Capítulo 18

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Quando seu pai lhe falou sobre o sumidouro ao telefone, Ruth estava no closet que alugava na Primeira Avenida. Ela enrolava o longo fio preto do telefone em volta do pulso e do braço e dava respostas
curtas, entrecortadas, para confirmar que estava ouvindo. A velha senhora que lhe alugava o closet gostava de ouvir suas ligações, então Ruth tentava não ralar muito ao telefone. Mais tarde, da rua, ligava para casa a cobrar e combinava uma visita.
Ela sabia que faria uma romaria para vê-lo antes dos construtores o fecharem. Seu fascínio por lugares como o sumidouro era um segredo que mantinha guardado, assim como meu assassinato e nosso encontro no estacionamento do colégio. Havia coisas de que não podia abrir mão em Nova York, onde via os outros contarem suas histórias embriagadas nos bares, prostituindo suas famílias e seus traumas em troca de popularidade e birita. Ela sentia que essas coisas não eram para ser distribuídas como brindes de festa fajutos. Respeitava um código de honra com seus diários e seus poemas.
— Lá dentro, lá dentro — sussurrava em voz baixa para si mesma quando sentia o impulso de contar, e acabava dando grandes passeios pela cidade, vendo em seu lugar o milharal de Stofulz ou uma imagem do pai olhando seus pedaços de frisos de época resgatados. Nova York formava um cenário perfeito para seus pensamentos. Apesar de suas caminhadas decididas pelas ruas e vielas, a cidade em si tinha muito pouco a ver com sua vida interior.
Ela não parecia mais atormentada, como no científico, mas, olhando seus olhos de perto, era possível ver a energia fugidia como a de um coelho que muitas vezes deixava as pessoas nervosas. Seu rosto tinha a expressão de quem estava constantemente procurando alguma coisa ou esperando alguém que ainda não tinha chegado. Seu corpo todo parecia se inclinar para a frente em expectativa, e embora lhe tivessem dito no bar onde trabalhava que ela tinha belos cabelos ou belas mãos ou, nas raras vezes em que algum de seus patrões a via sair de trás do balcão, belas pernas, as pessoas nunca diziam nada sobre seus olhos.
Ela vestiu apressada uma meia-calça preta, uma saia preta curta, botas pretas e uma camiseta preta, todas manchadas por servirem ao mesmo tempo como roupas de trabalho e roupas de verdade. As manchas só eram visíveis ao sol, então Ruth nunca prestava muita atenção nelas até depois, quando parava em um café ao ar livre para uma xícara de café e baixava os olhos para a saia e via as manchas escuras de vodca ou uísque. O álcool tinha o efeito de tornar a roupa preta mais preta. Aquilo a divertia; ela tinha anotado em seu diário: "o álcool afeta os tecidos do mesmo jeito que afeta as pessoas".
Uma vez, do lado de fora, a caminho de uma xícara de café na Primeira Avenida, ela mantinha conversas secretas com os gordos cachorros de colo — chihuahuas ou lulus-da-pomerânia — que as mulheres ucranianas seguravam no colo sentadas em seus banquinhos. Ruth gostava daqueles cachorrinhos rabugentos, que latiam com vontade quando ela passava.
Então ela caminhava, caminhava sem parar, caminhava com uma energia vinda lá do fundo da terra e entrando pelo calcanhar de seu pé em movimento. Ninguém lhe dizia bom dia,exceto malucos, e ela ficava brincando de quantas ruas conseguia atravessar sem parar em nenhum sinal. Não diminuía o passo para outras pessoas e dissecava as multidões de alunos da NYU ou de velhas com carrinhos de roupa da lavanderia que passavam por seus dois lados como um vento. Gostava de imaginar que, quando ela passava, o mundo a seguia com os olhos, mas também sabia o quanto era anônima. Exceto quando estava no trabalho, ninguém sabia onde ela estava em nenhum momento do dia e ninguém esperava por ela. Era um anonimato imaculado.
Ela não podia saber que Samuel tinha pedido minha irmã em casamento e, a não ser que a notícia chegasse até ela por Ray, a única pessoa do colégio com quem ela mantinha contato, jamais saberia. Enquanto ainda estava em Fairfax, soube que minha mãe tinha saído de casa. Uma nova onda de murmúrios tinha percorrido o científico, e Ruth tinha visto minha irmã lidar com eles da melhor maneira possível. De vez em quando as duas se encontravam no saguão. Ruth dizia algumas palavras de apoio, caso fosse capaz de fazê-lo sem fazer o que pensava ser prejudicar Lindsey falando com ela. Ruth conhecia seu status de maluca no colégio e sabia que sua única noite juntas no simpósio dos bons alunos tinha sido exatamente o que parecia ser — um sonho, onde os elementos soltos se juntaram espontaneamente longe das regras draconianas do colégio.
Mas Ray era diferente. Seus beijos e seus primeiros amassos eram coisas que ela guardava em uma redoma de vidro — lembranças que conservava. Ela o via sempre que visitava seus pais e soube imediatamente que era Ray que levaria consigo para visitar o sumidouro. Ele ficaria feliz pela folga em seu ritmo de estudo constante e, se ela tivesse sorte, descreveria, como sempre fazia, um procedimento médico que tivesse observado. O modo de Ray descrever aquelas coisas a fazia sentir que sabia exatamente a sensação que aquilo provocava — não só a aparência que tinha. Ele era capaz de evocar tudo para ela, com pequenas pulsações verbais das quais não tinha a menor consciência.
Rumando para o norte pela Primeira Avenida, ela podia assinalar todos os lugares em que já tinha parado e ficado em pé, certa de ter encontrado um lugar onde uma mulher ou uma menina tinham sido mortas. Tentava listá-los no diário ao final de cada dia, mas em geral ficava tão considerada com o que pensava poder ter acontecido nesta ou naquela sacada ou beco estreito que ignorava os lugares mais simples, mais óbvios, quando tinha lido sobre um assassinato no jornal e visitado o que tinha sido o túmulo de uma mulher.
Ela não tinha consciência de que era uma espécie de celebridade no céu. Eu tinha falado dela para as pessoas, do que ela fazia, de como observava instantes de silêncio por todos os cantos da cidade e escrevia pequenas preces individuais em seu diário, e a história tinha corrido tão depressa que as mulheres faziam fila para saber se ela tinha encontrado o lugar onde tinham sido mortas. Ruth tinha fãs no céu, mas teria ficado decepcionada se soubesse que muitas vezes essas fãs, quando se reuniam, pareciam-se mais com um bando de adolescentes folheando um número da TeenBeat do que com a imagem que Ruth fazia de tênues lamentos sussurrados ritmados por tímpanos celestiais.
Cabia a mim seguir e olhar e, ao contrário do coro ruidoso, eu geralmente achava esses instantes ao mesmo tempo dolorosos e incríveis. Ruth captava uma imagem e essa imagem ficava impressa em seu cérebro. Algumas vezes eram só flashes brilhantes — uma queda das escadas, um grito, um empurrão, mãos se fechando em volta de um pescoço — e outras vezes eram como um roteiro inteiro se desenrolando em sua mente durante o tempo exato que a menina ou a mulher levava para morrer.
Ninguém na rua reparava na moça vestida de preto da parte baixa da cidade que parava no meio do tráfego de pedestres do centro. Com seu disfarce de estudante de artes, ela podia percorrer Manhattan inteira e, mesmo não se misturando, ser classificada, e, portanto, ignorada. Enquanto isso, para nós, ela fazia um trabalho importante, um trabalho que a maioria das pessoas na Terra tinha medo demais para sequer pensar em fazer.
No dia seguinte à formatura de Lindsey e Samuel eu fui caminhar com ela. Quando ela chegou ao Central Park já passava muito da hora do almoço, mas o parque ainda estava cheio. Casais estavam sentados na grama aparada do campo. Ruth os espiou. Sua intensidade era intimidadora em uma tarde de sol, e quando os rostos amigáveis dos rapazes a viam, logo se fechavam ou olhavam para o outro lado. Ela ziguezagueou pelo parque para cima e para baixo. Tinha lugares óbvios aonde ia, como as trilhas, para documentar a história de violência ocorrida ali sem sequer sair de perto das árvores, mas ela preferia os lugares que as pessoas consideravam seguros. A superfície calma e cintilante do lago de patos escondida no movimentado canto sudeste do parque, ou o plácido lago artificial, onde velhinhos punham lindos barcos feitos a mão para flutuar.
Ela se sentou no banco de uma trilha que levava ao jardim zoológico do Central Park e olhou para o cascalho cheio de crianças com suas babás e adultos solitários lendo livros em vários pontos de sombra ou de sol. Estava cansada da caminhada até a parte alta da cidade, mas mesmo assim tirou o diário da bolsa. Colocou-o aberto no colo, segurando a caneta para ajudá-la a pensar. Ruth tinha aprendido que era melhor parecer que se estava fazendo alguma coisa quando se mantinham os olhos fixos ao longe. Senão era provável que homens estranhos se aproximassem e tentassem falar com você. Seu diário era seu relacionamento mais íntimo e mais importante. Ele continha tudo.
Na sua frente, uma menininha se afastou do cobertor onde sua babá dormia. Estava se encaminhando para os arbustos que cobriam um pequeno declive antes de dar lugar a uma cerca que separava o parque da Quinta Avenida. No instante em que Ruth estava prestes a entrar no mundo dos seres humanos cujas vidas colidem com as dos outros chamando a babá, um tênue fio, que Ruth não tinha visto, alertou a babá de que ela deveria acordar. Ela imediatamente se sentou com um susto e vociferou uma ordem para a menininha voltar.
Em instantes como aquele ela pensava em todas as menininhas que chegavam à idade adulta e à terceira idade como uma espécie de alfabeto cifrado para todas as que não chegavam. Suas vidas, de algum modo, seriam inextricavelmente ligadas a todas as meninas que tinham sido mortas. Fo: então, enquanto a babá arrumava a bolsa e enrolava o cobertor, preparando- se para o que quer que fosse sua próxima atividade naquele dia, que Ruth a viu — uma menininha que tinha andando em direção aos arbustos certo dia e desaparecido.
Pelas roupas, podia ver que aquilo tinha acontecido algum tempo atrás, mas era só. Fora isso, nada — nenhuma babá nem mãe, nenhuma ideia de noite ou dia, só uma menininha desaparecida.
Fiquei ali com Ruth. Com o diário aberto, ela anotou. "Hora? Menininha no CP. some entre os arbustos. Gola de renda branca, elegante." Fechou o diário e o enfiou na bolsa. Lá perto ficava um lugar que a acalmava. A casa dos pinguins no zoológico.
Passamos a tarde juntas ali, Ruth sentada no assento acarpetado na frente do viveiro, com as roupas pretas deixando visíveis no escuro apenas seu rosto e suas mãos. Os pingüins cambaleavam e emitiam ruídos e mergulhavam, escorregando nas pedras que imitavam seu hábitat natural como simpáticos presuntos, mas vivendo debaixo d'água como musculosas criaturas de smoking. As crianças gritavam e berravam e apertavam o rosto no vidro. Ruth contava as crianças vivas do mesmo jeito que contava as mortas, e nos limites restritos da casa dos pinguins seus gritos alegres ecoavam nas paredes com tamanha vibração que, por pouco tempo, ela conseguia abafar os outros tipos de gritos.
Naquele fim de semana meu irmão acordou cedo, como sempre fazia. Ele estava na sexta série e comprava seu almoço no colégio e fazia parte da equipe de debates e, como Ruth, era sempre escolhido em último ou penúltimo lugar na aula de ginástica. Não tinha se interessado por esportes como Lindsey. Em vez disso, exercitava o que vovó Lynn chamava de seu "ar de dignidade". Sua professora preferida na verdade não era professora coisa nenhuma, mas sim a bibliotecária do colégio, uma mulher alta e frágil de cabelo áspero que bebia chá de uma garrafa térmica e falava sobre ter morado na Inglaterra quando jovem. Depois disso ele tinha simulado um sotaque inglês durante alguns meses e demonstrado grande interesse quando minha irmã assistia ao seriado Masterpiece Theatre na TV.
Quando ele perguntou ao meu pai naquele ano se podia recuperar o jardim que minha mãe antes cultivava, meu pai disse:
— Claro, Buck, pode pirar.
E ele pirou. Pirou de maneira extraordinária,insana, lendo velhos catálogos da Burpee à noite quando não conseguia dormir e examinando os poucos livros de jardinagem da biblioteca do colégio. Quando minha avó sugeriu respeitáveis fileiras de salsa e manjericão e Hal sugeriu "algumas plantas realmente importantes" — berinjelas, melões, pepinos, cenouras e feijões — meu irmão achou que ambos tinham razão.
Ele não gostava do que lia nos livros. Não via motivo para manter as flores separadas dos tomates e as ervas segregadas em um canto. Tinha plantado o jardim inteiro devagar com uma pá, implorando diariamente a meu pai para lhe trazer sementes e fazendo viagens à mercearia com vovó Lynn, onde o preço de sua extrema disponibilidade para pegar coisas era uma parada rápida na floricultura para uma pequena planta florida. Agora estava esperando seus tomates, suas margaridas azuis, suas petúnias, amores- perfeitos e sálvias de todo tipo. Tinha transformado seu forte em uma espécie de barracão de trabalho para o jardim, onde guardava suas ferramentas e materiais.
Mas minha avó estava se preparando para o instante em que ele se desse conta de que todas aquelas plantas não podiam crescer juntas e que algumas sementes não nasceriam em determinadas épocas, que os finos cachos sedosos de pepino poderiam ser abruptamente detidos pelo crescimento dos bulbos subterrâneos de cenouras e batatas, que a salsa poderia ser escondida pelas ervas mais recalcitrantes, e que os insetos que viviam por ali poderiam fazer secar as delicadas flores. Mas ela esperava com paciência. Não acreditava mais em conversas. Conversas nunca resgatavam nada. Aos 70 anos, minha avó tinha passado a acreditar apenas no tempo. Buckley estava subindo uma caixa de roupas do porão até a cozinha quando meu pai desceu para tomar café.
— O que você está carregando aí, fazendeiro Buck? — disse meu pai. Ele sempre esteve em sua melhor forma de manhã.
— Vou amarrar meus pés de tomate — disse meu irmão.
— Eles já brotaram?
Meu pai estava em pé na cozinha com seu roupão de toalha azul e pés
descalços. Serviu-se de café na máquina que vovó Lynn ligava todas as manhãs e tomou um gole enquanto olhava para o filho.
— Acabei de ver hoje de manhã — disse meu irmão, radiante. — Os brotos estão enrolados como uma mão se abrindo.
Foi só quando meu pai estava repetindo a descrição para vovó Lynn no balcão da cozinha que viu, pela janela dos fundos, o que Buckley tinha tirado da caixa. Eram as minhas roupas. Minhas roupas, que Lindsey tinha triado para separar qualquer coisa que pudesse guardar. Minhas roupas, que minha avó, ao se mudar para o meu quarto, tinha encaixotado discretamente, enquanto meu pai estava no trabalho. Ela as tinha guardado no porão com uma pequena etiqueta que dizia simplesmente GUARDAR.
Meu pai largou a xícara de café. Passou pela varanda coberta de tela e seguiu em frente, chamando o nome de Buckley.
— O que foi, pai? — Ele percebeu o tom do meu pai.
— Essas roupas são da Susie — disse meu pai com calma ao chegar perto dele.
Buckley baixou os olhos para meu vestido xadrez escuro que estava segurando.
Meu pai chegou mais perto, pegou o vestido da mão do meu irmão, e então, sem falar, juntou o resto das minhas roupas, que Buckley tinha empilhado no gramado. Quando se virou em silêncio em direção à casa, quase sem conseguir respirar, apertando minhas roupas junto ao corpo, eu percebi.
Eu era a única que via as cores. Bem perto das orelhas de Buckley e da superfície das bochechas e do queixo ele estava um pouco cor de laranja, um pouco vermelho.
— Por que não posso usar as roupas? — perguntou ele.
Aquilo atingiu as costas do meu pai como um soco.
— Por que não posso usar essas roupas para amarrar meus tomates?
Meu pai se virou. Viu seu filho ali em pé, e atrás dele o quadrado perfeito
de terra lamacenta e revirada salpicada de minúsculos brotos.
— Como você pode me perguntar isso?
— Você tem de escolher. Não é justo — disse meu irmão.
— Buck? — Meu pai segurava minhas roupas contra o peito.
Eu via Buckley se inflamar e se acender. Atrás dele estava a cerca-viva de
vara-de-ouro, duas vezes mais alta do que na época da minha morte.
— Cansei disso! — gritou Buckley chorando. — O pai da Keesha morreu e
ela está bem!
— A Keesha é uma menina do colégio?
— É!
Meu pai estava congelado. Podia sentir o orvalho se acumulando em seus
tornozelos e pés nus, podia sentir o chão debaixo de si, frio e úmido e cheio de possibilidades.
— Sinto muito. Quando isso aconteceu?
— Não é isso o que importa, pai! Você não entende. — Buckley virou as costas e começou a pisotear os delicados brotos de tomate com o pé.
— Buck, para! — gritou meu pai. Meu irmão se virou.
— Você não entende, pai — disse ele.
— Desculpa — disse meu pai. — Estas roupas são da Susie e eu só...
Pode não fazer sentido, mas são dela — são coisas que ela usou.
— Você pegou o sapato,não pegou? — disse meu irmão. Ele tinha parado
de chorar agora. — O quê?
— Você pegou o sapato. Pegou ele do meu quarto.
— Buckley, eu não sei do que você está falando.
— Eu guardei o sapato do Banco Imobiliário e depois ele sumiu. Você
pegou! Você se comporta como se ela fosse só sua!
— Me fala o que está querendo dizer. Que história é essa sobre o pai da sua amiga Keesha?
— Larga as roupas.
Meu pai as pôs no chão delicadamente.
— Isso não tem nada a ver com o pai da Keesha.
— Me diz com o que isto tem a ver. — Meu pai agora só estava
preocupado com aquele instante. Voltou ao lugar em que tinha estado depois de sua cirurgia no joelho, emergindo do sono entorpecido dos analgésicos para ver seu filho, então com cinco anos, sentado perto dele, esperando seus olhos se abrirem vacilantes para poder dizer: "Bu, papai."
— Ela morreu.
Aquilo nunca parava de doer.
— Eu sei disso.
— Mas você age como se não soubesse. O pai da Keesha morreu quando
ela tinha 6 anos. A Keesha diz que mal pensa nele. — Vai pensar — disse meu pai.
— Mas e a gente?
— Quem?
— A gente,pai.Eu e a Lindsey. A mamãe foi embora porque não agüentou.
— Calma, Buck — disse meu pai. Ele estava sendo o mais generoso possível enquanto o ar de seus pulmões evaporava para dentro de seu peito.
Então uma vozinha dentro dele disse: Se solte, se solte, se solte. — O quê? — disse meu pai.
— Eu não disse nada.
Se solte. Se solte. Se solte.
— Desculpa — disse meu pai. — Não estou me sentindo muito bem.
Seus pés tinham ficado inacreditavelmente frios na grama úmida. Seu peito parecia oco, insetos voando dentro de uma cavidade escavada. Tinha um eco lá dentro, e o eco retumbava em seus ouvidos. Se solte.
Meu pai caiu de joelhos. Seu braço começou a latejar como se estivesse dormente. Formiguinhas subindo e descendo. Meu irmão correu até ele.
— Pai?
— Filho. — Sua voz tremeu e ele estendeu a mão para o meu irmão. — Vou chamar a vovó. — E Buckley saiu correndo.
Deitado de lado com o rosto virado na direção das minhas antigas roupas, meu pai sussurrou debilmente:
— Não dá para escolher. Eu amei vocês três.
Meu pai passou aquela noite deitado em uma cama de hospital, ligado a máquinas que apitavam e zumbiam. Hora de rodear os pés do meu pai e subir por sua coluna. Hora de me calar e conduzi-lo. Mas para onde?
Acima de sua cama o relógio contava os minutos e eu pensei na brincadeira que Lindsey e eu fazíamos juntas no quintal: "bem-me-quer/mal- me-quer", arrancando pétalas de margaridas. Eu podia ouvir o relógio devolvendo para mim meus dois maiores desejos naquele mesmo ritmo: "Morra para mim/não morra para mim, morra para mim/não morra para mim". Parecia que eu não podia evitar pensar nisso, enquanto segurava seu coração enfraquecido. Se ele morresse, eu o teria para sempre. Era tão errado assim querer isso? Em casa, Buckley se deitou na cama no escuro e puxou a coberta até o queixo. Não o tinham deixado passar da sala de emergência para onde Lindsey os tinha levado de carro, seguindo a sirene da ambulância dentro da qual estava nosso pai. Meu irmão tinha sentido um imenso peso de culpa se abater sobre ele com os silêncios de Lindsey. Com as duas perguntas que ela ficava repetindo: "Sobre o que vocês estavam falando? Por que ele estava tão nervoso?"
O maior medo do meu irmão caçula era que a única pessoa que tanto significava para ele fosse embora. Ele amava Lindsey e vovó Lynn e Samuel e Hal, mas meu pai o fazia andar de mansinho, o filho monitorando delicadamente o pai todas as manhãs e todas as noites como se, sem essa vigilância, fosse perdê-lo.
Ficamos ali — a filha morta e o filho vivo — um de cada lado do meu pai, ambos querendo a mesma coisa. Tê-lo conosco para sempre. Agradar a nós dois era uma impossibilidade.
Meu pai só tinha estado ausente na hora de dormir duas vezes na vida de Buckley. A primeira depois de ter saído para o milharal à noite procurando o sr. Harvey, e agora ali deitado no hospital, sendo monitorado caso sofresse um segundo infarto.
Buckley sabia que deveria estar grande demais para aquilo ter importância, mas eu o entendia. O beijo de boa-noite era uma das especialidades do meu pai. Quando ele chegava no pé da cama depois de fechar as venezianas e alisá-las com a mão para ter certeza de que todas estavam no mesmo ângulo — nenhuma veneziana rebelde emperrada para deixar entrar a luz do sol no quarto de seu filho antes de ele vir acordá-lo — meu irmão muitas vezes ficava com os braços e as pernas arrepiados. A expectativa era deliciosa.
— Está pronto, Buck? — perguntava meu pai, e algumas vezes Buckley dizia "Positivo", outras vezes dizia "Decolar", mas quando estava mais assustado e confuso e queria paz dizia apenas "Sim!" E meu pai pegava o fino lençol de algodão de cima e o juntava nas mãos tomando cuidado para manter os dois cantos entre o polegar e o indicador. Então ele o estendia de modo que o lençol azul bebê (se estivessem usando o de Buckley) ou cor-de- lavanda (se estivessem usando o meu)caía em cima dele como um paraquedas e suavemente,com uma lentidão que parecia maravilhosa, flutuava até embaixo e tocava as partes expostas de sua pele — seus joelhos, seus antebraços,suas bochechas e seu queixo.Tanto o ar quanto a coberta de algum modo estavam no mesmo espaço ao mesmo tempo — aquilo parecia o mais alto grau possível de liberdade e proteção. Era incrível, deixava-o vulnerável e trêmulo em uma espécie de beira de abismo e tudo o que ele podia esperar era que, se ele implorasse, meu pai atendesse a seu desejo e fizesse aquilo de novo. Ar e coberta, ar e coberta — sustentando a conexão muda entre eles: menino pequeno, homem ferido.
Naquela noite sua cabeça estava deitada no travesseiro, enquanto seu corpo estava enrolado em posição fetal. Ele não tinha pensando em fechar ele próprio as persianas, e as luzes das casas próximas salpicavam a colina. Olhou para as portas de ripas de seu armário do outro lado do quarto, de onde ele um dia tinha imaginado que bruxas más sairiam para se juntar aos dragões debaixo de sua cama. Ele não tinha mais medo dessas coisas.
— Por favor, não deixa o papai morrer, Susie — sussurrou ele. — Eu preciso dele.
Quando deixei meu irmão, passei pelo mirante e debaixo das luzes pendendo como bagas, vi os caminhos de tijolo se estendendo conforme eu avançava.
Andei até os tijolos se transformarem em pedras chatas e depois em pedras pequenas e pontiagudas e depois em nada além de terra revirada por quilômetros e quilômetros à minha volta. Fiquei ali. Fazia tempo suficiente que estava no céu para saber que alguma coisa ia ser revelada. E enquanto a luz começava a diminuir e o céu se tingia de um azul escuro e espesso como na noite da minha morte, vi alguém andando na minha direção, tão longe que no começo não consegui ver se era um homem ou uma mulher, uma criança ou um adulto. Mas quando o luar bateu em seu rosto pude ver que era um homem e, assustada agora, com a respiração acelerada, corri o suficiente para poder ver. Seria o meu pai? Seria o que eu tinha desejado tão desesperadamente durante todo aquele tempo?
— Susie — disse o homem enquanto eu me aproximava e parava a alguns metros de onde ele estava. Ele levantou os braços para mim.
— Lembra? — disse ele.
Eu me vi pequena de novo, com 6 anos de idade, em uma sala de estar em Illinois. Então, como daquela vez, pus os pés em cima dos pés dele.
— Vovô — disse eu.
E como estávamos sozinhos e ambos estávamos no céu, eu era leve o bastante para me mexer como me mexia aos 6 anos e ele tinha 56, e meu pai tinha nos levado para uma visita. Dançamos bem devagar uma música que na Terra sempre tinha feito meu avô chorar.
— Lembra? — perguntou ele.
— Barber!
— Adágio para Cordas — disse ele.
Mas enquanto dançávamos e rodopiávamos — nada dos esbarrões
desajeitados da Terra — o que eu me lembrei foi de como o tinha encontrado, chorando ao som dessa música e perguntado por quê.
— Algumas vezes, Susie, você chora, mesmo quando alguém que você ama morreu há muito tempo. — Então ele tinha me abraçado, um abraço curto, e depois eu tinha corrido para fora para brincar de novo com Lindsey no que parecia ser o enorme quintal do meu avô.
Não falamos mais naquela noite, mas dançamos durante horas naquela noite azul fora do tempo. Eu sabia que enquanto dançávamos alguma coisa estava acontecendo na Terra e no céu. Uma mudança. Aquele tipo de movimento que começa devagar e fica rápido sobre o qual tínhamos lido certo ano na aula de ciências. Sísmico, impossível, um rompimento e um rasgo no tempo e no espaço. Apertei o corpo no peito do meu avô e senti seu cheiro de velhinho, a versão com naftalina do meu próprio pai, o sangue na Terra, o firmamento no céu. Cumquat, gambá, tabaco classe A.
Quando a música parou, parecia que estávamos dançando desde o início dos tempos. Meu avô deu um passo de costas, e a luz atrás dele ficou amarela.
— Vou indo — disse ele.
— Para onde? — perguntei.
— Não se preocupa, querida. Você está muito perto.
Ele virou as costas e se afastou,desaparecendo rapidamente em pontinhos
e poeira. No infinito.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Where stories live. Discover now