Capítulo 12

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Em pé no quarto ao lado dele, eu o via dormir. Durante a noite, a história tinha sido descoberta e espalhada para que a polícia entendesse: o sr. Salmon estava louco de tristeza e tinha ido até o milharal à
procura de vingança. Aquilo batia com o que sabiam a seu respeito, seus telefonemas persistentes, sua obsessão com o vizinho, e o fato de o inspetor Len Fenerman ter ido à minha casa naquele mesmo dia dizer a meus pais que, para todos os efeitos, a investigação do meu assassinato tinha entrado em uma espécie de hiato. Não havia mais pistas a seguir. Nenhum corpo havia sido encontrado.
O cirurgião teve que operar o joelho dele para substituir a rótula por uma sutura parecida com uma bolsa que incapacitava parcialmente a articulação. Enquanto olhava a operação, pensei no quanto aquilo se parecia com costura, e desejei que meu pai estivesse em mãos mais capazes do que se tivesse sido trazido a mim.Nas aulas de trabalhos manuais,minhas mãos eram desajeitadas. Costura reta ou alinhavo, eu confundia tudo.
Mas o cirurgião foi paciente. Uma enfermeira lhe contou a história enquanto ele lavava e esfregava as mãos. Ele se lembrou de ter lido nos jornais sobre o que tinha acontecido comigo. Era da mesma idade do meu pai e também tinha filhos. Tremia ao esticar as luvas sobre as mãos. Como ele e aquele homem eram parecidos. Como eram diferentes.
No quarto escuro de hospital, uma lâmpada fluorescente zumbia logo atrás da cama do meu pai. Conforme a madrugada ia chegando, aquela era a única luz no quarto até minha irmã entrar.
Minha mãe e meu irmão acordaram com o barulho das sirenes de polícia e desceram de seus quartos para a cozinha escura.
— Vai acordar seu pai — disse minha mie para Lindsey. — Não posso acreditar que ele esteja dormindo com este barulho.
Então minha irmã tinha subido as escadas. Todos sabiam onde procurá-lo: em apenas seis meses, a cadeira verde tinha se tornado sua verdadeira cama.
— O papai não está aqui! — gritou minha irmã assim que se deu conta. — O papai sumiu! Mãe! Mãe! O papai sumiu! — Por um raro instante Lindsey era uma criança assustada.
— Droga! — disse minha mãe.
— Mamãe? — disse Buckley.
Lindsey entrou correndo na cozinha. Minha mãe estava encarando o
rogão. Suas costas eram uma massa emaranhada de nervos enquanto ela continuava a preparar chá.
— Mãe? — perguntou Lindsey. — A gente tem de fazer alguma coisa.
— Você não está vendo...? — disse minha mãe, parando por um instante com uma caixa de Earl Grey suspensa no ar.
— O quê?
Ela soltou o chá, ligou o fogo e se virou. Foi então que viu uma coisa: Buckley tinha ido se agarrar à minha irmã enquanto chupava o dedo ansiosamente.
— Ele saiu atrás daquele homem e arrumou encrenca.
— A gente deveria sair, mãe — disse Lindsey. — A gente deveria ir ajudar o papai.
— Não.
— Mãe, a gente precisa ajudar o papai.
— Buckley, pare de mamar o dedo!
Meu irmão começou a chorar, em pânico, e minha irmã abaixou os braços
para trazê-lo para mais perto. Ela olhou para nossa mãe.
— Vou sair para encontrar ele — disse Lindsey.
— Você não vai fazer nada disso — disse minha mãe. — Ele vai voltar
para casa quando for a hora. Vamos ficar fora disso.
— Mãe — disse Lindsey —, e se ele estiver machucado?
Buckley parou de chorar por tempo suficiente para olhar alternadamente
para minha irmã e para minha mãe. Ele sabia o que era se machucar e quem estava faltando naquela casa.
Minha mãe lançou um olhar cheio de significado para Lindsey.
— Não vamos mais falar sobre isso. Pode subir para o seu quarto e esperar ou esperar aqui comigo. A escolha é sua.
Lindsey ficou perplexa. Encarou nossa mãe e percebeu o que mais queria: fugir, correr para o milharal onde meu pai estava, onde eu estava, para onde ela de repente sentia que o coração da família tinha se mudado. Mas Buckley estava agarrado a ela, quente.
— Buckley — disse ela —, vamos voltar lá para cima. Você pode dormir na minha cama.
Ele estava começando a entender: você era tratado de forma especial, e depois lhe contavam alguma coisa horrível.
Quando a polícia telefonou, minha mãe foi imediatamente até o armário da frente.
— Bateram nele com nosso próprio taco de beisebol! — disse ela, agarrando seu casaco, suas chaves e seu batom. Minha irmã se sentiu mais sozinha do que nunca, mas também mais responsável. Buckley não podia ficar sozinho, e Lindsey sequer sabia dirigir. Além disso, aquilo fazia o maior sentido do mundo. O lugar de uma mulher não era antes de tudo ao lado do marido?
Mas quando minha irmã conseguiu falar com a mãe de Nate — afinal, a confusão no milharal tinha acordado a vizinhança inteira — soube o que deveria fazer. Ligou para Samuel em seguida. Uma hora depois, a mãe de Nate chegou para buscar Buckley, e Hal Heckler se aproximou da casa em sua motocicleta. Aquilo deveria ter sido emocionante — abraçar o lindo irmão mais velho de Samuel, andar de moto pela primeira vez — mas tudo em que ela conseguia pensar era nosso pai. Minha mãe não estava no quarto de hospital dele quando Lindsey entrou; havia só meu pai e eu. Ela se aproximou e ficou de pé do outro lado da cama dele, e começou a chorar baixinho.
— Papai? — disse ela. — Está tudo bem com você, papai?
Uma fresta se abriu na porta. Era Hal Heckler, um pedaço de homem alto e bonito.
— Lindsey — disse ele —, estou esperando você na área dos visitantes, precisar de uma carona para casa. Ele viu suas lágrimas quando ela se virou.
— Obrigada, Hal. Se vir minha mãe...
— Eu digo para ela que você está aqui. — Lindsey pegou a mão do meu pai e examinou seu rosto à procura de algum movimento. Fiquei escutando enquanto ela sussurrava as palavras que ele tinha cantado para nós duas antes de Buckley nascer:
Pedras, ossos;
neve, gelo;
sementes, feijões, girinos.
laminhos, gravetos, beijos em quantidade, Todo mundo sabe de quem papai tem saudade! suas meninas-sapo, é delas que ele tem saudade. Elas sabem onde estão, você sabe, você sabe?
Gostaria que um sorriso tivesse surgido no rosto do meu pai, mas ele estava sedado, nadando contra uma maré de remédio, pesadelo e sonho acordado. Durante algum tempo, pesos de chumbo haviam sido atados pela anestesia aos quatro cantos de sua consciência. Como uma rígida coberta de cera, ela o tinha isolado com firmeza nas horas abençoadas em que não havia filha morta nem joelho perdido, e onde não havia tampouco filha amorosa sussurrando poemas.
— Quando os mortos param de pensar nos vivos — disse-me Franny — os vivos podem seguir adiante.
— E os mortos? — perguntei. — Para onde a gente vai? Ela não me respondeu.
Len Fenerman tinha corrido para o hospital, assim que recebeu o telefonema. Abigail Salmon, dizia o mensageiro, chamando por ele.
Meu pai estava em cirurgia, e minha mãe andava de um lado para o outro perto da sala das enfermeiras. Tinha ido para o hospital de capa dr chuva e apenas sua fina camisola de verão por baixo. Calçava suas sapatilhas baixas de passear pelo quintal. Não tinha se preocupado em prender o cabelo, e não havia nenhum elástico em seus bolsos nem na bolsa. No estacionamento escuro e enevoado do hospital ela havia parado para dar uma olhada no rosto e posto seu batom vermelho vivo com a mão experiente.
Ao ver Len se aproximar no final do longo corredor branco, ela relaxou.
— Abigail — disse ele ao chegar mais perto.
— Ah, Len — disse ela. Seu rosto adquiriu uma expressão indecisa quanto
ao que dizer em seguida. O nome dele era o suspiro de que ela precisava. Tudo o que veio depois não eram palavras.
As enfermeiras em sua sala viraram o rosto para o outro lado enquanto as mãos de Len e da minha mãe se tocavam. Elas estendiam esse véu de privacidade habitualmente, naturalmente, mas mesmo assim puderam ver que aquele homem significava alguma coisa para aquela mulher.
— Vamos conversar na área de visitantes — disse Len, e conduziu minha mãe corredor abaixo.
Enquanto andavam, ela lhe contou que meu pai estava em cirurgia. Ele lhe contou o que tinha acontecido no milharal.
— Aparentemente ele pensou que a menina fosse o George Harvey.
— Ele pensou que a Clarissa fosse o George Harvey? — Minha mãe parou, incrédula, logo antes de entrar na área de visitantes.
— Estava escuro lá fora, Abigail. Acho que ele só viu a lanterna da menina. Minha visita de hoje não poderia mesmo ter ajudado muito. Ele está convencido do envolvimento do sr. Harvey.
— A Clarissa está bem?
— Foi medicada por causa de alguns arranhões e liberada. Estava histérica. Chorava e gritava. Foi uma horrível coincidência o fato de ser amiga da Susie.
Hal estava afundado em uma cadeira em um canto escuro da área de visitantes com os pés em cima do capacete que tinha trazido para Lindsey. o ouvir vozes se aproximando, ele se mexeu. Era minha mãe e um policial. Ele tornou a afundar na cadeira e deixou cabelos na altura dos ombros cobrirem- lhe o rosto. Tinha quase certeza que minha mãe não se lembraria dele.
Mas ela reconheceu a jaqueta de Samuel e por um instante pensou, O Samuel está aqui, mas depois pensou, O irmão dele.
— Vamos sentar — disse Len, apontando para as duas cadeiras modukres presas uma à outra no outro canto da sala.
— Prefiro continuar andando — disse minha mãe. — O médico disse que vai demorar pelo menos uma hora até eles terem alguma coisa para nos dizer.
— Andando para onde?
— Você tem cigarro?
— Você sabe que eu tenho — disse Len, sorrindo com gentileza. Ele
precisava procurar os olhos dela. Eles não estavam focalizados nele. Pareciam preocupados, e ele desejou poder estender a mão e agarrá-los e guiá-los para o aqui e agora.
— Vamos encontrar uma saída então.
Encontraram uma porta para uma pequena sacada de concreto perto do quarto do meu pai. Era uma sacada de serviço que dava para um aparelho de calefação, então, embora fosse atravancada e ligeiramente fria, o barulho e a exaustão quente do hidrante ligado ao seu lado os fechavam dentro de uma cápsula que parecia estar muito longe dali. Ficaram fumando e olhando um para o outro como se de repente e sem aviso tivessem passado para uma nova página, onde os assuntos urgentes já tivessem sido assinalados para atenção imediata.
— Como a sua mulher morreu? — perguntou minha mãe.
— Suicídio.
O cabelo dela cobria a maior parte de seu rosto, e olhando para ela eu me
lembrei de Clarissa em sua versão mais afetada. O modo como ela se comportava perto dos meninos quando ia ao shopping. Ela ria demais e ficava olhando para eles para ver para onde eles estavam olhando. Mas também fui surpreendida pela boca vermelha da minha mãe com o cigarro espetado para cima e para fora e a fumaça saindo. Eu só tinha visto aquela mãe uma vez antes — na foto. Aquela mãe nunca tinha nos tido.
— Por que ela se matou?
— Essa é a pergunta que mais me preocupa quando não estou preocupado com coisas como o assassinato da sua filha.
Um sorriso estranho apareceu no rosto da minha mãe. — Diz isso de novo — falou ela.
— O quê? — Len olhou para o sorriso dela, teve vontade de estender a mão e acompanhar seu contorno com a ponta dos dedos.
— O assassinato da minha filha — disse minha mãe.
— Abigail, está tudo bem com você?
— Ninguém diz isso. Ninguém no nosso bairro fala sobre isso. As pessoas
dizem "a horrível tragédia" ou alguma outra variação. Eu só quero que alguém diga em voz alta. Ouvir isso ser dito em voz alta. Estou pronta — antes não estava.
Minha mãe jogou seu cigarro no concreto e o deixou queimar. Segurou o rosto de Len com as mãos.
— Diz — falou ela.
— O assassinato da sua filha.
— Obrigada.
E vi aquela fina boca vermelha passar para o outro lado de uma linha
invisível que separava minha mãe do resto do mundo. Ela puxou Len para mais perto e o beijou na boca devagar. No início ele pareceu hesitar. Seu corpo se retesou, dizendo-lhe NÃO, mas esse NÃO se tornou vago e enevoado, transformou-se em ar sendo sugado pelo exaustor do hidrante que zumbia ao lado deles. Ela levantou a mão e desabotoou a capa de chuva. Ele pôs a mão em cima do tecido fino e transparente de sua camisola de verão.
Em sua necessidade, minha mãe era irresistível. Quando criança, eu tinha visto seu efeito sobre os homens. Quando íamos às compras, vendedores se ofereciam para encontrar os produtos em sua lista e nos ajudavam a levar as compras até o carro. Como Ruana Singh, ela era conhecida por ser uma das mães bonitas do bairro; nenhum homem que a conhecesse podia evitar um sorriso. Quando ela fazia uma pergunta, seus corações contrariados cediam.
Mas ainda assim meu pai tinha sido o único a espalhar o riso dela pelos cômodos da casa e a fazer com que estivesse tudo bem se soltasse, de alguma maneira, juntando horas extras aqui e ali e pulando a hora de almoço, meu pai tinha conseguido voltar cedo do trabalho toda quinta-feira quando éramos pequenos. Mas enquanto os fins de semana eram passados com a família, eles chamavam esse dia de "Hora da mamãe e do papai". Lindsey e eu o comparávamos a um dia passado com as amigas. Significava que não podíamos fazer nenhum barulho e devíamos ficar quietinhas do outro lado da casa enquanto usávamos o quartinho ainda vazio do meu pai como quarto de brincar.
Minha mãe começava a nos preparar por volta das duas.
— Hora do banho — cantarolava ela, como se estivesse dizendo que podíamos sair para brincar. E no começo era o que parecia. Nós três corríamos cada uma para o seu quarto e vestíamos nossos roupões. Nos encontrávamos no corredor — três meninas — e minha mãe nos pegava pela mão e nos levava para nosso banheiro cor-de-rosa.
Naquela época ela nos falava sobre mitologia, que tinha estudado no colégio. Gostava de nos contar histórias sobre Perséfone e Zeus. Comprava- nos livros ilustrados sobre os deuses nórdicos, que nos faziam ter pesadelos. Tinha feito mestrado em língua inglesa — depois de brigar com unhas e dentes com vovó Lynn para conseguir estudar tanto — e ainda tinha uma vaga esperança de lecionar quando nós duas fôssemos grandes o suficiente para ficarmos sozinhas.
Aquelas horas do banho se misturam, assim como todos os deuses e deusas, mas aquilo de que mais me lembro é de ver as coisas atingirem minha mãe enquanto eu olhava para ela, de como a vida que ela tinha desejado e sua perda a atingiam em ondas. Como sua primogênita, eu pensava que tinha sido eu a levar embora todos aqueles sonhos do que ela queria ser.
Minha mãe tirava Lindsey da banheira primeiro, secava-a e ouvia sua conversa sobre patos e cortes. Então me tirava da banheira e embora eu tentasse ficar quieta a água quente deixava minha irmã e eu embriagadas, e nós falávamos com minha mãe sobre tudo o que era importante para nós. Meninos que nos provocavam, ou como outra família no quarteirão tinha um cachorrinho e por que não podíamos ter um também. Ela ficava ouvindo, séria, como se estivesse anotando mentalmente os tópicos dos nossos desejos em um caderninho que consultaria mais tarde.
— Bom, cada coisa em sua hora — resumia ela. — Isso quer dizer uma boa soneca para vocês duas!
Ela e eu púnhamos Lindsey na cama juntas. Eu ficava do lado da cama enquanto ela beijava minha irmã na testa e tirava seu cabelo da frente do rosto. Acho que para mim a competição começou ali. Quem ganhava o melhor beijo, quem passava mais tempo com mamãe depois do banho.
Felizmente, eu sempre ganhava. Quando olho para trás agora vejo que minha mãe tinha se tornado — e muito rápido depois de eles se mudarem para aquela casa — solitária. Já que eu era a mais velha, tornei-me sua melhor amiga.
Eu era nova demais para saber o que ela estava realmente me dizendo, mas adorava adormecer com a suave cantiga de suas palavras. Uma das bênçãos do meu céu é poder voltar para esses momentos, vivê-los de novo, e estar com minha mãe de um jeito que jamais poderia ter estado. Estendo os traços através do Meio-Termo e seguro a mão dessa jovem mãe solitária.
O que ela disse a uma criança de quatro anos sobre Helena de Tróia: "Uma mulher frívola que estragou tudo." Sobre Margaret Sanger: "Ela foi julgada por sua aparência, Susie. Já que parecia um camundongo, ninguém esperava que fosse durar." Gloria Steinem: "Eu me sinto péssima, mas gostaria que ela aparasse aquelas unhas." Nossos vizinhos: "Uma idiota de calça justa; oprimida por aquele marido puritano; tipicamente provinciana, fica julgando todo mundo."
— Você sabe quem é Perséfone? — perguntou-me ela distraída uma quinta-feira. Mas eu não respondi. A essa altura já tinha aprendido a ficar calada quando ela me levava para o quarto. A minha hora e a hora da minha irmã eram no banheiro, quando ela nos secava com a toalha. Nessa hora Lindsey e eu podíamos falar sobre qualquer coisa. No quarto, era a hora da mamãe.
Ela pegou a toalha e a pendurou na maçaneta da minha cama de baldaquino.
— Imagine nossa vizinha, a sra. Tarking, como Perséfone — disse Abriu a gaveta da penteadeira e me estendeu a calcinha. Ela sempre me passava a roupa peça por peça, sem querer me pressionar. Logo cedo entendeu minhas necessidades. Se eu soubesse que teria de amarrar cadarços não teria sido sequer capaz de calçar as meias.
— Ela está usando um vestido comprido e branco, como um lençol e — volta dos ombros, mas feito de um tecido bonito brilhante ou leve, com seda. E calça sandálias feitas de ouro e está cercada de tochas, que são luzes? feitas de chamas...
Ela foi até a gaveta pegar minha camiseta e a passou distraidamente pela minha cabeça em vez de deixar que eu o fizesse. Uma vez minha mãe embalada, eu podia tirar vantagem — ser novamente um bebê. Eu nunca reclamava nem dizia estar crescida ou ser uma menina grande. Aquelas tardes eram inteiramente dedicadas a ouvir minha mãe misteriosa.
Ela afastou a grossa colcha de corda da Sears e eu me deitei no canto da cama, encostada na parede. Nessa hora ela sempre olhava para o relógio e depois dizia:
— Só um pouquinho — e tirava os sapatos e se deitava ao meu lado entre os lençóis.
Para nós duas, aquilo era como se perder. Ela se perdia em sua história. Eu me perdia na fala dela.
Ela me contava sobre a mãe de Perséfone, Deméter, ou sobre Cupido e Psique, e eu a escutava até adormecer. Algumas vezes os risos dos meus pais no quarto ao lado ou o som de quando faziam amor no fim da tarde me acordavam. Eu ficava ali deitada, meio dormindo, escutando. Gostava de fingir que estava no interior quentinho de algum barco de uma das histórias que meu pai lia para nós, e que estávamos todos no oceano e as ondas batiam suavemente nas laterais do barco. Os risos, o som baixo de gemidos abafados, me faziam adormecer novamente.
Mas então a fuga da minha mãe, sua volta canhestra ao mundo exterior, foi arruinada quando eu tinha 10 anos e Lindsey 9. Sua menstruação atrasou e ela fez a fatídica viagem de carro até o médico. Sob seu sorriso e suas exclamações para minha irmã e para mim havia fissuras que levavam a algum lugar bem dentro dela. Mas como eu não queria, como era uma criança, decidi não seguir aquelas fissuras. Agarrei o sorriso como um prêmio e entrei no país das maravilhas que era me perguntar se seria irmã de um menininho ou de uma menininha.
Se eu tivesse prestado atenção, teria percebido sinais. Agora vejo a mudança, como a pilha de livros na mesa de cabeceira dos meus pais mudou de catálogos das universidades da região, enciclopédias de mitologia, romances de James, Eliot e Dickens para as obras do dr. Spock. Em seguida vieram os livros de jardinagem e de culinária até, no aniversário dela dois meses antes de eu morrer, eu pensar que o presente perfeito era Guia para receber em casas e jardins mais bonitos. Ao perceber que estava grávida Dela terceira vez, ela tirou a mãe mais misteriosa de cena. Presa durante anos atrás daquele muro, aquela sua parte insatisfeita tinha crescido, não diminuído, e com Len a necessidade de sair, de quebrar, de destruir, de anular se apoderou dela. Seu corpo foi na frente, e em sua esteira ficariam os pedaços que sobrassem.
Não foi fácil para mim testemunhar aquilo, mas eu testemunhei.
Seu primeiro abraço foi apressado, desajeitado, apaixonado.
— Abigail — disse Len, agora com as duas mãos em sua cintura por baixo
da capa, uma de cada lado, com a camisola transparente mal formando um véu entre as duas peles. — Pense no que você está fazendo.
— Cansei de pensar — disse ela. Seus cabelos flutuavam acima de sua cabeça por causa do ventilador atrás deles — formando uma auréola. Len Discou enquanto olhava para ela. Maravilhosa, perigosa, selvagem.
— O seu marido — disse ele.
— Me beija — disse ela. — Por favor.
Eu estava vendo um pedido de misericórdia da minha mãe. Ela estava se
movendo fisicamente pelo tempo para fugir de mim. Eu não podia segurá-la. Len beijou sua testa com força e fechou os olhos. Ela pegou sua mão e a colocou sobre o seio. Sussurrou em seu ouvido. Eu sabia o que estava acontecendo. Sua raiva, sua perda, seu desespero. Toda a vida perdida rodopiando em um arco naquele telhado, soterrando seu ser. Ela precisava
que Len tirasse lá de dentro a filha morta.
Ele a empurrou contra a superfície de estuque da parede enquanto se
beijavam, e minha mãe se segurou nele como se do outro lado de seu beijo pudesse haver uma nova vida.
No caminho de volta do ginásio para casa, eu algumas vezes parava no final do nosso terreno e via minha mãe cortando grama com o cortador motorizado, entrando e saindo do meio dos pinheiros, e me lembrava então de como ela costumava assobiar de manhã ao fazer seu chá e de como meu pai, correndo para casa às quintas-feiras, levava-lhe cravos, e seu rosto se acendia de prazer com uma luz amarelada. Eles eram profundamente, separadamente, completamente apaixonados — longe dos filhos minha mãe podia reivindicar esse amor, mas com eles ela começou a se afastar. Foi meu pai quem se aproximou de nós com o passar dos anos: minha mãe se afastou.
Ao lado de sua cama de hospital, Lindsey tinha adormecido segurando a mão do nosso pai. Minha mãe, ainda toda amassada, passou por Hal Heckler na área de visitantes, e no instante seguinte Len passou atrás. Hal não precisava de mais nada. Agarrou seu capacete e saiu descendo o corredor.
Depois de uma visita rápida ao banheiro feminino, minha mãe estava indo em direção ao quarto do meu pai quando Hal a deteve.
— Sua filha está lá dentro — disse Hal, chamando-a. Ela se virou.
— Hal Heckler— disse ele. — Irmão do Samuel. Eu estava na homenagem. — Ah, sim, desculpa. Não reconheci você.
— Não é sua obrigação — disse ele. Houve uma pausa desconfortável.
— Então, a Lindsey me ligou e eu a trouxe aqui faz uma hora.
— Ah.
— O Buckley está com um vizinho — disse ele.
— Ah. — Ela o estava encarando. Para ela, estava voltando à superfície.
Usou o rosto dele como ponto de referência.
— Está tudo bem com a senhora?
— Estou um pouco preocupada — é compreensível, não?
— Perfeitamente — disse ele, falando devagar. — Eu só queria que a
senhora soubesse que a sua filha está lá dentro com o seu marido. Eu vou estar na área de visitantes se precisarem de mim.
— Obrigada — disse ela. Viu-o se afastar e ficou parada por um instante ouvindo os saltos gastos de suas botas de motociclista ecoarem pelo chão de linóleo.
Então ela voltou a si, forçou-se a retornar para onde estava, sem perceber por um segundo que tinha sido essa a intenção de Hal ao cumprimentá-la.
Dentro do quarto agora estava escuro, e a luz fluorescente atrás do meu o ai tremeluzia tão de leve que iluminava apenas as formas mais óbvias. Minha irmã estava em uma cadeira puxada para perto da cama, com a cabeça descansando na grade lateral e a mão estendida para tocar meu pai. Meu pai, profundamente sedado, estava deitado de costas. Minha mãe não podia saber que eu estava ali com eles, que estávamos ali os quatro tão diferentes agora da época em que ela punha Lindsey e eu na cama e ia fazer amor com o marido, nosso pai. Agora ela via os fragmentos. Via que minha irmã e meu pai, juntos, tinham se tornado um fragmento. Ficou contente com isso.
Eu tinha jogado um jogo de esconde-esconde de amor com minha mie enquanto crescia, tentando obter sua atenção e sua aprovação de um jeito que jamais tinha precisado fazer com meu pai.
Eu não precisava mais brincar de esconde-esconde. Enquanto ela estava ali em pé no quarto escurecido, olhando para minha irmã e meu pai, percebi uma das coisas que o céu significava. Eu tinha uma escolha, e minha escolha era não dividir minha família no meu coração.
Tarde da noite o ar acima dos hospitais e dos asilos de idosos muitas vezes ficava coalhado de almas agitadas. Algumas vezes, nas noites em que não conseguíamos dormir, Holly e eu ficávamos olhando as almas. Acabamos percebendo como aquelas mortes pareciam coreografadas de algum lugar distante. Não o nosso céu. Assim, começamos a desconfiar que havia um lugar mais abrangente do que aquele onde estávamos.
No começo Franny vinha olhar conosco.
— É um dos meus prazeres secretos — admitiu ela. — Depois de todos esses anos, ainda adoro ver as almas flutuando e rodopiando em bandos, todas clamando ao mesmo tempo dentro do ar.
— Não estou vendo nada — disse eu daquela primeira vez. — Olhe com atenção — disse ela — e fique quieta.
Mas eu as senti antes de vê-las, pequenas faíscas de calor subindo por meus braços.Então ali estavam elas,vaga-lumes se acendendo e se expandindo com uivos e giros enquanto abandonavam seus corpos humanos.
— Parecem flocos de neve — disse Franny. — Nenhuma é igual à outra, mas ao mesmo tempo, de onde estamos, cada uma delas é idêntica à anterior.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora