XIII - A rota de fuga pt 2

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"cada coisa perdida, perdidamente pode se apaixonar"

-Ave de prata, Zé Ramalho


Acordei no divã avelulado e vermelho. Meus pés encontraram a textura macia de nossas vestes espalhadas pelo chão. Minha visão ainda estava turva, denotando que eu encontrava-me antes em um sono pesado e contínuo. Olhei ao meu redor buscando pelo saco de dormir, por meus companheiros e a praia da Bahia, mas meus olhos encontraram Carmen iluminada pelo sol amarelo do amanhecer. Pássaros cantavam alto em algum lugar no horizonte, e minha fantasma estava ali, viva, em outro tempo para o qual eu insistia em me transportar.


A mulher já encontrava-se imersa em uma nova análise do mapa náutico, porém, ao me ver ela sorriu. E seu sorriso era como uma explosão de diamantes. Sorri para ela de volta, e vi seus olhos brilharem aquele amarelado felino. Pude sentir sua felicidade ao me ver. Senti, dessa vez eu senti, intensamente, o amor que ela sentia por mim, e eu por ela. Nós éramos mais do que amantes, éramos a mesma alma. Naquele momento, naquela manhã de um sonho ou uma memória perdida, eu amei mais do que a própria vida. Mais do que o próprio tempo.


Sentia todas as moléculas de meu corpo vibravam de amor por ela.


Aproximei-me de mansinho, dando a volta em seu corpo inclinado sobre a mesa e beijando-lhe o pescoço. Ela ria baixinho enquanto eu suavemente distribuía beijos úmidos e intensos rumo à sua nuca.

-Pare Á-Jota! Estás a provocar-me cócegas! - Ela tentava escapar, mas não parecia verdadeiramente querer sair.

Eu também ria baixinho, meio sacana, notando aos poucos que trajava apenas minhas calças de roupas de baixo. Carmen também estava em roupas íntimas características da época na qual nos encontrávamos, tecidos finos de algodão, menos brancos e reluzentes do que os produtos da modernidade permitem que os tecidos permaneçam, mas limpos.


Girei seu corpo em minha direção, e minha amante não apresentou dificuldade em permitir. Sorria ainda, linda como uma poesia bem escrita, e beijou-me com intensidade, entrelaçando seus dedos finos em meus cachos volumosos. Estive em tão profunda imersão naquele beijo que sequer notei que meus cabelos estavam cacheados, e não em dreadlocks, como costumam estar.


Nosso momento de carinho matinal foi interrompido pela entrada muito sonora de um homem de barba rala e aparência jovem. Ele trajava uma camisa de algodão, com pomposos botões dourados, e a mesma estava aberta, exibindo seu peito nu de pelos densos e escuros, como os cabelos desarrumados em sua cabeça. Os olhos do homem eram cor de esmeralda, escuros e vivos, e seu rosto era belo, de queixo quadrado, mandíbula bem delineada e angulosa. Era alto, como eu também era. Provavelmente tinha minha altura, ou um pouco mais.


O que mais me chamava atenção em sua figura, sequer era sua entrada rompante na sala, e sim o comportamento de quem passara a noite em claro, mergulhado em álcool e boemia. Ao vê-lo, minha Carmen sorriu um sorriso franco. Naquele momento, reconheci o homem com quem ela conversava no convés na véspera, se minha percepção de tempo dentro daquela realidade paralela estava correta.


-Carmen! - Ele disse assim que entrou. -Charlotte! Minhas estimadíssimas estrategistas! Uma tempestade se aproxima! - O homem ria, ébrio, apoiando-se nos móveis para não cair com o movimento do navio, ou de bêbado. Eu não compreendia absolutamente nada. Quem era Charlotte? Ponderei por alguns segundos, e não custei a entender. Ele referia-se a mim.

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