Capítulo 17

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Aos 21 anos, Lindsey era muitas coisas que eu jamais seria, mas eu quase não me incomodava mais com essa lista. Mesmo assim, eu ia aonde ela ia. Peguei meu diploma da universidade e subi na
traseira da moto de Samuel, agarrada com os braços em volta de sua cintura, apertando o corpo em suas costas para me aquecer...
Tudo bem, aquela era Lindsey. Eu percebia isso. Mas, olhando-a, descobri que conseguia me perder mais do que com qualquer outra pessoa.
Na noite de sua formatura da Universidade de Temple, ela e Samuel voltaram de moto para a casa dos meus pais, tendo prometido muitas vezes ao meu pai e à vovó Lynn que não tocariam no champanhe guardado no compartimento da moto até chegarem em casa.
— Afinal, a gente está formado! — disse Samuel. Meu pai confiava piamente em Samuel — anos tinham se passado sem que o rapaz tivesse feito qualquer coisa que não fosse para o bem da sua filha sobrevivente.
Mas na viagem de volta da Filadélfia pela estrada 30 começou a chover. Primeiro uma chuva leve, pequenas agulhadas atingindo minha irmã e Samuel, a oitenta quilômetros por hora. A chuva fria batia no asfalto quente e seco da estrada e levantava cheiros que tinham ficado cozinhando o dia todo debaixo do sol quente de junho. Lindsey gostava de descansar a cabeça entre as omoplatas de Samuel e sentir o cheiro da estrada e dos arbustos e moitas esparsos dos dois lados. Estava se lembrando de como a brisa nas horas antes da tempestade tinha inflado todas as becas brancas dos formandos enfileirados do lado de fora de Macy Hall. Todos pareciam, por um instante, prestes a sair flutuando.
Finalmente, a treze quilômetros da saída que levava à nossa casa, a chuva ficou pesada demais a ponto de machucar, e Samuel gritou para Lindsey que ia parar.
Entraram em um pedaço da estrada ligeiramente mais arborizado, do tipo que existia entre duas áreas comerciais e que gradualmente, por justaposição, seria eliminado por outro centro comercial ou loja de acessórios para carros. A moto derrapou, mas não caiu no cascalho molhado da curva. Samuel usou os pés para ajudar a frear a moto, e depois, como Hal tinha lhe ensinado, esperou minha irmã saltar e se afastar alguns passos antes de ele próprio descer.
Abriu o visor do capacete para gritar para ela.
— Não adianta — disse ele. — Vou empurrar a moto até debaixo daquelas árvores.
Lindsey o seguiu, o som da chuva abafado dentro de seu capacete forrado. Foram andando entre o cascalho e a lama, passando por cima de galhos e lixo acumulados na beira da estrada. A chuva parecia estar ficando ainda mais forte, e minha irmã ficou feliz por ter trocado o vestido que tinha usado na formatura pelas calças e casaco de couro que Hal tinha insistido em lhe dar, apesar de seus protestos de que ela parecia uma pervertida vestida daquele jeito.
Samuel empurrou a moto até o abrigo de carvalhos perto da estrada, e Lindsey foi atrás. Na semana anterior eles tinham ido cortar os cabelos no mesmo barbeiro de Market Street, e embora os cabelos de Lindsey fossem mais claros e mais finos do que os de Samuel o barbeiro tinha lhes feito cortes idênticos, espetados. Um segundo depois de tirarem os capacetes seus cabelos receberam as grandes gotas que passavam por entre as árvores, e o rimei de Lindsey começou a escorrer. Vi Samuel usar o polegar para limpar as manchas da bochecha de Lindsey.
— Feliz formatura — disse ele na escuridão, e se inclinou para beijá-la.
Desde seu primeiro beijo em nossa cozinha, duas semanas depois da minha morte, eu sabia que ele era — como minha irmã e eu tínhamos rido com nossas Barbies ou vendo Bobby Sherman na TV — seu único amor. Samuel tinha se comportado como um curativo para a carência dela, e a liga entre os dois tinha começado a se soldar imediatamente. Tinham ido à Temple juntos, lado a lado. Ele tinha odiado e ela o tinha feito ir até o fim. Ela havia adorado e isso havia permitido a ele sobreviver.
— Vamos tentar encontrar a parte mais densa desses arbustos — disse ele.
— E a moto?
— O Hal provavelmente vai ter que resgatar a gente quando a chuva passar.
— Merda! — disse Lindsey.
Samuel riu e agarrou a mão dela para começar a andar. No instante em que o fizeram, ouviram o primeiro trovão e Lindsey pulou. Ele a segurou com mais força. O relâmpago ainda estava longe, e o trovão ficaria mais forte atrás dele. Ela nunca tinha sentido por ele o mesmo que eu. Ele a deixava assustada e nervosa. Ela imaginava árvores partidas ao meio e casas pegando fogo e cachorros se encolhendo em porões pelos subúrbios.
Foram andando em meio aos arbustos, que estavam ficando encharcados, apesar das árvores. Embora fosse o meio da tarde, estava tudo escuro a não ser pela lanterna de emergência de Samuel. Mesmo assim eles sentiam provas da presença de pessoas. Suas botas esmagavam latas de alumínio e chutavam garrafas vazias. Então, através da folhagem densa e da escuridão, ambos viram as vidraças quebradas alinhadas na parte superior de uma velha casa vitoriana. Samuel desligou a lanterna de emergência imediatamente.
— Você acha que tem alguém lá dentro? — perguntou Lindsey.
— É escuro.
— É sinistro.
Eles se entreolharam, e minha irmã disse o que ambos estavam pensando. — E seco!
Deram-se as mãos sob a forte chuva e correram em direção à casa o mais rápido possível, tentando não tropeçar nem escorregar na lama cada vez mais abundante.
Conforme se aproximavam, Samuel pôde distinguir a inclinação pronunciada do telhado de duas águas e o pequeno bando de madeira esculpida que pendia da cumeeira. A maioria das janelas do andar de baixo tinha sido fechada com madeira, mas a porta da frente balançava para a frente e para trás nas dobradiças, batendo na parede interna de gesso. Embora uma parte dele quisesse ficar do lado de fora na chuva olhando para os beirais e cornijas, ele correu para dentro da casa com Lindsey. Ficaram a alguns passos da porta, tremendo e olhando para a floresta pré-suburbana que os cercava lá fora. Rapidamente vasculhei os cômodos da velha casa. Eles estavam sozinhos.
Nenhum monstro assustador espreitava nos cantos, nenhum vagabundo havia se instalado ali.
Esses terrenos não renovados estavam desaparecendo cada vez mais depressa mas, mais do que qualquer outra coisa, eles tinham marcado a minha infância. Nós morávamos em uma das primeiras áreas de expansão serem construídas nas fazendas convertidas da região — uma área de expansão que se tornou modelo e inspiração para o que agora parecia um número infinito delas — mas a minha imaginação sempre havia sido atraída pelo trecho de estrada que não tinha sido preenchido com as cores brilhantes dos sarrafos e calhas, das ruas calçadas e das caixas de correio tamanho gigante. A de Samuel também.
— Uau! — disse Lindsey. — Quantos anos você acha que ela tem? A voz de Lindsey ecoava nas paredes como se eles estivessem sozinhos uma igreja.
— Vamos explorar — disse Samuel.
As janelas do primeiro andar, lacradas com tábuas, não permitiam ver quase nada, mas com a ajuda da lanterna de emergência de Samuel eles puderam distinguir uma lareira e o guarda-cadeiras nas paredes.
— Olha para o chão — disse Samuel. Ele se ajoelhou, levando-a consigo. — Está vendo como as tábuas se encaixam umas nas outras? Essa gente tinha mais dinheiro do que seus vizinhos.
Lindsey sorriu. Da mesma maneira que Hal gostava do interior das motocicletas, Samuel tinha se tornado obcecado por carpintaria. Ele correu os dedos pelo chão e fez Lindsey fazer o mesmo.
— E uma velha ruína esplêndida — disse ele.
— Vitoriana? — perguntou Lindsey, dando seu melhor chute.
— Fico bobo de dizer isso — disse Samuel — mas acho que é revival
gótico. Reparei nas vigas diagonais no remate da cumeeira, então isso quer dizer que a casa foi construída depois de 1860.
— Olha — disse Lindsey.
No meio do chão alguém tinha feito uma fogueira muito tempo atrás. — Isso sim é uma tragédia — disse Samuel.
— Por que eles não usaram a lareira? Todos os cômodos têm lareira.
Mas Samuel estava ocupado olhando para o buraco que a fogueira tinha feito no teto, tentando identificar o padrão do trabalho em madeira nas molduras das janelas.
— Vamos subir — disse ele.
— Parece que eu estou dentro de uma caverna — disse Lindsey enquanto eles subiam as escadas. — Está tão silencioso aqui que mal se consegue ouvir a chuva.
Enquanto subia, Samuel batia no gesso com a lateral do punho fechado. — E possível murar alguém dentro deste lugar.
E de repente ali estava um daqueles instantes desconfortáveis que eles
tinham aprendido a deixar passar e eu vivia esperando que acontecessem.
Ele trazia uma pergunta central. Onde eu estava? Eu seria mencionada? Seria citada e discutida? Geralmente agora a resposta era um decepcionante
não. Na Terra não era mais dia de festa para Susie.
Mas alguma coisa naquela casa e naquela noite — acontecimentos
marcantes como formaturas e nascimentos sempre significavam que eu estava mais viva, mais alto na escala de pensamento — fez Lindsey pensar em mim por mais tempo do que o instante durante o qual normalmente pensaria. Ainda assim, ela nada disse. Lembrou-se da sensação de tontura que tinha tido na casa do sr. Harvey e que muitas vezes desde então — a sensação de que de alguma maneira eu estava com ela, em seus pensamentos e em seus membros — andando com ela como uma gêmea.
No alto das escadas eles encontraram a entrada para o quarto que tinham visto lá de baixo.
— Eu quero esta casa — disse Samuel.
— O quê?
— Esta casa precisa de mim, eu posso sentir isso.
— Talvez você devesse esperar o sol sair para decidir — disse ela.
— Ela é a coisa mais linda que eu já vi — disse ele.
— Samuel Heckler — disse minha irmã —, o homem que conserta coisas. — Olha quem fala — disse ele.
Ficaram parados por um instante em meio ao silêncio, sentindo o cheiro
do ar úmido descer pela chaminé e inundar o quarto. Mesmo com o barulho da chuva, Lindsey ainda se sentia escondida, abrigada na segurança de um canto afastado do mundo com a única pessoa que amava mais do que qualquer outra.
Ela o pegou pela mão, e viajei junto com eles até o vão da porta de um pequeno cômodo bem na frente da casa. Ele ultrapassava o que devia ser o hall de entrada do andar de baixo e seu formato era octogonal.
— É uma sacada envidraçada — disse Samuel. — As janelas — ele se virou para Lindsey — quando são construídas assim para fora, como um quartinho, isso se chama uma sacada envidraçada.
— Isso te deixa excitado? — perguntou Lindsey, sorrindo.
Eu os deixei na chuva e na escuridão. Perguntei-me se Lindsey percebeu que quando ela e Samuel começaram a abrir os zíperes de suas roupas de couro o relâmpago parou e o barulho na garganta de Deus — aquele trovão assustador — cessou.
Em seu quartinho, meu pai estendeu a mão para pegar o globo de neve. O vidro frio em seus dedos o reconfortava, e ele o sacudiu para ver o pinguim desaparecer e em seguida ser lentamente descoberto pela neve que caía suavemente.
Hal tinha voltado da cerimônia de formatura em sua moto mas, em vez de acalmar meu pai — dando-lhe alguma garantia de que, se uma motocicleta era capaz de atravessar a tempestade e depositar seu motorista com segurança na porta da sua casa, outra também seria — aquilo parecia aumentar as probabilidades do contrário em sua mente.
Ele tinha experimentado o que se poderia chamar de doloroso deleite na cerimônia de formatura de Lindsey. Buckley tinha se sentado ao seu lado, avisando-o prontamente quando sorrir e quando reagir. Ele geralmente sabia quando fazê-lo, mas suas sinapses agora nunca eram tão rápidas quanto as das pessoas normais — ou pelo menos era assim que ele explicava o fato para si mesmo. Era como o tempo de reação nos pedidos de seguro que ele revisava. Para a maioria das pessoas havia um número médio de segundos entre o instante em que percebiam alguma coisa — outro carro, uma pedra descendo de uma ribanceira — e o instante em que reagiam. Os tempos de resposta do meu pai eram mais lentos do que os da maioria das pessoas, como se ele se movesse em um mundo onde uma inevitabilidade esmagadora o tivesse privado de qualquer esperança de ter uma percepção aguçada.
Buckley bateu na porta semiaberta do quartinho do meu pai.
— Entre — disse ele.
— Eles vão ficar bem, pai. — Aos 12 anos, meu irmão tinha se tornado
sério e preocupado. Mesmo que não pagasse pela comida nem cozinhasse, era ele quem administrava a casa.
— Você estava bonito de terno, filho — disse meu pai.
— Obrigado. — Isso era importante para o meu irmão. Ele queria deixar meu pai orgulhoso e tinha demorado para se arrumar, chegando até a pedir naquela manhã para vovó Lynn ajudá-lo a aparar a franja que caía em seus olhos. Meu irmão estava no estágio mais estranho da adolescência— não era mais menino, ainda não era homem. Na maior parte do tempo escondia o próprio corpo com enormes camisetas e jeans folgados, mas naquele dia tinha gostado de usar o terno.
— O Hal e a vovó estão esperando a gente lá embaixo — disse ele.
— Já vou descer.
Buckley fechou a porta até o fim desta vez, fazendo a lingüeta entrar no
lugar.
Naquele outono, meu pai tinha mandado revelar o último filme que eu
havia guardado no meu armário, na caixa de "filmes para guardar", e nessa hora, como sempre fazia quando pedia só um minuto antes do jantar ou via alguma coisa na TV ou lia algum artigo no jornal que fazia seu coração doer, abriu a gaveta de sua escrivaninha e levantou delicadamente as fotos.
Ele tinha feito vários sermões para mim dizendo que o que eu chamava de minhas "fotos artísticas" eram afoitas, mas o melhor retrato que ele jamais teve foi um que eu tirei dele em um ângulo que, quando se segurava a foto, fazia seu rosto encher o quadrado de 9 x 9 cm como se fosse um diamante.
Eu deveria ter ouvido suas dicas sobre ângulos de máquina e composição ao tirar as fotos que ele segurava agora. Ele não tinha ideia da ordem em que os filmes estavam nem do que eram as fotos quando as revelou.
Havia um número impressionante de fotos de Holiday, e muitos retratos dos meus pés ou da grama. Bolas cinzas embaçadas no ar que eram passarinhos, e uma tentativa granulada de um pôr-do-sol por cima do salgueiro. Mas em algum momento eu tinha decidido fazer retratos da minha mãe. Depois de buscar o filme no laboratório, meu pai ficou sentado no carro encarando fotos de uma mulher que agora tinha a sensação de mal conhecer.
Desde então tinha olhado para aquelas fotos vezes sem conta, mas todas as vezes que olhava para o rosto daquela mulher sentia alguma coisa nascer dentro de si. Levou muito tempo para perceber o que era. Só recentemente suas sinapses feridas tinham lhe permitido dar nome ao sentimento. Ele estava se apaixonando de novo.
Não entendia como duas pessoas que eram casadas, que se viam todos os dias, podiam se esquecer da aparência uma da outra, mas se ele tivesse de descrever o que tinha acontecido, era isso. E as duas últimas fotos do filme forneciam a explicação. Ele tinha chegado em casa do trabalho — lembro-me de tentar manter a atenção da minha mãe enquanto Holiday latia ouvindo o carro entrar na garagem.
— Ele vai sair — disse eu. — Fique parada. — E ela ficou. Parte do que eu amava na fotografia era o poder que ela me dava sobre as pessoas do outro lado da máquina, mesmo meus próprios pais.
Com o canto dos olhos, vi meu pai entrar no quintal pela porta lateral. Ele estava carregando a pasta fina que, anos antes, Lindsey e eu tínhamos investigado com sofreguidão e encontrado muito pouca coisa de nosso interesse. Enquanto ele largava a pasta, tirei a última foto solitária da minha mãe. Seus olhos já tinham começado a parecer distraídos e preocupados, mergulhando e reaparecendo de algum modo em forma de uma máscara. Na foto seguinte, a máscara estava quase no lugar, mas ainda não totalmente, e na última foto, onde meu pai se inclinava de leve para lhe dar um beijo na bochecha — ali estava a máscara.
— Fui eu quem fiz isso com você? — perguntou ele à imagem dela enquanto olhava as fotos enfileiradas da minha mãe. — Como foi que isso aconteceu?
— O relâmpago parou — disse minha irmã. A umidade da chuva sobre sua pele tinha sido substituída por suor.
— Eu te amo — disse Samuel.
— Eu sei.
— Não, eu estou dizendo que te amo e quero me casar com você, e quero morar nesta casa!
— O quê?
— Aquele terror daquela faculdade acabou! — gritou Samuel. O pequeno cômodo absorveu sua voz, mal devolvendo um eco de suas grossas paredes.
— Para mim não acabou não — disse minha irmã.
Samuel se levantou do chão, onde estava deitado ao lado da minha irmã, e se ajoelhou na frente dela.
— Casa comigo.
— Samuel?
— Cansei de fazer sempre a coisa certa. Casa comigo e eu deixo esta casa
linda.
— Quem vai sustentar a gente?
— A gente mesmo — disse ele —, de algum jeito.
Ela se sentou e depois se ajoelhou junto com ele.Ambos estavam seminus
e ficando com frio à medida que o calor de seus corpos começava a se dissipar.
— Tudo bem.
— Tudo bem?
— Acho que posso — disse minha irmã. — Quero dizer, caso!
Alguns clichês eu só entendia quando eles chegavam no meu céu a toda
velocidade. Eu nunca tinha visto uma galinha com a cabeça cortada. Aquilo nunca tinha significado muito para mim, exceto um animal tratado de um modo bem parecido comigo. Mas naquele instante eu corri pelo meu céu como... uma galinha com a cabeça cortada! Fiquei tão feliz que gritei, grite; e continuei gritando sem parar. Minha irmã! Meu Samuel! Meu sonho! Ela estava chorando, e ele a abraçou, ninando-a junto ao corpo.
— Você está feliz, amor? — perguntou ele.
Ela balançou a cabeça contra o peito nu dele.
— Estou — disse ela, e então congelou. — Meu pai. — Levantou a cabeça
e olhou para Samuel. — Eu sei que ele está preocupado.
— É — disse ele, tentando entrar na mesma sintonia que ela. — Quantos quilômetros tem daqui até lá em casa?
— Uns dezesseis — disse Samuel. — Talvez treze.
— A gente consegue — disse ela.
— Você está louca.
— Nossos tênis estão no outro compartimento.
Eles não conseguiam correr com a roupa de couro, então ficaram de
roupa de baixo e camiseta, mais parecidos com aqueles malucos que entram correndo em lugares públicos do que qualquer pessoa da minha família jamais ficaria. Como tinha feito durante anos, Samuel marcava um ritmo logo à frente da minha irmã para fazê-la seguir em frente. Quase não tinha carros na estrada, mas quando passava algum um muro de água subia das poças perto do acostamento e fazia os dois engasgarem para tornar a fazer entrar ar nos pulmões. Ambos já tinham corrido debaixo de chuva, mas nunca de uma chuva tão forte. Ficaram brincando de quem conseguia se proteger mais enquanto iam percorrendo os quilômetros, entrando e saindo de baixo de qualquer árvore alta, enquanto a sujeira e a fuligem da estrada cobriam suas pernas. Mas aos cinco quilômetros ficaram em silêncio, empurrando os pés para a frente em um ritmo que ambos conheciam havia anos, concentrando-se no som da própria respiração e no som de seus sapatos molhados batendo no asfalto.
Em algum momento, enquanto passava por uma poça grande, sem tentar mais evitá-las, Lindsey pensou na piscina do bairro da qual éramos sócios antes de a minha morte pôr fim à vida pública confortável da minha família. A piscina ficava em algum lugar naquela estrada, mas ela não levantou a cabeça para encontrar a conhecida cerca de arame. Em vez disso,teve uma lembrança. Ela e eu estávamos debaixo d'água com nossos maios de saiote de babados. Nós duas estávamos de olhos abertos debaixo d'água, uma coisa nova — mais nova para ela — e olhávamos uma para a outra, nossos corpos separados suspensos debaixo d'água. Cabelos flutuando, saiotes boiando, nossas bochechas infladas com o ar guardado. Então, juntas, segurávamos uma na outra e saíamos da água como dardos, rompendo a superfície. Enchíamos os pulmões de ar — ouvidos estalando — e ríamos juntas.
Fiquei olhando minha linda irmã correr, pernas e pulmões bombeando, e a habilidade da piscina ainda presente — lutando para ver através da água, lutando para manter as pernas se levantando no ritmo marcado por Samuel, e soube que ela não estava correndo de mim nem na minha direção. Como alguém que sobrevive a um tiro na barriga, a ferida estivera se fechando, se fechando – trançando-se em uma cicatriz durante oito longos anos.
Quando os dois estavam a um quilômetro e meio da minha casa, a chuva tinha diminuído e as pessoas começavam a olhar a rua pelas janelas.
Samuel diminuiu o ritmo e ela o imitou. As camisetas estavam coladas em seus corpos como uma pasta.
Lindsey tinha lutado com uma cãibra na lateral do corpo, mas conforme a cãibra ia passando começou a correr com Samuel a toda velocidade. De repente, se viu coberta de arrepios e sorrindo de orelha a orelha.
— A gente vai casar! — disse ela, e ele parou de correr, segurou-a nos braços, e eles ainda estavam se beijando quando um carro passou por eles na estrada, motorista buzinando.
Quando a campainha tocou na nossa casa eram quatro horas e Hal estava na cozinha usando um dos velhos aventais de cozinheiro da minha mãe e cortando brownies para vovó Lynn. Ele gostava que o fizessem trabalhar, gostava de se sentir útil, e minha avó gostava de usá-lo. Eram um time simpático. Enquanto Buckley, o menino guarda-costas, adorava comer.
— Eu atendo — disse meu pai. Durante a chuva, ele tinha se aguentado com highballs mexidos, sem medir, por vovó Lynn.
Agora estava leve, com uma espécie de graça frágil, como um bailarino aposentado que preferia uma perna à outra, depois de longos anos de pulos com um pé só.
— Eu estava tão preocupado — disse ele ao abrir a porta.
Lindsey tinha os braços cruzados na frente do peito, e até meu pai teve que rir enquanto desviava os olhos e pegava depressa os cobertores sobressalentes guardados no armário da frente. Samuel enrolou um deles em volta de Lindsey primeiro, enquanto meu pai cobria os ombros dele da melhor forma possível e poças se acumulavam no chão de pedra. Buckley, Hal e vovó Lynn entraram no hall.
— Buckley — disse vovó Lynn —, vá pegar umas toalhas.
— Vocês conseguiram vir de moto nessa chuva? — perguntou Hal, incrédulo.
— Não, a gente correu — disse Samuel.
— Vocês o quê?
— Entrem na sala íntima — disse meu pai. — Vamos acender a lareira.
Enquanto os dois ficavam sentados de costas para o fogo, tremendo no começo e bebendo as doses de conhaque que vovó Lynn mandou Buckley lhes servir em uma bandeja de prata, todos ouviram a história da moto e da casa e do cômodo octogonal com as janelas que tinham deixado Samuel eufórico.
— E está tudo bem com a moto? — perguntou Hal.
— A gente fez o melhor possível — disse Samuel —, mas vamos precisar de um reboque.
— Só estou feliz por vocês dois estarem bem — disse meu pai.
— A gente correu para casa pelo senhor, sr. Salmon.
Minha avó e meu irmão tinham se sentado no outro canto da sala, longe
do fogo.
— A gente não queria que ninguém se preocupasse — disse Lindsey.
— A Lindsey não queria que o senhor se preocupasse, mais
especificamente.
A sala ficou silenciosa por um instante. O que Samuel tinha dito era
verdade, é claro, mas também apontava com clareza demais para um fato específico — que Lindsey e Buckley tinham passado a viver a vida em proporção direta do efeito que ela teria sobre um pai frágil.
Vovó Lynn olhou minha irmã nos olhos e deu uma piscadela.
— O Hal, o Buckley e eu fizemos browníes — disse ela. — E tenho um pouco de lasanha congelada que posso descongelar, se quiserem. — Ela ficou em pé e meu irmão também — pronto para ajudar.
— Eu adoraria browníes, Lynn — disse Samuel.
— Lynn? Gostei — falou ela. — Vai começar a chamar o Jack de "Jack"? — Talvez.
Quando Buckley e vovó saíram da sala, Hal sentiu um nervosismo no ar. — Acho que vou lá ajudar — disse ele.
Lindsey, Samuel e meu pai ficaram escutando os barulhos da movimentação na cozinha. Todos podiam ouvir o relógio batendo no canto, aquele que minha mãe chamava de nosso "relógio rústico colonial".
— Eu sei que me preocupo demais — disse meu pai.
— Não foi isso que o Samuel quis dizer — falou Lindsey.
Samuel estava calado e eu estava olhando para ele.
— Sr. Salmon — disse ele enfim —, ainda não estava realmente pronto
para dizer "Jack". — Eu pedi a Lindsey em casamento.
O coração de Lindsey estava na boca, mas ela não estava olhando para
Samuel. Estava olhando para o meu pai.
Buckley entrou com uma bandeja de brownies e Hal o seguiu com taças
de champanhe penduradas nos dedos e uma garrafa de Dom Pérignon 1978. — Da sua avó, pelo dia da sua formatura — disse Hal.
Vovó Lynn entrou em seguida, de mãos vazias exceto pelo highball. O
drinque capturava a luz e cintilava como um vidro de diamantes gelados.
Para Lindsey, era como se não houvesse ninguém ali a não ser ela e meu
pai.
— O que você diz, pai? — perguntou ela.
— Eu diria — ele conseguiu dizer, levantando-se para apertar a mão de
Samuel — que não poderia querer um genro melhor.
Vovó Lynn explodiu ao ouvir a última palavra.
— Meu Deus, ah, querida! Parabéns!
Até Buckley se soltou,saindo do nó que geralmente o prendia e deixando-
se levar por uma rara alegria. Mas eu via a linha fina e trêmula que ainda unia minha irmã a meu pai. O cordão invisível capaz de matar.
A rolha da champanhe espocou.
— Perfeito! — disse minha avó para Hal, que estava enchendo os copos. Foi Buckley quem me viu, enquanto meu pai e minha irmã se juntavam ao
grupo e ouviam os incontáveis brindes da vovó Lynn. Ele me viu de pé debaixo do relógio rústico colonial e me encarou. Estava bebendo champanhe. Havia cordas estendidas a toda minha volta, esticadas, esvoaçando no ar. Alguém lhe passou um brownie. Ele o segurou nas mãos, mas não comeu. Via meu rosto e minha forma, que não tinham mudado — os cabelos ainda repartidos no meio, o peito ainda liso e os quadris estreitos —, e quis chamar meu nome. Foi só por um instante, e depois eu desapareci.
Com os anos, quando me cansava de olhar, muitas vezes ficava sentada atrás dos trens que entravam e saíam do terminal suburbano da Filadélfia. Os passageiros subiam e desciam enquanto eu escutava suas conversas misturadas com os sons das portas do trem se abrindo e se fechando, dos motoristas gritando os nomes das paradas, e do arrastar e estalar de solas e saltos de sapatos passando do cimento para o metal, para o suave pof pof dos corredores acarpetados dos trens. Era o que Lindsey, em seus exercícios, chamava de descanso ativo; meus músculos ainda estavam trabalhando, mas minha atenção relaxava. Eu ouvia os sons e sentia o movimento do trem e algumas vezes, ao fazer isso, podia ouvir as vozes daqueles que não viviam mais na Terra. Vozes de outros como eu, os observadores.
Quase todo mundo no céu tem alguém na Terra para quem olha, uma pessoa amada, um amigo, ou mesmo um estranho que um dia foi gentil, ofereceu comida quente ou um sorriso radiante quando um de nós precisou. E quando eu não estava olhando podia ver os outros falando com os que amavam na Terra: tão inutilmente quanto eu, acho. Adulando e ensinando os jovens em mão única, amando e desejando parceiros em mão única, mandando um cartão em mão única que nunca podia ser assinado.
O trem ficava parado ou saía da rua 30 para perto de Overbrook e eu podia ouvi-los dizer nomes e frases: "Olhe, cuidado com esse vidro." ''Cuide do seu pai." "Ah, olhe como ela parece crescida com esse vestido." "Estou com você, mãe." "... Esmeralda, Sally, Lupe, Keesha, Frank..." Tantos nomes. Então o trem ganhava velocidade, e conforme ia acelerando, o volume de todas essas frases silenciosas vindas do céu aumentava cada vez mais; no volume máximo entre duas estações, o som da nossa saudade ficava tão ensurdecedor que eu precisava abrir os olhos.
Espiando pelas janelas dos trens subitamente silenciosos eu via mulheres estendendo ou recolhendo roupas do varal. Elas se inclinavam por cima de cestos e depois estendiam lençóis brancos ou amarelos ou cor-de-rosa. Eu contava as cuecas dos homens e as cuecas dos meninos e o conhecido algodão estampado com pirulitos das calcinhas das meninas. E o som daquilo, minha ânsia e minha saudade — o som da vida —, substituía o incessante chamar de nomes.
Roupa lavada úmida: a tensão no varal, o peso molhado de lençóis de solteiro e de casal. Os verdadeiros sons trazendo de volta sons lembrados de um passado quando eu me deitava embaixo das roupas pingando para recolher a água com a língua ou corria entre elas como se fossem cones de trânsito entre os quais eu perseguia Lindsey de um lado para o outro. E a isso se juntava a lembrança da nossa mãe tentando nos passar um sermão sobre como a manteiga de amendoim das nossas mãos manchava os lençóis bons, ou sobre as manchas de bala de limão grudenta que tinha encontrado nas camisas do nosso pai. Assim, a visão e o cheiro do real, do imaginado e do lembrado se juntavam para mim.
Depois de virar as costas para a Terra naquele dia, passeei nos trens até só conseguir pensar em uma coisa:
— Segura firme — dizia meu pai enquanto eu segurava o barco na garrafa e ele queimava os barbantes que tinha usado para levantar o mastro e libertava o veleiro em seu mar azul de resina. E eu esperava por ele, reconhecendo a tensão daquele instante em que o mundo na garrafa dependia unicamente de mim.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Where stories live. Discover now