XII - O roteiro

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Foi como a mulher do período Neolítico ao descobrir o fogo – gosto de pensar que foi uma mulher, me soa mais óbvio – que a ideia iluminou-me o imaginário, assim que meus amigos reuniram-se na praia para contemplarem a magnífica embarcação de Aimée Charpentier. Cumprimentei internamente a agilidade de meus pensamentos. Era o que eu fazia, afinal. Eu era roteirista, e se você que me acompanha neste relato também é um escritor, provavelmente conhece bem a sensação sublime da descoberta de uma nova ideia. O momento de iluminação que uma inspiração provoca é uma das mais satisfatórias emoções humanas, e apenas os criativos, de mundos muito largos, são capazes de experimentá-lo.


Vesper e eu agíamos como se nada houvesse ocorrido. Ela cumprira com sua parte no acordo silencioso entre nós, todas as vezes que voltávamos a envolver-nos. Foi Joey quem veio ter comigo algum tempo depois. Verificar-me. Josephine possui natureza protetora e guardiã, zela pelos seus, e sempre alarmava-lhe o fato de eu, na maioria das vezes, optava pelo isolamento em lugar da interação nos últimos meses. A verdade era que, embora me cercassem pessoas abastadas, que não conheciam dificuldades capitalistas, minha realidade era bem diferente. Eles, meus companheiros de viagem, gostariam de gravar um filme rentável em nome de seus futuros como cineastas. Eu, viajava com a mente imersa em preocupações para com as contas de minha casa, cada vez mais apertadas.


Minha mãe havia-me incentivado a fazer a viagem. O último projeto incrível para o qual eu havia planejado-me, ganhara uma das maiores premiações da indústria cinematográfica. Sim, ganhara, pois o segundo lugar também é uma vitória. Isso me rendera o convite para um contrato temporário de um documentário, que pagou bem melhor do que seis meses de trabalhos de meio período. E durou apenas dois para ser concluído. 


Minha mãe e eu permitíamos que a esperança nos abraçasse, e consideramos prudente que eu dedicasse minhas férias ao filme, e não a um segundo emprego para ajudar com as dívidas. No entanto, uma vez que as gravações no leprosário provaram-se inviáveis, apesar de toda a adrenalina que a história de Carmen e do galeão Santa Rosa provocava-me, eu não conseguia pensar em nada com clareza. Quando Joey disse para Aimeé que eu criaria outro roteiro improvisado, mesmo que soubesse que minha amiga falara em meu lugar na melhor das intenções, ela não tinha a menor ideia do peso que havia depositado sobre meus ombros. Eles, em sua maioria, não precisavam dos resultados daquele filme. Eu sim. Desesperadamente.


Porém, enquanto eu divagava sobre a conversa com Carmen, horas mais cedo, e a respeito também do que fazer com aquele espaço que tínhamos, com aquele cenário, com aquele iate que seria nossa casa nos próximos dias, uma frase que Aimeé me dissera voltou-me aos pensamentos de maneira esclarecedora e decisiva. Aquela sobre o equipamento de mergulho. Então, quando Joey sentou-se ao meu lado, enquanto eu rabiscava minha moleskine, sorri para minha amiga de modo sincero, e vi também seu sorriso espalhar-se em seu rosto como gota de orvalho que cai sobre a superfície espelhada da lagoa. Eu sabia que ela estava contente em me ver demonstrar felicidade. Era isso que lhe fazia feliz, também.


-Você me fodeu, sabia? - Provoquei em inglês, estranhando minhas palavras. Naquele dia inteiro, estranhei meu idioma natal. Era como se eu devesse falar português.

-Eu sei que deveria ter lhe consultado antes de dizer para a Aimeé que você criaria um novo roteiro, mas eu sei que você é capaz. E sei que esse filme era importante pra você... - Josephine já se desculpava, mas eu ainda sorria, o que claramente a deixava confusa, de acordo com a expressão em seu rosto.


-E ele é. E é por isso que eu tenho o plano de um novo roteiro. - Eu disse meio atropelando o que ela dizia. Não era um hábito, mas o momento pedia por isso.

-E mesmo que não seja... - Joey interrompeu-se, piscando algumas vezes e processando minhas palavras. O cérebro lutando entre lógica e memória para tornar a informação real. -Você tem outro roteiro? - Enfim, ela entendeu.


-Sim. Mas precisaremos de alguns recursos. E da autorização dos donos da história. - Respondi erguendo bem as sobrancelhas, induzindo Josephine a entender-me sem palavras específicas.

-E quem seriam? - Joey questionou, mas continuei em silêncio e de sobrancelhas erguidas. Ela chegaria lá. -Os pescadores? - Arriscou.

-Provavelmente, alguns deles, sim. Também. - Respondi concordando com a cabeça. Sim, eles sabiam de muita coisa, conheciam as lendas locais, as histórias que seus antepassados contavam. Nativos colaborariam, sim, mas não seriam o cerne de nosso novo tema.

-Então você está falando... de seus amigos fantasmas? - Ela perguntou enquanto fechava apenas um dos olhos, bem apertado, e me fitava com o que permanecera aberto. Eu gargalhei.


-Não tenho vários amigos fantasmas. Tenho apenas uma. - Quando eu disse isso, ainda rindo, senti em meu peito um conforto agradável, como um banho bem quentinho, em uma noite fria. -E bem, sim, caso ela me permita, eu gostaria de investigar seu passado, descobrir o que aconteceu com seu navio, e documentar tudo isso. Acredito que algo a prende a este plano, e quem sabe se sua história for contada, ela não encontre seu caminho para o recomeço do ciclo. Quem sabe, não foi por acaso que viemos parar aqui. Eu sinto essa história me chamar, Joey. Sinto ela me atrair como o canto de uma sereia! Sinto que, de alguma forma... - neste ponto, havia-me arrependido pela empolgação repentina. Como uma ideia que soa maravilhosa em silêncio, mas que quando proferida, funde-se a todos os outros elementos e circunstâncias presentes na realidade, e como uma reação química inesperada, murcha e desaparece, ou soa bem pior do que antes parecia. -É meu dever contar essa história. - Concluí timidamente, ciente de que certamente ela zombaria de minhas ideias desprovidas de razão. Mas não foi o que aconteceu.


Josephine pareceu iluminar-se com minhas palavras. Parecia uma tutora orgulhosa, contemplando a primeira obra de arte de sua cria.

-Isso é sensacional, A.J! Ok, eu sei que é trabalhoso, que não temos evidências físicas, e que muitas pessoas já procuraram por esse navio, mas mesmo que soe como ficção, apenas os relatos dos pescadores e nossa investigação a respeito já será entretenimento o bastante para o público norte-americano supersticioso, e exausto dos mesmos casos sobrenaturais de sempre. Nós já viemos até aqui, já estamos aqui, investigar os relatos dos pescadores e documentá-los é verdadeiramente um achado! - E não consigo mensurar o quanto as palavras de minha amiga trouxeram-me paz. Ter seu apoio era tudo que eu precisava naquele momento.


Almoçamos a bordo do iate, uma refeição agradável e com maiores recursos, pois agora possuíamos uma cozinha, pequena, porém funcional. O iate de luxo possuía alguns quartos e acomodações, e os demais que não receberam quartos, dormiriam em suas barracas, armadas ao ar livre, porém na segurança do barco, menos expostos do que na praia. Após o almoço, reunimos toda a equipe de produção e discutimos o documentário. A ideia não foi tão bem recebida assim por alguns de meus amigos, Vesper foi a primeira a considerar a ideia fraca e dizer que deveríamos insistir no filme de terror, porém Joey e sua retórica impecável acabaram por convencer a todos no final. Ao término daquele dia, descansei em um saco de dormir com a alma lavada e realizada, mas não encontrei Carmen novamente. Pelo menos não até adormecer.  


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Mais um capítulo, né que tá saindo? Espero que tenham gostado <3 Se puder, comenta o que achou! Obrigada por ler até aqui!

Um galeão de sonhosWhere stories live. Discover now