Capítulo 6

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Duas semanas antes da minha morte, saí de casa mais tarde do que o normal, e quando cheguei no colégio o círculo de asfalto em que os ônibus escolares geralmente ficavam estava vazio.
Um inspetor do escritório disciplinar anotava seu nome se você tentasse
entrar pelas portas da frente depois de o primeiro sinal tocar, e eu não queria
ser chamada durante a aula para ir me sentar no banco duro do lado de fora
da sala do sr. Peterford, onde, como todos sabiam, ele fazia você se abaixar e
batia no seu traseiro com uma tábua. Ele tinha pedido ao professor de oficina
para furar buracos na tábua para diminuir a resistência do vento durante o
movimento e para doer mais quando batesse nos nossos jeans.
Eu nunca tinha chegado tarde o suficiente nem feito nada ruim o bastante
para ter direito à tábua, mas na minha cabeça, como na de todos os outros
alunos, podia visualizá-la tão bem que minha bunda ardia. Clarissa tinha me
dito que os maconheiros mirins, como eram chamados no ginásio, usavam a
porta dos fundos do palco, deixada sempre aberta por Cleo, o zelador, que
tinha interrompido o científico no meio e abandonado os estudos como
maconheiro sênior.
Então, naquele dia, eu me esgueirei para a área das coxias, prestando
atenção a onde pisava, tomando cuidado para não tropeçar nas várias cordas
e fios. Parei ao lado de alguns andaimes e pus minha mochila no chão para
pentear o cabelo. Eu tinha me acostumado a sair de casa usando o gorro dos
sininhos e depois trocá-lo, assim que fosse escondida pela casa dos O'Dwyer,
por uma velha boina preta de marinheiro do meu pai. Tudo deixava meu
cabelo cheio de estática, e minha primeira parada geralmente era o banheiro
das meninas, onde eu o penteava para fazê-lo voltar ao normal.
— Você é linda, Susie Salmon.
— Aqui — disse a voz.
Olhei para cima e vi a cabeça e o tórax de Ray Singh inclinados no alto
andaime acima de mim.
— Oi — disse ele.
Eu sabia que Ray Singh era a fim de mim. Ele tinha se mudado da
Inglaterra no ano anterior, mas Clarissa sabia que ele tinha nascido na índia. O
fato de alguém poder ter o rosto de um país e a voz de outro e depois se
mudar para um terceiro era incrível demais para meu entendimento. Aquilo o
tornava imediatamente interessante. Além disso, ele parecia oitocentas vezes
mais inteligente do que nós, e era a fim de mim. O que acabei percebendo
serem afetações — o paletó de smoking que ele usava para o colégio de vez
em quando e seus cigarros importados, que na verdade eram da mãe dele —
pensava serem provas de sua educação mais refinada. Ele sabia e via coisas
que o restante de nós não via. Naquela manhã, quando ele falou comigo lá de
cima, meu coração foi ao chão.
— O primeiro sinal não tocou? — perguntei.
— Tenho o sr. Morton na sala de chamada — disse ele. Isso explicava
tudo. O sr. Morton tinha uma ressaca perpétua, que estava no auge pela
manhã. Ele nunca fazia a chamada.
— O que você está fazendo aí em cima?
— Sobe e vem ver — disse ele, tirando a cabeça e os ombros do meu
campo de visão.
Hesitei.
— Vem, Susie.
Foi o único dia da minha vida em que fui indisciplinada — ou pelo menos
agi como se fosse. Pus o pé na primeira barra do andaime e estendi os braços
para O primeiro travessão.
— Traz suas coisas — aconselhou Ray.
Desci para pegar minha mochila e depois subi, desequilibrada.
— Deixa eu ajudar você — disse ele, e pôs as mãos debaixo dos meus
braços, O que, mesmo que eu estivesse protegida por minha parca de inverno,
me fez ficar encabulada. Fiquei sentada por algum tempo com os pés
pendendo para o lado de fora.
— Põe os pés para dentro — disse ele. — Assim ninguém vê a gente.
Fiz o que ele dizia, e depois o encarei por um instante. De repente me
senti estúpida — insegura sobre por que estava ali.
— Você vai ficar aqui o dia todo? — perguntei.
— Só até o final da aula de inglês.
— Você está matando inglês! — Era como se ele tivesse assaltado um
banco.
— Eu vi todas as peças de Shakespeare encenadas pela Royal
Shakespeare Company — disse Ray. — Aquela piranha não tem nada para me
ensinar.
Naquele momento senti pena da sra. Dewitt. Se chamar a sra. Dewitt de
piranha fazia parte de ser mau, então eu estava fora.
— Eu gosto de Otelo — arrisquei.
— O jeito como ela ensina é uma bobagem infantil. Uma espécie de
versão vulgarizada do Mouro.
Ray era inteligente. Combinado ao fato de ele ser um indiano da
Inglaterra, isso o tinha transformado em um marciano em Norristown.
— Aquele cara do filme estava bem ridículo com aquela maquiagem preta
— disse eu.
— Sir Laurence Olivier, você quer dizer.
Ray e eu ficamos calados. Calados o suficiente para ouvir tocar o sinal do
fim da chamada e, cinco minutos depois, o sinal dizendo que deveríamos estar
no primeiro andar na aula da sra. Dewitt. À cada segundo que passava depois
desse sinal, eu podia sentir minha pele esquentar e o olhar de Ray se espichar
para meu corpo, absorvendo minha parca azul brilhante e minha minissaia
verde com meias Danskin combinando. Meus sapatos de verdade estavam ao
meu lado na mochila. Eu calçava um par de botas imitando pele de carneiro
com o recheio sintético sujo saindo como tripas de animal por cima e pelos
lados. Se eu soubesse que essa seria a cena de sexo da minha vida, talvez
tivesse me preparado um pouco, e tornado a usar minha Poção de Beijar sabor
Morango-Banana ao passar pela porta.
Eu podia sentir o corpo de Ray se inclinando na minha direção, e o
andaime debaixo de nós rangendo por causa do movimento. Ele é da
Inglaterra, pensava eu. Seus lábios chegaram mais perto, o andaime se inclinou. Eu estava tonta — prestes a ser engolfada pela onda do meu
primeiro beijo, quando nós dois ouvimos alguma coisa. Congelamos.
Ray e eu deitamos um ao lado do outro e ficamos olhando para as luzes e
fios no teto. No instante seguinte, a porta do palco se abriu e o sr. Peterford e
a professora de artes, srta. Ryan, entraram, sendo reconhecidos pelas vozes.
Havia uma terceira pessoa com eles.
— Não vamos tomar medidas disciplinares agora, mas faremos isso se
você insistir — dizia o sr. Peterford. — Srta. Ryan, trouxe os materiais?
— Trouxe. — A srta. Ryan tinha vindo de um colégio católico para o
Kennet e assumido o departamento de artes de dois ex-hippies despedidos
quando o forno de cerâmica explodiu. Nossas aulas de arte tinham se
transformado de experiências malucas com metais derretidos e guerra de
barro em intermináveis sessões desenhando perfis de bonecos de madeira que
ela posicionava em poses rígidas no início de cada aula.
— Só estou fazendo os deveres. — Era Ruth Connors. Reconheci sua voz,
e Ray também reconheceu. Todos tínhamos aula de inglês com a sra. Dewitt
no primeiro tempo.
— Isso — disse o sr. Peterford — não foi o dever.
Ray segurou minha mão e apertou. Sabíamos do que eles estavam
falando. Uma cópia xerox de um dos desenhos de Ruth tinha circulado pela
biblioteca até chegar a um menino no catálogo de fichas que foi surpreendido
pelo bibliotecário.
— Se não me engano — disse a srta. Ryan — nosso modelo de anatomia
não tem seios.
O desenho era de uma mulher reclinada de pernas cruzadas. E não era
uma boneca de madeira com arames prendendo os membros. Era uma mulher
de verdade, e os borrões de carvão vegetal de seus olhos — por acidente ou
de propósito — lhe davam um olhar lascivo que fazia todos os alunos que a
viam se sentirem altamente envergonhados ou muito felizes, obrigado.
— Aquele modelo de madeira também não tem nariz nem boca — disse
Ruth —, mas a senhorita nos disse para desenhar rostos.
Ray apertou minha mão de novo.
— Chega, minha jovem — disse o sr. Peterford. — Está óbvio que foi a
pose de repouso deste desenho em especial que o transformou em alguma
coisa que o menino Nelson iria xerocar.
— E isso é culpa minha?
— Sem o desenho não haveria problema.
— Então é culpa minha?
— Estou sugerindo que você pense em que situação isso coloca o colégio
e nos ajude desenhando o que a srta. Ryan manda a turma desenhar sem fazer
acréscimos desnecessários.
— Leonardo da Vinci desenhava cadáveres — disse Ruth baixinho.
— Entendeu?
— Entendi — disse Ruth.
Às portas do palco se abriram e se fecharam, e um instante depois Ray e
eu pudemos ouvir Ruth Connors chorando. Ray formou a palavra vamos com a
boca e fui até a beirada do andaime, passando o pé para o lado de fora para
encontrar um apoio.
Naquela semana Ray me beijaria perto do meu escaninho. Não aconteceu
em cima do andaime como ele queria que acontecesse. Nosso primeiro beijo
foi como um acidente — um lindo arco-íris de gasolina.
Desci do andaime de costas para ela. Ela não se mexeu nem se escondeu,
só ficou me olhando enquanto eu me virava. Estava sentada em um caixote de
madeira perto dos fundos do palco. A sua esquerda estavam penduradas duas
cortinas velhas. Ela me viu caminhar em sua direção, mas não enxugou os
olhos.
— Susie Salmon — disse ela, só para confirmar. Até aquele dia, a
possibilidade de eu matar o primeiro tempo e me esconder nas coxias do
auditório era tão remota quanto a da menina mais inteligente da nossa turma
ser alvo dos gritos do encarregado da disciplina.
Fiquei de pé na frente dela, de chapéu na mão.
— Que chapéu ridículo — disse ela. Levantei o gorro de sininhos e olhei
para ela.
— Eu sei. Minha mãe que fez.
— Então, você escutou?
— Posso ver?
Ruth desdobrou a xerox muito manuseada e eu olhei. Usando uma caneta
esferográfica, Brian Nelson tinha feito um buraco obsceno onde as pernas
estavam cruzadas. Tive um movimento de recuo ela ficou me olhando. Pude
ver alguma coisa brilhando em seus olhos, a pergunta secreta, e então ela se
inclinou e tirou da mochila um caderno de desenho de couro preto.
Lá dentro, era lindo. Desenhos de mulheres sobretudo, mas de animais e
homens também. Eu nunca tinha visto nada parecido antes. Cada página
estava coberta com seus desenhos. Percebi então como Ruth era subversiva,
não porque fazia desenhos de mulheres nuas que eram mal-utilizados por
seus colegas, mas porque era mais talentosa do que seus professores. Ela era
o tipo mais silencioso de rebelde. Sem remédio, na verdade.
— Você é boa mesmo, Ruth — disse eu.
— Obrigada — disse ela, e continuei a folhear as páginas de seu caderno
e a sorvê-las. Eu estava ao mesmo tempo assustada e fascinada pelo que
existia naqueles desenhos debaixo da linha preta do umbigo — o que minha
mãe chamava de "máquina de fazer neném". Eu disse a Lindsey que nunca
teria um bebê, e quando tinha 10 anos passei quase seis meses dizendo a
qualquer adulto que quisesse escutar que pretendia ligar as trompas. Eu não
sabia exatamente o que isso significava, mas sabia que era drástico, precisava
de cirurgia, e aquilo fazia meu pai dar gargalhadas.
Para mim Ruth passou de esquisita a especial. Os desenhos eram tão bons
que naquele momento eu esqueci as regras do colégio, todos os sinais e
apitos aos quais como alunos esperava-se que respondêssemos.
Depois do milharal ser isolado, vasculhado, e em seguida abandonado,
Ruth ia passear lá. Ela se enrolava em um grande xale de lã da avó por baixo
do velho e maltrapilho casaco de lã grossa do pai. Ela logo reparou que os
professores das matérias que não fossem ginástica não a denunciavam
quando ela matava aula. Ficavam felizes por não tê-la ali: sua inteligência a
tornava um problema. Exigia atenção e apressava as aulas que eles tinham
preparado.
E ela começou a pegar carona com o pai de manhã para evitar o ônibus.
Ele saía muito cedo e levava sua marmita de metal vermelho e tampa oblíqua
que ele a deixava fingir ser o celeiro das Barbies quando ela era pequena e
onde agora escondia bourbon. Antes de deixá-la no estacionamento vazio, ele
parava o caminhão, mas deixava a calefação ligada.
— Você vai ficar legal hoje? — ele sempre perguntava. Ruth assentia.
— Uma saideira?
E sem aquiescer desta vez ela lhe entregava a marmita. Ele a abria,
destampava a garrafa de bourbon, tomava um grande gole e depois passava
para ela. Ela jogava a cabeça para trás teatralmente colocava a língua no
gargalo para que muito pouco líquido entrasse na sua boca, ou então tomava
um golinho fazendo uma careta, se ele estivesse olhando para ela. Ela descia
da cabine alta. Fazia frio,muito frio, antes de o sol nascer. Então ela se lembrou
de uma coisa de uma de nossas aulas: pessoas em movimento sentem menos
frio do que pessoas paradas. Então ela passou a ir direto para o milharal, com
passos rápidos. Falava sozinha,e algumas vezes pensava em mim. Muitas vezes
descansava um instante, apoiada na cerca arame que separava o campo de
futebol da estrada de terra, enquanto via o mundo ganhar vida diante de seus
olhos.
Então nos encontramos todas as manhãs naqueles primeiros meses. O sol
nascia sobre o milharal e Holiday, solto por meu pai, ia caçar coelhos fazendo-
os entrar e sair de trás dos pés secos de milho morto. Os coelhos oravam os
gramados aparados dos terrenos de atletismo, e conforme Ruth se aproximava
podia ver suas formas escuras alinhadas junto ao giz branco da linha externa
como uma espécie de minúsculo time esportivo. Ela gostava dessa ideia, e eu
também. Ela acreditava que bichos de pelúcia moviam à noite quando os
humanos iam dormir. Ainda pensava que dentro da marmita do pai pudesse
haver minúsculas vacas e ovelhas que encontravam tempo para pastar no
bourbon e nas salsichas.
Quando Lindsey deixou as luvas para mim de Natal, entre o limite mais
externo do campo de futebol e o milharal, olhei para baixo certa manhã e vi os
coelhos investigando: cheirando os cantos das luvas forradas com seus
semelhantes. Depois vi Ruth pegá-las antes de serem agarradas por Holiday.
Ela virou uma das luvas do avesso fazendo a pele ficar do lado de fora e a
encostou no rosto. Olhou para o céu e disse:
— Obrigada! — Eu gostava de pensar que ela estava falando comigo.
Comecei a amar Ruth naquelas manhãs, sentindo que de alguma maneira
que nunca poderíamos explicar, em nossos lados opostos do Meio-Termo,
tinhamos nascido para fazer companhia uma à outra. Meninas diferentes que
tinham se encontrado da maneira mais estranha — no arrepio que ela sentiu
quando eu passei.
Ray era um andarilho, como eu, e morava bem no final da nossa área de
expansão, que ficava em volta do colégio. Ele tinha visto Ruth Connors
andando sozinha pelos campos de futebol. Desde o Natal, ia e voltava do
colégio o mais depressa possível, sem nunca se demorar. Ele queria que meu
assassino fosse pego quase tanto quanto meus pais queriam. Até isso
acontecer, Ray não conseguiria apagar os vestígios de suspeita de si próprio,
apesar de seu álibi.
Ele escolheu uma manhã em que seu pai não precisava trabalhar na
universidade e encheu a garrafa térmica do pai com o chá doce de sua mãe.
Saiu cedo para esperar Ruth e fez do círculo de cimento de onde se faziam os
lançamentos uma espécie de acampamento, sentando-se na beirada de metal
em que os lançadores apoiavam os pés.
Quando a viu andando do outro lado da cerca de arame que separava o
colégio do campo de futebol e dentro da qual ficava o mais reverenciado dos
campos — o de futebol americano — esfregou as mãos e preparou o que
queria dizer. Sua coragem então não vinha de ter me beijado — um objetivo
que ele tinha resolvido cumprir um ano antes de conseguir fazê-lo — mas sim
de se sentir, aos 14 anos, intensamente sozinho.
Vi Ruth se aproximar vinda do campo de futebol, pensando estar sozinha.
Em uma casa velha que seu pai tinha ido vasculhar, ele tinha encontrado ura
presente para ela, que combinava cora seu novo passatempo — uma
antologia poética. Ela segurava o livro apertado.
Viu Ray se levantar quando ainda estava um pouco distante.
— Oi, Ruth Connors! — disse ele acenando.
Ruth olhou para lá, e o nome dele surgiu em sua cabeça: Ray Singh. Mas
ela não sabia muito mais do que isso. Tinha escutado os boatos sobre a polícia
ter visitado a casa dele, mas acreditava no que seu pai dizia — "Nenhuma
criança fez isso!" —, então andou até ele.
— Eu fiz um chá, está aqui na minha garrafa térmica — disse Ray.
Corei por ele lá no céu. Ele era inteligente quando o assunto era Otelo, as
agora estava se comportando como um prego.
— Não, obrigada — disse Ruth. Ela estava perto dele, mas com alguns
bons metros mais do que o habitual a separá-los. Suas unhas marcavam a
capa usada da antologia poética.
— Eu estava lá naquele dia, quando você e a Susie conversaram na coxia
— disse Ray. Ele lhe estendeu a garrafa térmica. Ela não chegou mais perto
nem respondeu.
— À Susie Salmon — precisou ele.
— Eu sei de quem você está falando — disse ela.
— Você vai à homenagem?
— Não sabia que ia ter uma homenagem — disse ela.
— Acho que eu não vou.
Eu tinha os olhos fixos em seus lábios. Estavam mais vermelhos do que
normal por causa do frio. Ruth deu um passo à frente.
— Quer manteiga de cacau? — perguntou Ruth.
Ray levou suas luvas de lã até os lábios, onde elas se prenderam de leve
superfície rachada que eu tinha beijado. Ruth enfiou as mãos no bolso casaco
e pegou a manteiga de cacau.
— Toma — disse ela. — Tenho milhares. Pode ficar com esta.
— Que gentil — disse ele. — Você vai pelo menos sentar aqui comigo até
os ônibus chegarem?
Ficaram sentados juntos na plataforma de cimento dos lançadores. De
novo eu estava vendo uma coisa que nunca teria visto: eles dois juntos. Aquilo
tornava Ray mais atraente para mim do que ele jamais tinha sido. Seus olhos
eram de um cinza bem escuro.Quando olhava para ele do céu, eu não hesitava
em cair dentro deles.
Aquilo se tornou um ritual para os dois. Nos dias em que o pai dele
lecionava, Ruth levava um pouco de bourbon na garrafinha do pai; senão
tomavam chá doce. Fazia um frio cio, mas isso não parecia ter importância
para eles.
Eles conversavam sobre como era ser estrangeiro em Norristown. Liam
poemas da antologia de Ruth em voz alta. Conversavam sobre como virar o
que queriam ser. Médico no caso de Ray. Pintora/poetisa no de Ruth.
Formaram um clube secreto composto pelos outros esquisitos que
conseguiam identificar na turma. Havia os óbvios como Mark Bayles, que tinha
tomado tanto ácido que ninguém entendia como ele ainda estava no colégio,
ou Jeremiah, que era da Louisiana e tão estrangeiro quanto Ray. Depois havia
os silenciosos. ÁArtie, que conversava animadamente com qualquer pessoa
sobre os efeitos do formol. Harry Orland, tão timido que usava o short de
ginástica por cima do jeans. E Vicki Kurz, que todos pensavam estar bem
depois da morte da mãe, mas que Ruth tinha visto dormindo em uma cama de
agulhas de pinheiro atrás do terreno do ginásio. E algumas vezes falavam
sobre mim.
— É tão estranho — disse Ruth. — Quero dizer, a gente estudava na
mesma turma, desde o jardim de infância, mas aquele dia na coxia do
auditório foi a primeira vez que a gente olhou uma para a outra.
— Ela era muito legal — disse Ray. Pensou em nossos lábios se tocando
enquanto estávamos sozinhos atrás de uma fileira de escaninhos. Em como eu
tinha sorrido de olhos fechados e depois quase saído correndo. — Você acha
que eles vão encontrar o cara?
— Acho que sim. Você sabe que a gente está a uns cem metros de onde
aconteceu.
— Sei — disse ele.
Os dois ficavam sentados na fina borda de metal do apoio dos lança
dores, segurando chá nas mãos enluvadas. O milharal tinha virado um lugar
aonde ninguém ia. Quando uma bola saia do campo de futebol, um menino
tomava coragem para ir buscá-la. Naquela manhã, o sol que nascia passava
direito entre os pés de milho mortos, mas dele não emanava calor nenhum.
— Encontrei estas luvas aqui — disse ela, mostrando as luvas de couro.
— Você pensa nela em algum momento? — perguntou ele. Ficaram
novamente calados.
— O tempo todo — disse Ruth.
Um arrepio percorreu minha espinha.
— Algumas vezes acho que ela tem sorte, sabe. Eu odeio este lugar.
— Eu também — disse Ray. — Mas já morei em outros lugares. Isto aqui é
só um inferno temporário, não permanente.
— Você não quer dizer que...
— Ela está no céu, se é que você acredita nessas coisas.
— Você não acredita?
— Acho que não, não.
— Eu acredito — disse Ruth. — Não estou falando naquela babaquice
asas de anjo, mas acho que existe um céu, sim.
— Ela está feliz?
— Lá é o céu, né?
— Mas o que isso quer dizer?
O chá estava gelado e o primeiro sinal já tinha tocado. Ruth sorriu para
dentro da xicara.
— Bom, como diria o meu pai, quer dizer que ela está longe deste buraco
de merda.
Quando meu pai bateu na porta da casa de Ray Singh, ficou paralisado
pela mãe de Ray, Ruana. Não que ela tenha sido imediatamente receptiva, e
ela estava longe de ser alegre, mas alguma coisa em seus cabelos escuros, em
seus olhos cinzentos e mesmo na estranha maneira como ela pareceu se
afastar da porta depois de abri-la, tudo isso o deixou perplexo.
Ele tinha escutado os comentários descuidados da polícia a seu respeito.
Para eles, ela era fria e esnobe, condescendente, estranha. Então foi isso que
ele imaginou que iria encontrar.
— Entre e sente-se — disse-lhe ela quando ele pronunciou seu nome.
Ão ouvir a palavra Salmon, os olhos dela haviam se transformado de
portas fechadas em portas abertas — quartos escuros onde ele queria ser o
primeiro a entrar.
Ele quase perdeu o equilibrio quando ela o conduziu até o pequeno
vestíbulo da casa deles. Havia livros pelo chão com as lombadas para cima.
Eram três fileiras a partir da parede. Ela vestia um sári amarelo e o que
pareciam ser calças capri de lamê dourado por baixo. Estava descalça.
Caminhou sem fazer barulho pelo carpete e parou perto do sofá.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou ela, e ele assentiu.
— Quente ou frio?
— Quente.
Enquanto ela desaparecia em um cômodo que ele não conseguia ver, ele
se sentou no sofá quadriculado marrom. As janelas na sua frente debaixo das
quais os livros estavam arrumados estavam cobertas por longas cortinas de
musselina, que a forte luz do dia lá fora tinha de lutar para atravessar. Ele se
sentiu de repente muito confortável, quase perto de se esquecer por que
naquela manhã tinha verificado duas vezes o endereço dos Singh.
Algum tempo depois, enquanto meu pai pensava em como estava
cansado e em como tinha prometido à minha mãe buscar uma roupa que
estava há tempos na tinturaria, a sra. Singh voltou com chá em uma bandeja e
a colocou na frente dele no carpete.
— Desculpe, mas não temos muitos móveis. O sr. Singh ainda está
procurando emprego.
Ela foi até um cômodo contíguo e trouxe de volta uma almofada roxa
para se sentar, que pôs no chão para ficar de frente para ele.
— O sr. Singh é professor? — perguntou meu pai, embora já soubesse
isso, embora soubesse mais coisas do que gostaria sobre aquela bela mulher e
sua casa pouco mobiliada.
— É — disse ela, e serviu o chá. A sala estava silenciosa. Ela lhe estendeu
uma xícara, e enquanto ele aceitava disse: — O Ray estava com ele no dia que
sua filha foi morta.
Ele sentiu vontade de se perder dentro dela.
— Deve ter sido por isso que o senhor veio aqui — continuou ela.
— Foi — disse ele. — Quero falar com ele.
— Ele está no colégio agora — disse ela. — O senhor sabe disso. — Suas
pernas vestidas com as calças douradas estavam encolhidas ao lado do corpo.
As unhas de seus pés estavam compridas e sem esmalte, sua superfície
deformada por anos de dança.
— Eu queria passar aqui e dizer à senhora que não desejo mal a ele —
disse meu pai. Eu olhava para ele. Nunca o tinha visto daquele jeito antes. As
palavras saíam de sua boca como fardos de que estivesse se libertando, verbos
e substantivos encalhados, mas ele olhava para os pés dela dobrando-se em
cima do tapete bege e para o modo como uma poça de luz filtrada tocava sua
bochecha direita.
— Ele não fez nada de errado e amava a sua filha. Uma paixão de
estudante, mas mesmo assim uma paixão.
Paixões de estudante aconteciam o tempo todo com a mãe de Ray. O
adolescente que entregava o jornal parava sua bicicleta, esperando que ela
esse perto da porta quando ouvisse o som do Philadelphia Inquirer saindo na
varanda. Esperando que ela saísse e, se saísse, que acenasse para ele. Ela
sequer precisava sorrir, e raramente sorria fora de casa — eram seus olhos, seu
porte de bailarina, a maneira como parecia pensar em cada movimento de seu
corpo.
Quando a polícia veio, entrou no hall escuro em busca de um assassino,
mas antes de Ray aparecer no alto da escada, Ruana os tinha intrigado tanto
que eles estavam concordando em tomar chá e sentar-se em almofadas de
seda. Esperavam que ela caísse nas teias da conversa na qual se fiavam ao falar
com qualquer mulher bonita, mas ela só ia ficando mais ereta enquanto eles
tentavam com cada vez mais afinco cair em suas graças, e ficou de pé ao lado
da janela enquanto interrogavam seu filho.
— Fico feliz pela Susie ter tido um menino legal para gostar dela — disse
meu pai. — Vou agradecer a seu filho por isso.
Ela sorriu sem mostrar os dentes.
— Ele escreveu um bilhete de amor para ela — disse ele.
— Foi.
— Eu gostaria de ter sabido o que ia acontecer para fazer a mesma coisa
— disse ele. — Dizer a ela que a amava, no último dia.
— É
— Mas o seu filho fez isso.
— Foi.
Ficaram se encarando por um instante.
— A senhora deve ter enlouquecido os policiais — disse ele, e sorriu mais
para si mesmo do que para ela.
— Eles vieram acusar o Ray — disse ela. — Eu não estava preocupada
com o que pensavam de mim.
— Imagino que está sendo difícil para ele — disse meu pai.
— Não, eu não vou permitir isso — disse ela, séria, e tornou a pôr a xicara
na bandeja. — O senhor não pode ter pena do Ray nem de nós.
Meu pai tentou gaguejar uma reação. Ela levantou a mão.
— O senhor perdeu uma filha e veio aqui por algum motivo. Vou
conceder isso ao senhor, e só isso, mas tentar entender nossas vidas, não.
— Eu não quis ofender — disse ele. — Eu só...
A mão se levantou de novo.
— O Ray vai chegar em casa daqui a vinte minutos. Eu vou falar com ele
primeiro para prepará-lo, depois o senhor pode falar com o meu filho sobre a
sua filha.
— O que foi que eu disse?
— Eu gosto do fato de não termos muita mobília. Assim posso pensar que
um dia podemos fazer as malas e ir embora.
— Eu espero que fiquem — disse meu pai. Disse isso porque tinha sido
ensinado a ser educado desde pequeno, uma educação que me transmitiu,
mas também o disse porque parte dele queria mais dela, daquela mulher fria
que não era exatamente fria, daquela rocha que não era de pedra.
— Com toda educação — disse ela —, o senhor nem me conhece. Vamos
esperar pelo Ray juntos.
Meu pai tinha saído de casa no meio de uma briga entre Lindsey e minha
mãe. Minha mãe estava tentando convencer Lindsey a ir com ela nadar. Sem
pensar, Lindsey gritou:
— Prefiro morrer! — com toda força. Meu pai viu minha mãe congelar,
depois explodir, fugindo para o quarto para chorar atrás da porta. Em silêncio,
guardou o caderno de anotações no bolso, pegou as chaves do carro
penduradas perto da porta dos fundos, e saiu de fininho.
Naqueles dois primeiros meses, minha mãe e meu pai se moviam em
direções opostas. Um ficava em casa, o outro saia. Meu pai adormecia na
cadeira verde de seu quartinho e, quando acordava, se esgueirava com cuidado até o quarto e entrava na cama. Se minha mãe tivesse pegado a maior
parte dos lençóis ele dormia sem se cobrir, com o corpo em posição fetal,
pronto para dar um pulo a qualquer momento, pronto para qualquer coisa.
— Eu sei quem a matou — ele se viu dizendo para Ruana Singh.
— O senhor contou para a polícia?
— Contei.
— O que eles disseram?
— Disseram que por enquanto nada a não ser a minha suspeita liga
homem ao crime.
— À suspeita de um pai... — começou ela.
— Tem tanto poder quanto o instinto de uma mãe.
Dessa vez ela sorriu mostrando os dentes.
— Ele vive nas redondezas.
— O que o senhor está fazendo?
— Investigando todas as pistas — disse meu pai, e enquanto falava
percebeu como aquilo soava.
— E o meu filho...
— E uma pista.
— Talvez o outro homem assuste demais o senhor.
— Mas eu preciso fazer alguma coisa — protestou ele.
— Aqui vamos nós de novo, sr. Salmon — disse ela. — O senhor está me
entendendo mal. Não estou dizendo que está fazendo a coisa errada vindo
aqui. É a coisa certa, de certo modo. O senhor quer encontrar alguma coisa
macia, alguma coisa quente em tudo isso. Sua busca trouxe o senhor até aqui.
Isso é bom. Só estou preocupada que também seja bom para o meu filho.
— Não quero causar nenhum problema.
— Qual é o nome do homem?
— George Harvey. — Era a primeira vez que ele dizia o nome em voz alta
para alguém a não ser Len Fenerman.
Ela ficou calada e se pós de pé. Virando-lhe as costas, caminhou até a
primeira janela, depois até a outra, e afastou as cortinas. O dia tinha a cor de
depois do colégio que ela tanto adorava. Ela olhou para a rua esperando ver
Ray.
— O Ray já vai chegar. Vou encontrá-lo na rua. Se me dá licença,
sr.Salmon, preciso vestir o casaco e calçar as botas. — Ela fez uma pausa. —
Sr.Salmon — disse —, eu faria exatamente o que o senhor está fazendo: falaria
com todo mundo que precisasse, não diria o nome dele a muitas pessoas.
Quando tivesse certeza — disse ela — encontraria um jeito discreto e o
mataria.
Ele podia ouvi-la no hall de entrada, o ruído metálico de cabides
enquanto ela pegava o casaco. Alguns minutos depois, a porta foi aberta e
fechada. Uma brisa fria entrou de fora e então, na rua, ele pôde ver uma mãe
cumprimentando o filho. Nenhum dos dois sorriu. Suas cabeças estavam
baixas. Suas bocas se moviam. Ray tentava entender o fato de que meu pai
estava esperando dentro da sua casa.
No início minha mãe e eu pensamos que só o óbvio distinguia Len
Fenerman do resto da força policial. Ele era mais baixo do que os enormes
homens uniformizados que geralmente o acompanhavam. Depois havia
também os traços menos óbvios — o modo como ele muitas vezes parecia
estar pensando consigo mesmo, sua falta de queda por ser engraçado ou
tentar ser algo além de sério quando falava sobre mim e sobre as
circunstancias do caso. Mas conversando com minha mãe Len Fenerman havia
se revelado tal como era: um otimista. Ele acreditava que meu assassino seria
pego.
— Talvez não hoje nem amanhã — disse ele a minha mãe —, mas um dia
ele vai fazer alguma coisa incontrolável. Eles são descontrolados demais em
seus hábitos para não fazer isso.
Minha mãe precisou fazer sala para Len Fenerman até meu pai voltar da
casa dos Singh. Na mesa da sala íntima os lápis de cera de Buckley estavam
espalhados em cima do papel de pão que minha mãe tinha estendido. Buckley
e Nate tinham desenhado até suas cabeças começarem a despencar como
flores pesadas, e minha mãe os tinha colhido no colo, primeiro um depois o
outro, e os deitado no sofá. Estavam ali dormindo, um de cada lado, com os
pés quase chegando na metade do sofá.
Len Fenerman era cuidadoso o bastante para falar em voz baixa, mas
minha mãe reparou que ele não era fã de crianças. Ele a viu pegar os dois
meninos no colo, mas não se levantou para ajudar nem comentar sobre eles
como outros policiais sempre faziam, definindo-a por seus filhos, tanto os
vivos quanto os mortos.
— O Jack quer falar com o senhor — disse minha mãe. — Mas tenho
certeza de que está ocupado demais para esperar.
— Não estou não.
Vi uma mecha preta de seus cabelos escapar de trás da orelha onde ela os
tinha prendido. Aquilo suavizava seu rosto. Vi Len prestar atenção também.
— Ele foi até a casa daquele coitado do Ray Singh — disse ela, e
recolocou a mecha caída no lugar.
— Lamento termos tido de interrogá-lo — disse Len.
— E — disse ela. — Nenhum menino é capaz de... — Ela não conseguiu
dizer, e ele não a obrigou.
— O álibi dele era sólido.
Minha mãe pegou um lápis de cera de cima do papel.
Len Fenerman ficou vendo minha mãe desenhar bonecos e cachorros de
palito. Buckley e Nate faziam barulhinhos enquanto dormiam no sofá. Meu
irmão se encolheu em posição fetal e um segundo depois pôs o polegar na
boca para chupar. Era uma mania que minha mãe tinha dito que precisávamos
ajudá-lo a abandonar. Agora ela invejava aquela paz tão fácil.
— À senhora me lembra a minha mulher — disse Len depois de um longo
silêncio durante o qual minha mãe tinha desenhado um poodle laranja e o que
parecia ser um cavalo azul submetido a um tratamento de choques elétricos.
— Ela também não sabe desenhar?
— Ela não falava muito quando não tinha nada para dizer.
Passaram-se mais alguns minutos. Uma bola amarela de sol. Uma casa
marrom com flores do lado de fora — cor-de-rosa, azuis, roxas.
— O senhor falou no passado. Ambos ouviram a porta da garagem.
— Ela morreu logo depois de nos casarmos — disse ele.
— Papai! — gritou Buckley dando um pulo, esquecendo-se de Nate e de
todos os outros.
— Sinto muito — disse ela a Len.
— Eu também — disse ele —, pela Susie. De verdade.
No hall dos fundos, meu pai cumprimentou Buckley e Nate efusivamente
e gritando "Oxigênio!" como sempre fazia quando nós o soterrávamos depois
de um dia longo. Mesmo que soasse falso, animar-se para meu irmão era
geralmente a parte preferida de seu dia. Minha mãe ficou olhando para Len
Fenerman enquanto meu pai ia dos fundos da casa até a sala íntima. Corra
para a pia, eu queria dizer a ela, olhe no ralo e para dentro da terra. Eu estou lá
embaixo esperando; estou aqui em cima olhando.
Len Fenerman tinha sido o primeiro a pedir para minha mãe minha foto
de colégio quando a polícia pensava que eu poderia ser encontrada viva. Em
sua carteira estava minha foto, junto com outras. Entre aquelas crianças mortas
havia uma foto de sua mulher. Se um caso tivesse sido resolvido, ele tinha
escrito a data da solução no verso da foto. Se o caso ainda estivesse em
aberto — na cabeça dele, quando não nas fichas oficiais da polícia — o verso
estava em branco. Não tinha nada escrito no verso da minha foto. Não tinha
nada escrito no verso da foto da mulher dele.
— Len, como vai? — perguntou meu pai. Holiday se levantou e ficou
pulando de um lado para o outro para meu pai fazer festa nele.
— Soube que foi visitar o Ray Singh — disse Len.
— Meninos, porque vocês não vão brincar no quarto do Buckley? —
sugeriu minha mãe. — O inspetor Fenerman e o papai precisam conversar.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora