IX - A rota de fuga pt 1

95 23 132
                                    

 A noite caiu sobre nós, cumprindo seu ciclo tal qual haveria de acontecer. O céu escuro era uma imensidão de breu, cintilando estrelas brancas e brilhantes. A lua estava alta no firmamento, e as nuvens possuíam aquela tonalidade arroxeada, que anuncia os temporais. Joey me sondava eventualmente, buscando descobertas que eu obtivera com Carmen, porém nada de mais esclarecedor ocorreu naquele dia. Ela se foi, pouco após a descoberta de seu nome, deixando-me ainda mais imersa em perguntas sem respostas.


Recolhemo-nos em nossas barracas de acampamento para passarmos a noite, visto que Aimée havia garantido que daria um jeito nas coisas. Mesmo na absoluta inquietude de meus pensamentos, a noite anterior em claro já começava a pesar-me as pálpebras. Assim que o sol se pôs, refugiei-me no conforto e privacidade de minha barraca, armada sobre a areia ainda aquecida pelo sol do dia. Fiquei ali, encarando o teto de lona verde-escuro, tentando buscar alguma explicação para tudo aquilo, e até mesmo questionando minha própria sanidade. Aos poucos, os barulhos de meus companheiros começava a abrandar, pois estavam bêbados e cansados. Meu corpo inteiro parecia pesar toneladas, e por vezes uma vertigem me fazia sentir como se estivesse flutuando no mar. Era pesado, como um barco de papel.


Acordei com aquele movimento oscilante, porém ritmado. Constante. Enjoativo. O ambiente inteiro se movia, como se não fosse estável. Não era, mesmo. Não demorei a descobrir.


Meus olhos abriram-se lentamente, com receio do que enxergariam. A fraca iluminação provinha de uma lanterna a óleo, que um dia foi de metal polido, mas que agora encontrava-se bastante amassada e suja. Estava presa a uma coluna de madeira que parecia firme, e ia do chão ao teto. Notei que diversas cordas estavam amarradas a ela, e acompanhando essas cordas com os olhos – algumas mais esticadas do que as outras – vi que em suas extremidades haviam diversas redes simples e da mesma cor, uma espécie de bege sujo. Eu estava em uma delas, e haviam algumas pessoas desacordadas em outras. O teto era de madeira escura, e mostrava inclinação característica.


Sentei-me lentamente na rede, e olhei meu próprio corpo. Eu trajava uma calça de linho simples, quase no mesmo tom que a rede, e uma camisa fina de algodão, mangas longas, grande em meu corpo. Meus pés estavam descalços. 

Havia um dos lados de meu chinelo de couro abaixo de minha rede, e o outro parecia ter ido parar próximo as dezenas de barris que dividiam espaço com o redário. Pisei com apenas um calçado sobre o chão de madeira fria. Caminhei automaticamente até meu outro calçado. Nas redes, velhos negros e brancos dormiam pesadamente. O ambiente inteiro cheirava a álcool exalando das peles e do chão. E a mijo também.


Caminhei tateando pelo escuro até encontrar uma escadinha que dava no andar de cima. Àquela altura, já estava claro para mim: eu estava em um navio. Dos grandes. Subi os poucos com as mãos e os pés, pois era uma escada de escalar. Cheguei ao convés da embarcação. Era noite. O céu estava claro e decorado de estrelas por toda parte. 


Era possível ver cada constelação que eu conhecia, e todas as outras que ignorava em minha rotina apressada. O mar estava agitado, e minúsculas gotas de oceano gelado respingavam em meu rosto, me enchendo de maresia. Sorri, sem saber direito o motivo. E então vi Carmen, que falava com um branco de roupas da marinha como se fosse sua velha conhecida. Carmen olhou em minha direção e sorriu, aquele sorriso lindo que só ela tinha. Nos olhamos nos olhos, mesmo distantes, enquanto ela parecia dar últimas informações ao homem que lhe ouvia com atenção.

Um galeão de sonhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora