V - Moeda de ouro

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Quando me vi a sós com a escuridão da noite, após ela me dizer aquelas palavras de alerta e desaparecer, no lugar de me sentir em perigo, meu corpo inteiro foi dominado por uma paz inexplicável. Era como se algo velasse por mim no oculto. Ainda era cedo para afirmar se era ela, afinal, haviam tantas incertezas inexplicáveis! Eu, por exemplo, tinha certeza de que não havia perdido o juízo, embora parecesse que sim. Tratei de rapidamente retornar até meu saco de dormir, e no caminho de volta encontrei Josephine, que já havia levantado para ir me procurar.


-A.J, você demorou! - Puxou-me a orelha e franziu as sobrancelhas grossas que tinha, contrariada.

-Desculpa? Eu só fui urinar, e eu avisei! - Ergui as mãos em defesa, ou é o que lembro de ter feito.

-Eu deveria ter ido com você. - Joey resmungou e me deu as costas, contornando a capela pela calçadinha minúscula de pedras quebradas que a rodeava, evitando pisar no mato alto.

-Você quer demais me ver sem roupa, né Joey? Eu vou contar pra Aimeé! - Zombei, e ela voltou pra me bater antes de continuar andando. Ri baixinho, ela contrariada andando na frente, até chegarmos até nosso local de repouso. Justo quando Rajiv e Josephine iam descansar, e eu assumia a vigília com Yuki Sakamoto, o maquiador, que morria de medo de tudo. De todo modo, não teria mesmo conseguido dormir naquela noite.


Fiquei rabiscando minha moleskine, vendo as inspirações irem e virem, como fantasmas irônicos zombando de mim. Minha mãe é uma mulher supersticiosa, muito ligada às crenças de nossa ancestralidade indígena pré-colonial, de São Tomé e Príncipe. Cresci ouvindo sobre suas convicções animistas de que entidades, humanas ou não, possuem uma essência espiritual acentuada, parte de um todo, eternamente conectadas umas às outras.


Parecia fazer algum sentido agora, tudo o que ela me contava, e que minha avó contava pra ela. Ora, se estamos verdadeiramente conectados por nossas essências espirituais, então aquele encontro, com aquela mulher que morrera certamente séculos antes de eu nascer, poderia ser considerado casual? Um encontro casual entre duas almas, que estão conectadas eternamente pelas linhas finas e sagradas de um todo irrefutável? Eu precisava saber. Era agora mais importante do que qualquer objetivo que me levara até ali. Minha alma rebelde me dizia pra correr em direção a esse mistério, explorá-lo, vivê-lo, mesmo diante da arriscada proximidade com a morte. Quando chegou minha vez de revezar, me ofereci para continuar a vigília, e Yuki trocou de lugar com Castor Wright.


A manhã chegou devagarinho, amarelada e radiante. Ao longe, ouvíamos os pássaros nas muitas árvores, cumprimentando o nascer do sol glorioso que escalava o céu. Castor dormia de boca aberta com os cotovelos apoiados nos joelhos, e a cabeça pendendo para a frente. Eu, que cresci na cidade mais barulhenta do mundo, agora podia ouvir cada cigarra, cada grilo, cada ruído baixinho que meus companheiros faziam enquanto despertavam junto ao sol. Bocejei longamente, esticando os braços pra cima. Passara as últimas horas bolando um plano para dizer aos meus amigos que aquele lugar era má ideia. Seria árduo convencer alguns, especialmente Vesper em todo seu ceticismo, mas eu sabia que Joey acreditaria em mim. Ela também conhece bem a importância de respeitar lugares antigos. Josephine já viu muitas coisas, e sempre comentava sobre a casa assombrada na qual vivera na infância. Eu poderia usar seu apoio.


O horário combinado para todos acordarem era seis da manhã, mas Vesper e Aimeé tentaram prolongar o sono mais um pouquinho. Quando todos estavam de pé, chamei Josephine a parte para termos uma conversa franca. Embora desconfiada, ela me acompanhou até um pouco distante da capela, nos destroços de uma fonte. Enquanto caminhávamos, no entanto, senti uma terceira presença atrás de mim. Olhei por cima do ombro já sabendo o que esperar. Lá estava ela, quase translúcida pela claridade da manhã, com aquela expressão desafiadora.

Um galeão de sonhosWhere stories live. Discover now