Capítulo 11

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Quando meu pai acordou às quatro da manhã, a casa estava silenciosa. Minha mãe estava deitada ao seu lado, roncando de leve. Meu irmão, seu único filho, já que minha irmã estava no simpósio,
parecia uma pedra coberta por um lençol. Meu pai ficava maravilhado ao ver como o sono do filho era pesado — igualzinho ao meu. Quando eu ainda era viva, Lindsey e eu nos divertíamos com isso, batendo palmas, deixando cair livros no chão e até batendo com tampas de panela para ver se Buckley acordava.
Antes de sair de casa, meu pai deu uma olhada em Buckley — para ter certeza, para sentir o hálito quente em sua palma. Então calçou seus tênis de sola fina e vestiu sua roupa leve de corrida. Sua última tarefa foi pôr a coleira em Holiday.
Ainda era cedo o suficiente para ele quase conseguir ver a própria respiração. Cedo assim, ele podia fingir que ainda era inverno. Que os segundos não tinham passado.
A caminhada matinal com o cachorro lhe dava uma desculpa para passar na frente da casa do sr. Harvey. Ele diminuía o passo muito de leve — ninguém teria percebido exceto eu ou, se estivesse acordado, o sr. Harvey. Meu pai tinha certeza de que, se encarasse com força suficiente, se olhasse por tempo suficiente, encontraria as pistas de que precisava nos batentes das janelas, na tinta verde que cobria os sarrafos, ou no caminho que levava à garagem, onde havia duas grandes pedras pintadas de branco.
No final do verão de 1974, não tinha havido nenhum progresso no meu caso. Nenhum corpo. Nenhum assassino. Nada.
Meu pai pensou em Ruana Singh: "Quando eu tivesse certeza, encontraria um jeito discreto e o mataria." Não tinha contado isso a Abigail, porque o conselho fazia uma espécie de sentido limítrofe que a assustaria e a faria contar para alguém, e ele suspeitava que esse alguém poderia ser Len.
Desde o dia em que tinha visto Ruana Singh, chegado em casa e encontrado Len à sua espera, ele sentia que minha mãe confiava demais na polícia. Caso meu pai dissesse alguma coisa que contrariasse as teorias da polícia — ou, como ele pensava, a falta de teoria da polícia — minha mãe imediatamente correria para tapar o buraco aberto pela ideia do meu pai. "O Len diz que isso não quer dizer nada", ou "Confio na polícia para descobrir o que aconteceu."
Por que, perguntava-se meu pai, as pessoas confiavam tanto na polícia: Por que não confiar no instinto? O sr. Harvey era o culpado e ele sabia. Mas o que Ruana tinha dito era quando eu tivesse certeza. Saber, aquele saber vindo do fundo da alma que meu pai tinha, não era, aos olhos mais literais da lei, uma prova inconteste.
A casa em que cresci era a mesma casa em que nasci. Como a do sr. Harvey, era uma caixa, e por causa disso eu nutria invejas inúteis sempre que visitava a casa de outras pessoas. Sonhava com jardins de inverno e cúpulas, com varandas e quartos no sótão com tetos inclinados. Adorava a ideia de que pudesse haver no quintal árvores mais altas e mais fortes do que pessoas, cubículos enviesados debaixo de escadas, cercas-vivas frondosas tão grandes que dentro delas houvesse espaços ocos formados por galhos mortos onde era possível se esgueirar e se sentar. O meu céu tinha varandas e escadas em caracol, sacadas de janelas com jardineiras de ferro, e um campanário com um sino que tocava de hora em hora.
Eu conhecia de cor a planta da casa do sr. Harvey. Eu tinha formado a mancha morna no chão da garagem até esfriar. Ele tinha trazido meu sangue junto consigo para casa, nas roupas e na pele. Eu conhecia o banheiro. Sabia como na minha casa minha mãe tinha tentado decorá-lo a acolher a chegada tardia de Buckley pintando navios de batalha no alto das paredes cor-de-rosa. Na casa do sr. Harvey, o banheiro e a cozinha eram imaculados. Os ladrilhos eram amarelos e a cerâmica do chão, verde. Ele mantinha a decoração sóbria. No andar de cima, onde Buckley, Lindsey e eu tínhamos os nossos quartos, ele não tinha quase nada. Tinha uma cadeira de encosto reto onde se sentava de vez em quando para olhar o cientifico pela janela, ouvindo o som dos ensaios da banda ser trazido do campo de futebol, mas na maior parte do tempo ficava na parte dos fundos do primeiro andar, na cozinha construindo casas de boneca,na sala de estar ouvindo rádio ou,conforme seu desejo ia aumentando, desenhando projetos de maluquices como o buraco ou a tenda. Ninguém o incomodava a meu respeito havia vários meses. Naquele verão, só de vez em quando ele via um carro de polícia diminuir a velocidade na frente da sua casa. Era esperto o suficiente para não alterar seu comportamento. Se estivesse saindo para a garagem ou para a caixa de correio seguia em frente.
Ele acertou vários relógios. Um para lhe dizer quando abrir as persianas, outro para lhe dizer quando fechá-las. Em conjunção com esses alarmes, acendia e apagava luzes pela casa. Se por acaso aparecesse uma criança vendendo chocolates para uma competição do colégio ou perguntando se ele gostaria de assinar o Evening Bulletin, ele era simpático, mas profissional, neutro.
Contava periodicamente suas coisas, e essa contagem o reconfortava.
Eram coisas simples. Um anel de casamento, uma carta lacrada dentro de um envelope, o salto de um sapato, óculos, uma borracha em forma de personagem de quadrinhos, um pequeno frasco de perfume, uma pulseira de plástico, minha pedra angular da Pensilvânia, o pingente de âmbar de sua mãe. Ele os tirava do lugar em que ficavam guardados à noite, muito depois de ter certeza de que nenhum vendedor de jornais ou vizinho bateria em sua porta. Contava-os como as contas de um rosário. Para alguns tinha se esquecido dos nomes. Eu sabia os nomes.
O salto do sapato era de uma menina chamada Claire, de Nutley, Nova Jérsei, que ele tinha convencido a entrar na caçamba de uma van. Ela era mais nova do que eu. (Gosto de pensar que eu não teria entrado em uma van. Gosto de pensar que foi minha curiosidade sobre como ele tinha conseguido fazer um buraco na terra que não desabasse.) Ele tinha arrancado o salto do sapato dela antes de deixar Claire ir embora. Era tudo o que tinha feito. Ele a fez entrar na van e tirou seus sapatos. Ela começou a chorar, e o som varou o corpo dele como parafusos. Ele implorou para que ela ficasse quieta e fosse embora. Saísse magicamente da van descalça e sem reclamar, deixando os
sapatos com ele. Mas ela não quis. Continuou a chorar. Ele começou a tentar tirar um dos saltos dos sapatos com seu canivete, até alguém socar a traseira da van. Ele ouviu vozes de homem e uma mulher gritando alguma coisa sobre chamar a polícia. Abriu a porta.
— Que diabos você está fazendo com essa menina? — gritou um dos homens. O amigo desse primeiro homem segurou a menininha enquanto ela pulava, aos berros, da traseira da van.
— Estou tentando consertar o sapato dela.
A menina estava histérica. O sr. Harvey estava completamente racional e calmo. Mas Claire tinha visto o que eu vi — aquele olhar dele dirigido para baixo — aquele desejo de alguma coisa indizível que, caso lhe déssemos, equivaleria ao nosso fim.
Apressadamente, enquanto os homens e a mulher ainda estavam confusos, incapazes de ver o que Claire e eu sabíamos, o sr. Harvey tinha entregado os sapatos a um dos homens e se despedido. Ele guardou o salto.
Gostava de segurar o pequeno salto de couro e esfregá-lo entre o polegar e o indicador — era perfeito para relaxar.
Eu conhecia o lugar mais escuro da nossa casa. Tinha entrado e ficado ali durante o que disse para Clarissa ter sido um dia inteiro, mas que na verdade eram cerca de quarenta e cinco minutos. Era o forro do porão. No feltro do nosso forro havia canos que eu podia ver com uma lanterna e toneladas e mais toneladas de poeira. E só. Não havia baratas. Minha mãe, assim como a mãe dela, chamava o dedetizador até para uma infestação de formigas.
Quando o alarme disparava para lhe dizer para fechar as persianas e depois o outro alarme,dizendo-lhe para apagar a maior parte das luzes porque o subúrbio a essa hora dormia, o sr. Harvey descia para o porão, onde não havia frestas por onde a luz pudesse entrar e para onde as pessoas pudessem apontar, dizendo que ele era estranho. Quando me matou, ele tinha ficado cansado de visitar o forro, mas ainda gostava de ficar no porão em uma poltrona de frente para o buraco escuro que começava no meio da parede e ia até as tábuas expostas do chão de sua cozinha. Muitas vezes adormecia ali, e
ali dormia quando meu pai passava pela casa verde por volta das vinte para as cinco da manhã.
Joe Ellis era um menino bem ruim. Tinha beliscado Lindsey e eu debaixo d'água na piscina e nos impedia de ir a festas onde houvesse banho de piscina de tanto que nós o odiávamos. Tinha um cachorro que arrastava para todo lado independentemente do que o cachorro quisesse fazer. Era um cachorro pequeno, que não corria muito rápido, mas Ellis não ligava. Batia no cachorro ou o levantava pelo rabo causando-lhe muita dor. Então um dia o cachorro sumiu,assim como o gato que Ellis tinha sido visto provocando. E então bichos de todo o bairro começaram a sumir.
O que eu descobri, quando segui o olhar do sr. Harvey para o forro, foram esses bichos sumidos havia mais de um ano. As pessoas pensavam que aquilo tinha parado porque o filho dos Ellis tinha sido mandado para o colégio militar. Quando soltavam seus bichos de estimação de manhã, eles voltavam à noite. Isso valia como prova. Ninguém poderia imaginar um apetite como o da casa verde. Alguém que espalhasse cal pelo corpo dos gatos e cachorros, para logo não ter mais nada a não ser seus ossos. Contando os ossos e mantendo distância da carta lacrada, do anel de casamento, do frasco de perfume, ele tentava ficar longe do que mais queria — subir para o andar de cima, sentar- se na cadeira de encosto reto e ficar olhando para o científico, imaginar os corpos que correspondiam às vozes das chefes de torcida, que pulsavam em ondas nos dias de outono durante os jogos de futebol, ou ver os alunos desembarcarem dos ônibus do primário duas casas mais adiante. Certa vez ele tinha dado uma boa olhada em Lindsey, a única menina do time de futebol masculino, fazendo cooper pelo nosso bairro quase no escuro.
Acho que o mais difícil de perceber foi que todas as vezes ele tinha tentado se conter. Tinha matado bichos, tirando vidas menores para evitar matar uma criança.
Quando agosto chegou, Len quis estipular algumas fronteiras para o seu bem e para o bem do meu pai. Meu pai tinha ligado para a delegacia vezes demais, frustrando e irritando a polícia, o que não ajudaria ninguém a ser encontrado e só faria a delegacia inteira se voltar contra ele.
A gota d'água tinha sido um telefonema dado na primeira semana de julho. Jack Salmon tinha descrito em detalhes para a telefonista como, durante uma caminhada matutina, seu cachorro tinha parado na frente da casa do sr. Harvey e começado a uivar. Por mais que Salmon tentasse, prosseguia a história, não conseguia fazer o cachorro se mexer nem parar de uivar. Aquilo virou piada na delegacia: o sr. Peixe e seu Cão Uivante.
Len parou na frente da nossa casa para terminar seu cigarro. Ainda era cedo, mas a umidade do dia anterior tinha aumentado. Tinham prometido chuva a semana toda, o tipo de tempestade de raios e trovões característico daquela região, mas até agora a única água que Len percebia era a que cobria seu corpo com um suor úmido. Sua última visita fácil à casa dos meus pais havia passado.
Então ouviu alguém cantarolando — uma voz de mulher vinda lá de centro. Apagou o cigarro no cimento debaixo da cerca viva e levantou a aldrava. A porta se abriu antes de ele soltá-la.
— Senti o cheiro do seu cigarro — disse Lindsey. — Era você cantarolando?
— Esse negócio vai te matar.
— Seu pai está em casa.
Lindsey se afastou para deixá-lo passar.
— Pai! — gritou minha irmã para dentro de casa. — É o Len!
— Você estava viajando, não estava? — perguntou Len.
— Acabei de chegar.
Minha irmã estava usando uma camisa de softball do Samuel e calças de
moletom estranhas. Minha mãe a tinha acusado de voltar para casa sem uma única peça de roupa sua.
— Tenho certeza de que os seus pais ficaram com saudades.
— Não precisa ter tanta certeza — disse Lindsey. — Acho que eles ficaram felizes por se livrar de mim.
Len sabia que ela estava certa. Certamente tinha convicção de que minha mãe estava menos frenética quando tinha visitado a casa pela última vez. Lindsey falou:
— O Buckley transformou você em chefe do esquadrão de polícia na cidade que ele construiu debaixo da cama.
— Fui promovido.
Os dois ouviram os passos do meu pai no corredor do andar de cima e depois os sons de Buckley pedindo. Lindsey pôde perceber que, o que quer que ele tivesse pedido, nosso pai tinha acabado dizendo sim.
Meu pai e meu irmão desceram a escada, todo sorrisos.
— Len — disse ele, e apertou a mão de Len.
— Bom dia, Jack — disse Len. — Como vai você, Buckley?
Meu pai pegou a mão de Buckley e o colocou na frente de Len, que se
inclinou solenemente até a altura do meu irmão.
— Ouvi dizer que você me transformou em chefe de polícia — disse Len. — Foi sim, senhor.
— Não acho que eu mereça esse posto.
— Merece mais do que qualquer outra pessoa — disse meu pai
casualmente. Ele adorava as visitas de Len Fenerman. Todas as vezes que isso acontecia meu pai via se confirmar um consenso de que não estava sozinho naquilo — de que havia um grupo atrás dele.
— Preciso conversar com o pai de vocês, meninos.
Lindsey levou Buckley de volta para a cozinha prometendo lhe dar cereal. Ela própria estava pensando em uma bebida que Samuel tinha lhe mostrado; era um drinque chamado jellyfish, água-viva, que tinha uma cereja marasquino debaixo de açúcar e gim. Samuel e Lindsey tinham chupado as cerejas por entre o açúcar e o álcool até suas cabeças doerem e seus lábios ficarem manchados de vermelho.
— Quer que eu chame a Abigail? Quer que faça um café ou alguma outra coisa?
— Jack — disse Len —, eu não vim trazer nenhuma novidade — justamente o contrário. Podemos nos sentar?
Vi meu pai e Len rumarem para a sala de estar que parecia um lugar onde ninguém nunca estava. Len sentou-se na beirada de uma cadeira e esperou meu pai se sentar.
— Escute, Jack — disse ele. — É sobre o George Harvey. — Meu pai se animou.
— Pensei que tivesse dito que não tinha novidades.
— Não tenho. Tenho uma coisa a dizer em nome da delegacia e em meu nome.
— Pode dizer.
— Precisamos que você pare de dar telefonemas sobre o George Harvey. — Mas...
— Eu preciso que você pare. Não há nada, por mais que procuremos, que
o ligue à morte da Susie. Cães uivantes e tendas nupciais não são novas.
— Eu sei que foi ele — disse meu pai.
— Ele é esquisito, concordo, mas até onde sabemos não é um assassino. — Como você pode saber isso?
Len Fenerman falava, mas tudo o que meu pai conseguia fazer era ouvir
Ruana Singh dizendo o que tinha lhe dito, e se lembrar de ficar em pé do lado de fora da casa do sr. Harvey e sentir a energia irradiando até ele, a frieza no fundo daquele homem. O sr. Harvey era ao mesmo tempo incompreensível e a única pessoa no mundo capaz de ter me matado. A merda que Len negava, meu pai tinha mais certeza.
— Você vai parar de investigá-lo — disse meu pai em tom apático.
Lindsey estava no vão da porta, espiando como tinha feito no dia em que Len e o oficial uniformizado tinham trazido meu gorro com os sininhos, do qual ela possuía um irmão gêmeo. Naquele dia,ela tinha discretamente jogado esse segundo gorro dentro de uma caixa de bonecas velhas no fundo de seu armário. Nunca mais queria que minha mãe ouvisse o som daqueles sininhos parecidos com contas.
Ali estava nosso pai, o coração que sabíamos sustentar todos nós. Sustentar-nos pesada e desesperadamente, as portas de seu coração se abrindo e se fechando com a rapidez de pausas em um instrumento, os silenciosos fechos de feltro, o dedilhado fantasmagórico, ensaios e mais ensaios e então, incrivelmente, som, melodia e calor. Lindsey deu um passo à frente de seu lugar na porta.
— Oi de novo, Lindsey — disse Len.
— Inspetor Fenerman.
— Eu estava justamente dizendo ao seu pai...
— Que vocês vão desistir.
— Se houvesse alguma boa razão para desconfiar do homem...
— Já terminou? — perguntou Lindsey. De repente ela era a mulher do nosso pai, assim como a filha mais velha e mais responsável.
— Só quero que vocês todos saibam que investigamos todas as pistas. Meu pai e Lindsey a ouviram, e eu a vi. Minha mãe descendo as escadas. Buckley saiu correndo da cozinha e se atirou, jogando todo o peso do
corpo para cima das pernas do meu pai.
— Len — disse minha mãe, apertando o roupão de toalha para mais perto
do corpo quando o viu —, o Jack lhe ofereceu um café?
Meu pai olhou para sua mulher e Len Fenerman.
— A polícia está jogando a toalha — disse Lindsey, segurando Buckley
pelo ombro com delicadeza e abraçando-o.
— Jogando a toalha? — perguntou Buckley. Ele sempre revirava os sons
de um lado para outro na boca como uma bala até sentir seu gosto e sua textura.
— O quê?
— O inspetor Fenerman está aqui para mandar o papai parar de encher o saco deles.
— Lindsey — disse Len —, não é bem assim.
— Que se dane — disse ela. Minha irmã agora queria sair dali e ir para um lugar onde o acampamento dos bons alunos continuasse, onde Samuel e ela, ou até mesmo Artie, que no último minuto tinha ganhado a competição do Assassinato Perfeito inscrevendo o pingente de gelo como ideia para a arma do crime, fossem a coisa mais importante do mundo.
— Vamos, pai — disse ela. Meu pai estava lentamente tentando entender uma coisa. Não tinha nada a ver com George Harvey, nada a ver comigo. Estava nos olhos da minha mãe.
Naquela noite, como fazia com cada vez mais frequência, meu pai ficou acordado sozinho em seu escritório. Não podia acreditar que o mundo estivesse ruindo à sua volta — como aquilo era inesperado depois do primeiro golpe da minha morte. "Tenho a sensação de estar no caminho de uma erupção vulcânica", escreveu ele em seu caderno. "A Abigail acha que Len Fenerman tem razão com relação a Harvey."
Enquanto ele escrevia, a vela na janela continuava tremulando, e apesar da luminária em sua escrivaninha o tremor o distraía. Ele se reclinou na velha cadeira de colégio de madeira que tinha desde a época da faculdade e ouviu o rangido reconfortante da madeira sob o corpo. Na empresa, não estava conseguindo sequer registrar o que se esperava dele. Todos os dias agora deparava-se com colunas e mais colunas de números sem significado que precisava fazer coincidir com as reivindicações das empresas seguradas, estava cometendo erros com uma frequência assustadora, e temia, mais do que nos primeiros dias depois do meu desaparecimento, não ser capaz de sustentar seus dois filhos sobreviventes.
Ele se levantou e esticou os braços acima da cabeça, tentando se concentrar nos poucos exercícios que nosso médico de família tinha sugerido. Vi seu corpo se dobrar de modos difíceis e surpreendentes que nunca tinha visto antes. Ele poderia ter sido bailarino em vez de executivo. Poderia ter dançado na Broadway com Ruana Singh.
Ele desligou a luz da escrivaninha, deixando a vela acesa.
Era em sua poltrona verde baixa que ele agora se sentia mais à vontade. Era ali que muitas vezes eu o via dormir. O cômodo era como um cofre, a cadeira era como um útero, e eu ficava ali a vigiá-lo. Ele fitava a vela na janela e pensava no que fazer; pensava em como tinha tocado minha mãe e ela tinha se afastado para o outro lado da cama. Mas em como diante d policial ela parecia desabrochar.
Ele tinha se acostumado com a luz fantasmagórica atrás da chama da vela, com aquele reflexo trêmulo na janela. Ficou olhando para os dois — a chama real e o fantasma — e começou a cair em um sono leve, adormecendo o pensamento e a tensão e os acontecimentos do dia.
Quando estava prestes a desistir por aquela noite, ambos vimos outra coisa: outra luz. Lá fora.
Daquela distância a luz parecia uma lanterna de bolso. Um feixe branco se movendo devagar pelos gramados em direção ao ginásio. Meu pai ficou olhando para ele. Agora já passava da meia-noite, e a lua não estava suficientemente cheia, como geralmente era o caso, para revelar os contornos das árvores e casas. O sr. Stead, que andava de bicicleta tarde da noite com uma luz alimentada pelos pedais piscando na frente, jamais degradaria os gramados de seu bairro daquela maneira. De qualquer modo, era tarde demais para o sr. Stead.
Meu pai se inclinou para a frente na cadeira verde de seu escritório e ficou olhando a lanterna se mover na direção do milharal inculto.
— Canalha — sussurrou. — Seu canalha assassino.
Vestiu-se rapidamente com as roupas que ficavam guardadas no armário de depósito de seu escritório, pondo um casaco de caçador que não usava desde uma malfadada expedição de caça dez anos antes. No andar de baixo, entrou no closet do hall de entrada e encontrou o taco de beisebol que tinha comprado para Lindsey antes de ela optar pelo futebol.
Primeiro desligou a luz da varanda que eles deixavam acesa a noite toda para mim e que, mesmo oito meses depois de a polícia ter dito que eu não seria encontrada viva, não conseguiam evitar deixar acesa. Com a mão na maçaneta da porta, respirou fundo.
Girou a maçaneta e se viu do lado de fora na escura varanda da frente. Fechou a porta e se viu em pé no quintal da frente de sua casa com um taco de beisebol e as seguintes palavras: encontre um jeito discreto.
Cruzou seu quintal da frente e atravessou a rua e entrou no quintal dos O'Dwyer, onde tinha visto a luz pela primeira vez. Passou por sua piscina escurecida e pelos balanços enferrujados. Seu coração estava disparado, mas ele não conseguia sentir nada a não ser a certeza em seu cérebro, George Harvey tinha matado sua última menininha.
Chegou ao campo de futebol. A sua direita, lá longe no milharal, mas no na região que ele conhecia de cor — a região que tinha sido isolada e limpa e vasculhada e revirada — viu a pequena luz. Apertou os punhos com mais força em volta do taco ao lado do corpo. Durante um segundo, não pôde acreditar no que estava prestes a fazer, mas em seguida, com todo o seu ser, teve certeza.
O vento o ajudou. Ele soprava pelo campo de futebol na beira do milharal e fazia suas calças baterem na parte da frente de suas pernas; o vento o empurrava sem que ele precisasse fazer força. Tudo desapareceu, guando ele chegou entre as fileiras de milho, focalizando apenas a luz, o vento disfarçou sua presença. O som de seus pés esmagando os caules era varrido pelo assobio e pelo farfalhar do vento nos pés quebrados.
Coisas sem sentido inundavam sua mente — o som da borracha dura dos patins das crianças na calçada, o cheiro do fumo de cachimbo de seu pai, o sorriso de Abigail quando ele a conheceu, como uma luz perfurando seu coração confuso — e então a lanterna se apagou e tudo ficou igual e escuro.
Ele deu mais alguns passos, depois parou.
— Eu sei que você está aí — disse ele.
Inundei o milharal de luz, acendi fogueiras por todo ele para iluminá-lo,
mandei tempestades de granizo e flores, mas nada disso serviu para alertá-lo. Eu estava relegada ao céu: fiquei olhando.
— Estou aqui para isso — disse meu pai com a voz trêmula. Aquele coração explodindo para dentro e para fora, enchendo de sangue os rios de seu peito e depois se contraindo. O sorriso da minha mãe em sua mente sumindo, o meu tomando seu lugar.
— Ninguém está acordado — disse meu pai. — Estou aqui para acabar com isso.
Ele ouviu um choramingo. Eu queria lançar um holofote como eles faziam no auditório do colégio, sem precisão, fazendo a luz nem sempre atingir o lugar certo do palco. Ali estaria ela, agachada e choramingando e agora, apesar de sua sombra de olhos azul e das botas estilo caubói compradas na Bakers', fazendo xixi nas calças. Uma criança.
Ela não reconheceu a voz cheia de ódio do meu pai.
— Brian? — disse a voz trêmula de Clarissa. — Brian? — Era a esperança como um escudo.
A mão do meu pai soltou o taco, deixando-o cair no chão. — Oi? Quem está aí?
Com o vento em seus ouvidos, Brian Nelson, o espantalho de pé de milho, estacionou a Spyder Corvette do irmão mais velho no estacionamento do colégio. Atrasado, sempre atrasado, dormindo em aula e na mesa do jantar, mas nunca quando algum menino tinha uma Playboy nem quando alguma menina bonita passava, nunca em uma noite em que tinha uma menina esperando-o lá fora no milharal. Mesmo assim, não se apressou. O vento, glorioso manto e coberta para o que ele tinha planejado, zumbia por seus ouvidos.
Brian andou em direção ao milharal com a lanterna gigante do kit- catástrofe que sua mãe guardava embaixo da pia. Finalmente ouviu o que diria mais tarde terem sido os gritos de socorro de Clarissa.
O coração do meu pai parecia uma pedra ali, pesado, carregado dentro de seu peito enquanto ele corria e tropeçava em direção ao som do choro da menina. Sua mãe tricotava luvas sem dedos para ele, Susie pedia luvas com dedo, com tanto frio no milharal no inverno. Clarissa! A amiga boba de Susie. Maquiagem, sanduíches de geleia afetados e apele com bronzeado tropical. Ele correu às cegas na direção dela e a derrubou no escuro. Seus gritos encheram os ouvidos dele e se derramaram dentro dos espaços vazios, ricocheteando lá dentro.
— Susie! — gritou ele de volta.
Brian correu ao ouvir meu nome — para a frente a toda velocidade, completamente desperto. A luz de sua lanterna pulou por cima do milharal, e por um segundo brilhante ali estava o sr. Harvey. Ninguém o viu a não ser eu. A lanterna de Brian bateu nas suas costas enquanto ele se esgueirava para o meio dos altos pés de milho e aguçava os ouvidos, mais uma vez, para escutar o som do choro.
Então a luz atingiu seu alvo e Brian puxou meu pai para cima e para longe de Clarissa para bater nele. Bateu na cabeça dele, nas costas e no rosto com a lanterna do kit-catástrofe. Meu pai gritou, ganiu e gemeu.
Então Brian viu o taco.
Empurrei como uma louca as fronteiras imóveis do meu céu. Queria estender a mão e levantar meu pai, levá-lo embora, trazê-lo até mim.
Clarissa correu e Brian golpeou. Os olhos do meu pai encararam os de Brian, mas ele mal conseguia respirar.
— Seu escroto! — Brian estava preto e branco de culpa.
Ouvi murmúrios no chão. Ouvi meu nome. Pensei poder sentir o gosto do sangue no rosto do meu pai, estender a mão para passar os dedos por eus lábios cortados, deitar com ele no meu túmulo.
Mas tive que virar as costas no céu. Eu não podia fazer nada — presa no meu mundo perfeito. O sangue tinha um gosto amargo. Ácido. Eu queria a vigília do meu pai, seu forte amor por mim. Mas queria também que ele fosse embora e me deixasse em paz. Tive direito a uma única pequena dádiva. De volta ao quarto onde a cadeira verde ainda estava morna com o calor do corpo dele, soprei aquela vela solitária, trêmula, e a apaguei.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora