. -Sim, estou bem, só... - Logo eu, magnata das palavras, sem saber explicar o que me acontecia. Era meu, não dividiria com ninguém. -Só tive um sonho estranho. Vou voltar a dormir.

Joey apenas concordou com a cabeça e me deu as costas, girando ser levantar-se do banco improvisado de pedra, retornando à sua vigília noturna.

Quando voltei a olhar onde ela estivera, já não havia mais nada lá. Suspirei em tristeza, com a alma faminta, não de comer, mas de saber, de ver. De compreender os eventos inexplicáveis que estavam entranhados naquele lugar. Nela, na sombra que me alertara para sair dali. Sequer tive tempo de lamentar seu desaparecimento, ela apareceu clara e lucidamente ao meu lado. Sua forma era ligeiramente transparente e fantasmagórica, mas estava ali, visível para mim. Eu soube que ela e eu não pertencíamos ao mesmo mundo no instante em que a vi. Em um impulso, falei em inglês. Não lembro exatamente o que perguntei, mas perguntei, em um sussurro, algo como what are you*? Mas ela apenas inclinou a cabeça para o lado como um cachorro confuso e sorriu de modo cínico.

Um galeão de sonhosWhere stories live. Discover now