Capítulo 5

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Parte de mim queria uma vingança rápida, queria que meu pai se transformasse no homem que nunca poderia ter sido — um homem violento em sua raiva. É isso que se vê nos filmes, é isso que acontece nos livros que as pessoas leem. Um homem normal pega uma arma ou uma faca e persegue o assassino de sua família; dá uma de Charles Bronson e todo mundo aplaude.
Como era realmente:
Todos os dias ele acordava. Antes de o sono se dissipar, era quem sempre
tinha sido. Então, à medida que sua consciência acordava, era como se algum
veneno tomasse conta dele. Primeiro ele não conseguia nem levantar. Ficava
ali deitado debaixo de um peso enorme. Mas então só o movimento podia
salvá-lo, e ele se movia, se movia, mas nenhum movimento era capaz de trazer
alívio. Alívio para a culpa que ele sentia, para a mão de Deus que se abatia
sobre ele, dizendo: Você não estava lá quando sua filha precisou de você.
Antes de meu pai sair para a casa do sr. Harvey, minha mãe estava sentada
no hall de entrada perto da estátua de São Francisco que eles tinham
comprado. Quando ele voltou, ela não estava mais lá. Ele a chamou, disse seu
nome três vezes, como um desejo de que ela não aparecesse, depois subiu os
degraus até seu quartinho e rabiscou anotações em um pequeno caderno
espiral: "Bêbado? Faça ele beber. Talvez ele seja falastrão." Em seguida
escreveu o seguinte: "Acho que a Susie me vê." No céu, fiquei eufórica. Abracei
Holly, abracei Franny. Meu pai sabia, achava eu.
Então Lindsey bateu a porta da frente com mais força do que o normal, e
meu pai ficou agradecido pelo barulho. Estava com medo de continuar com as
anotações, de escrever as palavras no papel. A porta batendo ecoou pela estranha tarde que ele tinha passado e o trouxe de volta para o presente, para
a atividade, onde ele precisava estar para não se afogar. Eu entendia isso —
não estou dizendo que não ficava magoada, que isso não me lembrava sentar
à mesa do jantar e ter de escutar Lindsey contar para meus pais sobre a prova
na qual ela tinha ido tão bem, ou sobre o professor de história que ia
recomendá-la para a condecoração distrital, mas Lindsey estava viva, e os
vivos também mereciam atenção.
Ela subiu as escadas correndo. Seus tamancos batiam nas tábuas de pinho
da escada e balançavam a casa.
Posso tê-la invejado por causa da atenção do meu pai, mas eu respeitava
sua maneira de lidar com as coisas. De todas as pessoas da família, era Lindsey
que tinha de lidar com o que Holly chamava de Sindrome do Morto-Vivo —
quando outras pessoas veem a pessoa morta e não veem você.
Quando as pessoas olhavam para Lindsey, mesmo meu pai e minha mãe,
viam a mim. Nem mesmo Lindsey estava imune. Ela evitava espelhos. Agora
tomava banho no escuro.
Ela saía do chuveiro escuro e ia tateando até o porta-toalhas. No escuro
estava segura — o vapor úmido do chuveiro que ainda subia dos ladrilhos a
protegia. Se a casa estivesse silenciosa ou se ela ouvisse murmúrios lá
embaixo, sabia que não seria incomodada. Era nessas horas que podia pensar
em mim e fazia isso de duas maneiras: ou pensava Susie, só essa única palavra,
e chorava ali, deixando as lágrimas rolarem por suas bochechas já úmidas,
sabendo que ninguém a veria, ninguém quantificaria aquela substância
perigosa como pesar,ou então me imaginava correndo, me imaginava fugindo,
imaginava a si própria sendo levada no meu lugar, lutando até se libertar.
Lutava contra a pergunta constante Onde a Suste está agora?
Meu pai ouviu Lindsey em seu quarto. Viam, a porta se fechou com um
estrondo. Pof, seus livros foram jogados no chio. Pluft, ela caiu na cama. Seus
tamancos, tum tum, foram tirados e jogados no chão. Alguns minutos depois
ele estava diante da porta do quarto dela.
— Lindsey — disse ele ao bater na porta.
Não houve resposta.
— Lindsey, posso entrar?
— Vai embora — foi sua resposta decidida.
— Deixa, querida — implorou ele.
— Vai embora!
— Lindsey — disse meu pai respirando fundo —, por que não pode me
deixar entrar? — Ele apoiou a testa de leve na porta do quarto. A madeira
estava fresca e, por um segundo, ele se esqueceu do latejar em suas têmporas,
da suspeita que agora tinha e que ficava se repetindo. Harvey, Harvey, Harvey.
Calçando apenas as meias, Lindsey se aproximou da porta em silêncio,
trancou-a enquanto meu pai recuava e preparava uma expressão que esperava
que dissesse "Não fuja."
— O que é? — perguntou ela. Seu rosto estava rígido, uma afronta. — O
que é?
— Eu quero saber como você está — disse ele. Pensou na cortina caindo
entre ele e o sr. Harvey, como uma captura certa, uma culpa encantadora,
estavam perdidas para ele. Sua família andava pelas ruas, ia ao colégio, e no
caminho passava pela casa de sarrafos verdes do sr. Harvey. Ele precisava da
ilha para fazer o sangue voltar a seu coração.
— Eu quero ficar sozinha — disse Lindsey. — Não é óbvio?
— Eu estou aqui se precisar de mim — disse ele.
— Olhe, pai — disse minha irmã, fazendo-lhe sua única concessão —
estou lidando com isso sozinha.
O que ele podia fazer com isso? Poderia ter quebrado o código e dito: "Eu
não estou, não consigo, não me obrigue a fazer isso", mas ficou ali por um
segundo e depois recuou.
— Entendo — disse ele primeiro, embora não entendesse.
Eu queria pegá-lo no colo, como tinha visto nos livros de história da arte.
Uma mulher segurando um homem no colo. Uma filha dizendo ao pai: "Está
tudo bem. Você está bem. Não vou deixar nada machucar você."
Em vez disso, eu o vi dar um telefonema para Len Fenerman.
Naqueles primeiros dias, a polícia se mostrou quase reverente. Meninas
desaparecidas não eram algo comum no subúrbio. Mas sem indícios de onde
estava meu corpo ou de quem tinha me matado, a polícia estava ficando
nervosa. Havia uma janela de tempo na qual geralmente indícios físicos eram
encontrados; essa janela ficava menor a cada dia.
— Não quero parecer irracional, inspetor Fenerman — disse meu pai.
— Len, por favor. — Presa no mata-borrão em cima de sua escrivaninha
estava a foto de colégio que Len Fenerman tinha pegado com minha mãe. Ele
sabia, antes de alguém sequer pronunciar as palavras, que eu já estava morta.
— Tenho certeza de que tem um homem na vizinhança que sabe alguma
coisa — disse meu pai. Ele estava olhando pela janela de seu quartinho no
andar de cima, em direção ao milharal. O proprietário do terreno tinha dito à
imprensa que por enquanto ia deixá-lo vazio.
— Quem é, e o que o fez pensar isso? — perguntou Len Fenerman.
Escolheu um lápis curto e mastigado da borda de metal na frente da gaveta de
sua escrivaninha.
Meu pai lhe contou sobre a tenda, sobre como o sr. Harvey tinha lhe dito
para ir para casa, sobre ter dito o meu nome, e sobre como a vizinhança
achava o sr. Harvey estranho sem emprego fixo nem filhos.
— Vou averiguar — disse Len Fenerman, porque tinha que fazê-lo. Era
esse seu papel na dança. Mas o que meu pai tinha lhe dado era pouco ou
nada com que pudesse trabalhar. — Não fale com ninguém e não chegue
perto dele de novo — avisou Len.
Quando meu pai desligou o telefone, sentia-se estranhamente vazio.
Esgotado, abriu a porta de seu quartinho e a fechou silenciosamente atrás de
si. No corredor, pela segunda vez, chamou o nome da minha mãe: — Abigail!
Ela estava no banheiro do térreo, dando mordidas nos doces que a
empresa do meu pai sempre nos mandava no Natal. Ela os comia com avidez;
eram como sóis se abrindo dentro de sua boca. No verão em que estava
grávida de mim, ela usava o mesmo vestido de gestante de algodão vezes sem
conta, recusando-se a gastar dinheiro com outro, e comia tudo o que queria,
esfregando a barriga e dizendo:
— Obrigada, neném — enquanto respingava chocolate no peito.
Houve uma batida na parte de baixo da porta.
— Mamãe! — Ela tornou a guardar os doces no armário de remédios,
engolindo o que já tinha na boca.
— Mamãe? — repetiu Buckley. Sua voz estava sonolenta.
— Maaaaanhêéêéé!
Ela desprezava aquela palavra.
Quando minha mãe abriu a porta, meu irmãozinho agarrou seus joelhos.
Buckley apertou o rosto na carne acima deles.
Ouvindo movimentos, meu pai foi encontrar minha mãe na cozinha.
Tantos, reconfortaram-se cuidando de Buckley.
— Cadê a Susie? — perguntou Buckley, enquanto meu pai passava
manteiga de amendoim e marshmallow no pão. Um pedaço para ele, um para
minha mãe e outro para seu filho de 4 anos.
— Você guardou seu jogo? — perguntou meu pai a Buckley,
perguntando-se por que evitava falar no assunto com a única pessoa que o
abordava francamente.
— O que a mamãe tem? — perguntou Buckley. Os dois ficaram olhando
para minha mãe, que fitava a cuba seca da pia.
— O que você acha de irmos ao zoológico esta semana? — perguntou
meu pai. Odiava a si mesmo por isso. Odiava a chantagem emocional e a
provocação — odiava o engodo. Mas como podia dizer ao filho que, em
algum lugar, sua irmã mais velha podia estar cortada em pedacinhos?
Mas Buckley ouviu a palavra zoológico e tudo o que ela significava — que
para ele era principalmente macacos! — e embarcou no caminho ondulado
rumo ao esquecimento por mais um dia. A sombra dos anos não era tão
grande em seu pequeno corpo. Ele sabia que eu estava fora, mas quando as
pessoas estavam fora elas sempre voltavam.
Quando Len Fenerman foi de porta em porta pela vizinhança, não
encontrou nada fora do normal na casa de George Harvey. O sr. Harvey era um
homem solteiro que, dizia-se, tinha a intenção de morar com a mulher. Ela
tinha morrido algum tempo antes disso. Ele construía casas de boneca para
lojas especiais e era um homem recluso. Era tudo o que se sabia. Embora ele
não tivesse exatamente feito muitos amigos, sempre havia tido a simpatia da
vizinhança. Cada casa de vários andares continha uma história. Para Len
Fenerman, particularmente, a de George Harvey parecia interessante.
Não, disse Harvey, ele não conhecia bem os Salmon. Tinha visto as
crianças. Todo mundo sabia quem tinha filhos e quem não tinha, comentou
ele, com a cabeça baixa e um pouco inclinada para a esquerda.
— Dá para ver os brinquedos no quintal. As casas são sempre mais
alegres — comentou ele levantando a voz.
— Soube que o senhor conversou com o sr. Salmon recentemente —
disse Len Fenerman em sua segunda visita à casa verde.
— Conversei sim, algo errado? — perguntou o sr. Harvey. Ele olhou para
Len apertando os olhos, mas depois teve de se interromper. — Deixem eu
pegar meus óculos — disse ele. — Estava fazendo o acabamento de uma
Segundo Império.
— Segundo Império? — perguntou Len.
— Agora que as encomendas de Natal estão prontas, posso experimentar
— disse o sr. Harvey. Len o seguiu até os fundos, onde havia uma mesa de
jantar encostada em uma parede. Dúzias de pequenos pedaços do que parecia
revestimento de parede em miniatura estavam alinhados em cima dela.
Um pouco estranho, pensou Fenerman, mas isso não faz do homem um
assassino.
O sr. Harvey pegou os óculos e imediatamente se abriu.
— Sim, o sr. Salmon estava dando uma de suas caminhadas e me ajudou
a construir a tenda nupcial.
— Tenda nupcial?
— Todo ano faço isso pela Leah — disse ele. — Minha mulher. Eu sou
viúvo.
Len teve a sensação de estar se intrometendo nos rituais particulares
daquele homem.
— Foi o que eu soube — disse ele.
— Estou chocado com o que aconteceu com aquela menina — disse o sr.
Harvey. — Tentei dizer isso ao sr. Salmon. Mas sei por experiência própria que
nada faz sentido numa hora dessas.
— Então o senhor monta essa tenda todo ano? — perguntou Len
Fenerman. Isso era algo que ele poderia pedir aos vizinhos para confirmarem.
— Eu antes fazia isso dentro de casa, mas este ano tentei fazer do lado de
fora. Nós nos casamos no inverno. Até a neve chegar com mais força, pensei
que a tenda iria aguentar.
— Onde dentro de casa?
— No porão. Posso mostrar ao senhor, se quiser. Ainda tenho todas as
coisas da Leah lá embaixo.
Mas Len não continuou.
— Já me intrometi demais — disse ele. — Eu só queria percorrer o bairro
outra vez.
— (Como vai a investigação? — perguntou o sr. Harvey. — Estão
encontrando alguma coisa?
Len nunca gostava de perguntas assim, embora supusesse que fosse o
direito das pessoas cujas vidas estava invadindo.
— Algumas vezes acho que os indícios aparecem na hora certa — disse
ele. — Quero dizer, se quiserem ser encontrados. — Era uma resposta
enigmática, uma resposta do tipo Confúcio-falou, mas funcionava com quase
todos os civis.
— O senhor conversou com o filho dos Ellis? — perguntou o sr. Harvey.
— Falamos com a família.
— Ouvi dizer que ele machucou uns animais na vizinhança.
— Garanto ao senhor que ele parece um menino bem mau — disse Len
—, mas estava trabalhando no shopping na hora.
— Testemunhas?
— Sim.
— E minha única ideia — disse o sr. Harvey. — Gostaria de poder fazer
mais.
Len achou-o sincero.
— É verdade que ele é um pouco esquisito — disse Len quando telefonou
para o meu pai —, mas não tenho nada contra ele.
— O que ele disse sobre a tenda?
— Que a tinha construído para Leah, mulher dele.
— Lembro da sra. Stead ter dito à Abigail que o nome da mulher dele era
Sophie — disse meu pai.
Len verificou suas anotações.
— Não, Leah. Eu anotei.
Meu pai duvidou de si mesmo. Onde ele tinha escutado o nome Sophie?
Tinha certeza de tê-lo escutado, mas já fazia anos, em uma festa do quarteirão
em que nomes de filhos e mulheres choviam como confete entre as histórias
que as pessoas contavam para serem simpáticas e as apresentações a crianças
e desconhecidos vagas demais para serem lembradas no dia seguinte.
Ele se lembrava de que o sr. Harvey não tinha ido à festa do quarteirão.
Ele nunca tinha ido a nenhuma das festas. Pelos padrões de muitas pessoas do
bairro isso era atribuído à sua estranheza, mas não pelos do meu pai. Ele
também nunca tinha se sentido inteiramente à vontade nessas tentativas
forçadas de convívio.
Meu pai escreveu: "Leah?" em seu caderno. Depois escreveu: "Sophie?"
Embora inconscientemente, tinha começado uma lista das mortas.
No dia de Natal, minha família teria se sentido mais confortável no céu. O
Natal era em grande parte ignorado no meu céu. Algumas pessoas se vestiam
todas de branco e fingiam ser flocos de neve, mas fora isso não conteria nada.
Naquele Natal, Samuel Heckler fez uma visita inesperada à nossa casa. Ele
não estava vestido de floco de neve. Usava a jaqueta de couro de seu irmão
mais velho e calças de exército mal-ajustadas.
Meu irmão estava no quarto da frente com seus brinquedos. Minha mãe
abençoava o fato de ter comprado cedo os presentes dele. Lindsey ganhou
luvas e um brilho labial sabor cereja. Meu pai ganhou cinco lenços brancos
que ela tinha encomendado pelo correio meses antes. Com exceção de
Buckley, ninguém queria nada mesmo. Nos dias antes do Natal as luzes da
árvore não estavam acesas. Só a vela que meu pai mantinha na janela de seu
quartinho queimava. Ele a acendia quando escurecia, mas minha mãe, minha
irmã e meu irmão tinham parado de sair de casa depois das quatro da tarde.
Só eu via a vela.
— Tem um homem lá fora! — gritou meu irmão. Ele estava brincando de
Arranha-Céu e o arranha-céu ainda não tinha caído. — Ele está carregando
uma mala!
Minha mãe deixou seu eggnog na cozinha e foi até a frente da casa.
Lindsey estava suportando a presença obrigatória na sala íntima que todas as
festas exigiam. Ela e meu pai estavam jogando Banco Imobiliário, ignorando as
casas mais brutais pelo bem um do outro. Não havia Imposto de Renda, e um
Revés não era reconhecido.
No hall de entrada, minha mãe alisou a saia com as mãos. Pôs Buckley na
sua frente e o abraçou pelos ombros.
— Espera o homem bater — disse ela.
— Talvez seja o reverendo Strick — disse meu pai a Lindsey, recolhendo
seus quinze dólares por ter tirado o segundo lugar em um concurso de beleza.
— Espero que não, para o bem da Susie — arriscou Lindsey.
Meu pai aguentou firme ouvir minha irmã dizer meu nome. Ela tirou um
duplo nos dados e avançou até os Jardins Marvin.
— São vinte e quatro dólares — disse meu pai —, mas fecho por dez.
— Lindsey — disse minha mãe. — Visita para você.
Meu pai viu minha irmã se levantar e sair da sala. Nós dois a vimos fazer
isso. Naquele momento eu estava ali sentada com meu pai. Eu era o fantasma
do tabuleiro. Ele ficou olhando para o sapato velho caído de lado dentro da
caixa. Se ao menos eu pudesse tê-lo levantado, tê-lo feito pular da Beira-Mar
até o Báltico, onde eu sempre dizia que moravam as melhores pessoas.
— Isso é só porque você é louca por roxo — dizia Lindsey.
Meu pai dizia:
— Tenho orgulho de não ter criado uma esnobe.
— Estradas de ferro, Susie — disse ele. — Você sempre gostou de ter
essas estradas de ferro.
Para realçar a testa e domar a franja, Samuel Heckler insistia em pentear o
cabelo todo para trás. Aos 13 anos e vestido de couro preto, isso o fazia
carecer um vampiro adolescente.
— Feliz Natal, Lindsey — disse ele à minha irmã, e estendeu uma caixinha
embrulhada em papel azul.
Pude ver aquilo acontecendo: o corpo de Lindsey começou a dar um nó.
Ela estava se esforçando para manter todo mundo afastado, todo mundo, mas
achava Samuel Heckler um gatinho. Como um ingrediente de uma receita, O coração dela foi diluído, e apesar da minha morte ela tinha 13 anos, ele era um
gatinho, e a estava visitando no dia de Natal.
— Ouvi dizer que você entrou na lista dos bons alunos — disse-lhe ele,
porque ninguém dizia nada. — Eu também.
Então minha mãe se lembrou, e ligou seu piloto automático de anfitriã.
— Quer entrar e sentar? — ela conseguiu dizer. — Tem eggnog na
cozinha.
— Seria ótimo — disse Samuel Heckler e, para o espanto de Lindsey e o
meu, ofereceu o braço à minha irmã.
— O que é isso? — perguntou Buckley, correndo atrás deles e apontando
para o que pensava ser uma mala.
— Um alto — disse Samuel Heckler.
— O quê? — perguntou Buckley. Então Lindsey falou.
— O Samuel toca sax alto.
— Quase — disse Samuel.
Meu irmão não perguntou o que era um saxofone. Ele sabia o que
Lindsey estava sendo. Ela estava sendo o que eu chamava de metidinha, como
quando dizia: "Não liga, Buckley, a Lindsey está sendo metidinha." Geralmente
eu fazia cócegas nele enquanto pronunciava a palavra, algumas vezes
enterrando a cabeça em sua barriga, empurrando-o e dizendo "metidinha"
sem parar até sua risada melodiosa se derramar sobre mim.
Buckley seguiu os três cozinha adentro e perguntou, como perguntava
pelo menos uma vez por dia:
— Cadê a Susie?
Eles ficaram calados. Samuel olhou para Lindsey.
— Buckley — chamou meu pai do outro cômodo —, vem jogar Banco
Imobiliário comigo.
Meu irmão nunca tinha sido convidado para jogar Banco Imobiliário. Todo
mundo dizia que ele era novo demais, mas essa era a mágica do Natal. Ele
correu para a sala íntima e meu pai o levantou e o sentou em seu colo.
— Está vendo este sapato? — perguntou meu pai. Buckley assentiu com a
cabeça.
— Quero que você escute tudo o que eu vou dizer sobre ele, tá?
— Susie? — perguntou meu irmão, relacionando as duas coisas de
alguma maneira.
— É, vou dizer para você onde a Susie está.
Comecei a chorar no céu. O que mais eu podia fazer?
— Este sapato era a peça que a Susie usava para jogar Banco Imobiliário
— disse ele. — Eu jogo com o carro ou às vezes com o carrinho de mão, a
Lindsey joga com o ferro, e quando sua mãe joga ela gosta do canhão.
— Isso é um cachorro?
— É, um terrier escocês.
— É meu!
— Tá — disse meu pai. Ele era paciente. Tinha encontrado um jeito de
explicar. Segurava o filho no colo, e enquanto falava sentia o corpinho de
Buckley em cima do joelho — seu peso muito humano, muito quente, muito
vivo. Aquilo o reconfortava. — O terrier escocês vai ser a sua peça daqui para a
frente. Qual é mesmo a peça da Susie?
— O sapato — disse Buckley.
— Isso, e eu sou o carro, e sua irmã é o ferro, e sua mãe é o canhão. Meu
irmão se concentrou com força.
— Agora vamos colocar todas as peças no tabuleiro, tá? Coloca para mim.
Buckley pegou um punhado de peças e depois outro, até todas as peças
estarem entre os cartões de Sorte e de Lucros e Dividendos.
— Vamos dizer que as outras peças são nossos amigos.
— Igual ao Nate?
— Isso, vamos fazer o seu amigo Nate ser o chapéu. E o tabuleiro é o
mundo. Agora se eu dissesse para você que, quando eu lançar os dados, uma
das peças vai ser levada embora, o que isso iria querer dizer?
— Que ela não pode mais jogar?
— Isso.
— Por quê? — perguntou Buckley.
Meu pai não queria dizer "porque a vida é injusta" ou "porque é assim
que as coisas são". Ele queria alguma coisa simples, alguma coisa que expli
casse a morte para um menino de 4 anos. Pôs a mão na base das costas de
Buckley.
— A Susie morreu — disse ele então, incapaz de fazer aquilo entrar nas
regras de qualquer jogo. — Você sabe o que isso quer dizer?
Buckley estendeu a mão e cobriu o sapato. Levantou os olhos para ver e
sua resposta estava certa. Meu pai assentiu.
— Você não vai mais ver a Susie, querido. Nenhum de nós vai. — Meu pai
chorou. Buckley levantou os olhos para nosso pai e não entendeu direito.
Buckley guardou o sapato em sua penteadeira, até que um dia o sapato sumiu
de lá e por mais que procurasse não conseguia encontrá-lo.
Na cozinha, minha mãe terminou seu eggnog e pediu licença. Entrou na
sala de jantar e ficou contando talheres, alinhando metodicamente os três
tipos de garfo, as facas e as colheres, arrumando-os "em escadinha" como
tinha aprendido quando trabalhava na seção de noivas do Wanamaker's, antes
de eu nascer. Ela queria um cigarro e queria que seus filhos que estavam vivos
desaparecessem por um tempo.
— Vai abrir seu presente? — perguntou Samuel Heckler para minha irmã.
Eles estavam em pé na frente da bancada, encostados no lava-louças e
nas gavetas cheias de guardanapos e toalhas. No cômodo à sua direita
estavam sentados meu pai e meu irmão; do outro lado da cozinha, minha mãe
pensava Wedgwood Florentine, Azul Cobalto; Royal Worcester, Mountbatten;
Lenox, Eternal.
Lindsey sorriu e puxou a fita branca em cima da caixa.
— Minha mãe amarrou a fita para mim — disse Samuel Heckler.
Ela arrancou o papel azul da caixa de veludo preto. Com cuidado,
segurou-a na palma da mão depois de tirar o papel. Quando Lindsey e eu
brincávamos de Barbie, a Barbie e o Ken se casavam aos 16 anos. Para nós só
havia um amor verdadeiro na vida de qualquer pessoa;não tínhamos nenhuma
noção de meio-termo, nem de segunda tentativa.
— Abra — disse Samuel Heckler.
— Estou com medo.
— Não fique.
Ele pôs a mão no antebraço dela e — uau! — que sensação eu tive
quando ele fez aquilo. Lindsey estava na cozinha com um menino gatinho, por
mais vampiro que fosse! Aquilo era uma novidade, uma senhora novidade —
de repente eu estava sabendo de tudo. Ela nunca teria me contado nada
daquilo.
O que havia na caixa era típico ou decepcionante ou um milagre,
dependendo dos olhos de quem via. Era típico porque ele era um menino de
13 anos, ou era decepcionante porque não era uma aliança de casamento, ou
era um milagre. Ele tinha dado a ela meio coração. Era de ouro, e de dentro da
camisa ele puxou a outra metade. Ela estava pendurada em volta de seu
pescoço em um cordão de couro.
O rosto de Lindsey corou; o meu corou no céu.
Eu me esqueci do meu pai na sala intima e da minha mãe contando
talheres. Vi Lindsey se aproximar de Samuel Heckler. Ela o beijou; foi a glória!
Quase me senti viva de novo.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Where stories live. Discover now