Tempo Esgotado

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Muitos dias se passaram desde que Cassis revelou sua trágica história de amor a Sara, que estranhamente o fez se sentir mais leve, não como alguém que simplesmente se esquece de tudo o que fez, mas como um homem que não carregava mais o peso e o martírio da culpa.

A princesa havia exercido sobre ele um efeito anestésico e medicinal, coisa que jamais encontrara no mundo vampiro. E apesar do relacionamento conjugal ter se tornado estranho e embaraçoso, Cassis não pôde deixar de confidenciá-la que foi Sir Thorkus que o trouxe de volta do frenesi e que esta era a grande dívida que tinha com o ancião, que o fazia admirá-lo ainda mais. Para o vampiro, nunca havia sido fácil relembrar de Violeta ou do que lhe acontecera, porém, a humana o entendera tão bem e o consolara de maneira tão reconfortante, que, mesmo se quisesse, ele não conseguiria se arrepender de ter contado tudo a ela.

Sara, por sua vez, por algum tempo pensou que veria o marido vampiro de uma forma constrangedora, já que ele conhecia seu segredo, e ela, o dele. Entretanto, as linhas de seu relacionamento pareceram se estreitar ainda mais, como se um pudesse saber o que o outro estava pensando ou sentindo, apenas com o olhar. Suas brigas tornaram-se ainda mais raras, um grande progresso para duas pessoas que não suportavam dividir sequer o mesmo cômodo, e até mesmo os pesadelos se tornaram menos constantes, sendo substituídos por noites calmas ou pelos sonhos de uma mulher tão linda quanto às pinturas das rainhas de Alestia, que tentava roubar um beijo de seu marido.

Um mês já havia se passado, e, apesar de o castelo se tornar aparentemente calmo, a saúde do rei ainda era a principal fonte de preocupação de Sara:

― Como se sente hoje, papai?

― Ótimo, Sara! – resmunga – Não precisa fazer a mesma pergunta três vezes ao dia por algo que aconteceu há semanas. Além disso, Dr. Nicolas está vigilante e enviou dezenas de ervas horríveis para Margarida fazer infusões tão horríveis quanto, e enfiar-me goela abaixo. Não preciso que minha filha aja como minha falecida mãe.

― E os unguentos? Tem utilizado corretamente? – insiste, pois ela própria havia consultado o médico em busca de informações, já que o rei não ousava falar-lhe a respeito.

― Aquela coisa fede a peixe estragado!

― É importante para a saúde do seu corpo.

― Eu estou bem, Sara, pare de me atormentar! – retruca, pela segunda vez naquela tarde. – Onde está Cassis?

― Foi à Cidadela. Queria averiguar a composição da guarda que tomará o turno da noite, algo como fortalecer o turno, para combater possíveis contratempos não-vivos, se é que me entende.

― Parece-me que estão se entendendo, finalmente. Já não tenho ouvido tantos gritos ou apelidos afetuosos saindo de sua boca – brinca. – Sinta a ironia em minha frase.

― Ahá, muito engraçado! Com o tempo, nós aprendemos a nos aturar – resmunga, cruzando os braços –, mas isso não significa que somos um casal... Amigos, talvez.

― Tudo bem, "amigo" ainda é bem melhor do que "inimigo" – explica, contentando-se com o atual estado de relacionamento da filha e do genro, já que, em sua cabeça, o casamento já havia sido consumado.

Não muito longe dali, à beira dos portões da cidade, Cassis passava suas últimas orientações ao general quanto à segurança da Cidadela. A noite já começava a cair quando um tumulto se instalou na praça principal e o grito desesperado de uma mãe cortou o ar, fazendo os aldeões e comerciantes correrem apavorados, finalmente chamando a atenção do não-vivo, que mentalmente amaldiçoou o causador de tal agitação.

Apesar de todo o domínio sobre suas emoções, o príncipe imortal não deixou de esboçar um resquício de surpresa, seguido de desconfiança, retraindo levemente os olhos ao ver Justino sobre a mesa de pedra, o encarando com um garotinho magricela em mãos, servindo-lhe de refém.

Cassis (Série Alestia I)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora