Capítulo 13

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Ao voltar para o ginásio no outono de 1974, Lindsey não só era a irmã da menina assassinada, mas a filha do "maluco", "lelé", "biruta", e a segunda afirmação a feria mais por não ser verdade.
Os boatos que Lindsey e Samuel escutaram nas primeiras semanas do ano letivo coleavam pelas fileiras de escaninhos dos alunos como a mais persistente das cobras. Agora o redemoinho havia aumentado e incluía também Brian Nelson e Clarissa, que felizmente tinham entrado no cientifico naquele ano.Em Pairfax, Brian e Clarissa se agarravam um ao outro, explorando o que tinha lhes acontecido, usando a desgraça do meu pai como um verniz de fama com o qual podiam se cobrir recontando pelo colégio o que tinha acontecido naquela noite no milharal.
Ray e Ruth passavam pelo lado de dentro da parede de vidro que dava para o saguão externo. Nas pedras falsas onde supostamente ficavam sentados os maus elementos, viam Brian presidindo sua corte. Naquele ano, seu andar se transformou de espantalho ansioso em passo masculino. Clarissa, rindo tanto de medo quanto de desejo, havia destrancado suas partes e dormido com Brian. Por mais aleatoriamente que fosse, todo mundo que eu tinha conhecido estava crescendo.
Buckley entrou no jardim de infância naquele ano e imediatamente chegou em casa a fim da professora, a srta. Koekle. Ela segurava sua mão com tanta delicadeza sempre que tinha de levá-lo ao banheiro ou ajudar a explicar um dever que sua força era irresistível. Por um lado ele se apartava disso — ela muitas vezes lhe dava um biscoito a mais as escondidas, ou uma almofada mais macia para ele se sentar — mas por outro lado era mantido acima e afastado de seus colegas do jardim. Pela minha morte, ele tinha sido diferenciado no interior do único grupo — crianças — onde poderia ter ficado anônimo.
Samuel deixava Lindsey em casa e depois descia a rua principal e pedia carona até a oficina de motos de Hal. Contava com os amigos do irmão para reconhecê-lo, e alcançava seu destino levado por uma coleção insólita de motos e caminhões que Hal ajustava para o motorista quando eles chegavam.
Ele passou algum tempo sem entrar na nossa casa. Ninguém que não fosse da família entrava lá. Em outubro, meu pai estava apenas começando a se levantar e andar. Os médicos tinham lhe dito que sua perna direita seria sempre dura, mas que se ele se alongasse e se mantivesse flexível ela não seria um obstáculo muito grande. "Não vai poder jogar beisebol, mas vai poder fazer todo o resto", disse o cirurgião na manhã seguinte à sua operação, quando meu pai acordou e encontrou Lindsey ao seu lado e minha mãe em pé junto à janela olhando para o estacionamento lá fora.
Buckley saía direto do banho morno sob o calor da srta. Koekle e ia para casa se refugiar na caverna vazia do coração do meu pai. Ele fazia perguntas incessantes sobre o "joelho falso", e meu pai se afeiçoava mais a ele.
— O joelho veio do espaço sideral — dizia meu pai. — Eles trouxeram de volta pedaços da lua e os esculpiram, e agora usam para fazer coisas desse tipo.
— Uau — dizia Buckley sorrindo. — Quando o Nate vai poder ver?
— Daqui a pouco, Buck, daqui a pouco — dizia meu pai. Mas seu sorriso ia enfraquecendo.
Quando Buckley pegava essas conversas e as levava para minha mãe — ―O joelho do papai é feito de osso de lua", dizia-lhe ele, ou "A srta. Koekle disse que minhas cores ficaram muito boas" — ela balançava a cabeça. Tinha se tornado consciente do que fazia. Cortava cenouras e aipo em pedaços comíveis. Lavava garrafas térmicas e lancheiras, e quando Lindsey Decidiu que estava velha demais para usar lancheira minha mãe, para sua rrópria surpresa, ficou feliz de verdade quando encontrou sacos de papel encerado que impediam o almoço da filha de vazar e manchar suas roupas. Roupas que ela lavava. Dobrava. Passava quando necessário e pendurava em cabides. Catava do chão ou tirava do carro ou separava da toalha molhada em cima da cama que arrumava todas as manhãs, prendendo os lençóis debaixo do colchão, afofando os travesseiros e ajeitando bichos de pelúcia, e abrindo as persianas para deixar a luz entrar.
Nos momentos em que Buckley a solicitava, ela muitas vezes fazia uma troca. Focalizava a atenção nele por alguns minutos, e depois se permitia afastar-se de sua casa e pensar em Len.
Em novembro, meu pai estava craque no que chamava de "destreza no mancar", e quando Buckley insistia ele dava um pulinho contorcido que, contanto que fizesse seu filho rir, não o fazia pensar no quão esquisito e desesperado ele poderia parecer para um estranho ou para minha mãe. Todos, com exceção de Buckley, sabiam o que estava se aproximando: o primeiro aniversário.
Buckley e meu pai passavam as frias tardes de outono no quintal cercado com Holiday. Meu pai se sentava na velha cadeira de jardim de ferro com a perna esticada na frente do corpo e apoiada de leve em um cafona limpador de botas que vovó Lynn tinha encontrado em uma loja de curiosidades em Maryland.
Buckley jogava o brinquedo de vaca que fazia barulho enquanto Holiday corria para pegá-lo. Meu pai sentia prazer vendo o corpo ágil do filho de 5 anos e ouvindo as risadas deliciadas dele quando Holiday o derrubava e o cutucava com o focinho ou lambia seu rosto com a comprida língua cor-de- rosa. Mas não conseguia se livrar de uma ideia: aquilo também — aquele menino perfeito — podia lhe ser tirado.
Uma combinação de fatores, entre os quais seu ferimento não tinha pouca importância, o havia feito ficar em casa em uma licença médica prolongada da empresa em que trabalhava. Seu patrão agora agia diferente quando estava com ele, assim como seus colegas de trabalho. Eles passavam na ponta dos pés do lado de fora de sua sala e paravam a alguns passos da escrivaninha como se, caso relaxassem demais na sua presença, o que tinha acontecido com ele fosse acontecer com eles — como se ter um filho morto fosse contagioso. Ninguém sabia como ele continuava a fazer o que fazia, enquanto ao mesmo tempo queriam que escondesse todos os sinais de sua dor, que os guardasse em uma pasta em algum lugar e os pusesse em uma gaveta que ninguém nunca mais teria de abrir. Ele telefonava sempre, e com a mesma facilidade seu patrão concordava que ele tirasse mais uma semana, mais um mês, se precisasse, e ele considerava aquilo um prêmio por sempre ter chegado na hora ou aceitado trabalhar até tarde. Mas ele mantinha distância do sr. Harvey e tentava evitar qualquer pensamento a seu respeito. Não usava seu nome exceto em seu caderno, que mantinha escondido no escritório, onde foi surpreendentemente fácil combinar com minha mãe que ela não faria mais faxina. Ele tinha pedido desculpas para mim em seu caderno. "Preciso descansar, querida. Preciso entender como ir atrás desse homem. Espero que você entenda."
Mas ele tinha marcado sua volta ao trabalho para o dia 2 de dezembro, logo depois do dia de Ação de Graças. Queria estar de volta ao escritório quando chegasse o aniversário do meu desaparecimento. Queria estar funcionando e recuperando o tempo de trabalho perdido — no lugar mais público e distrativo que pudesse conceber. E longe da minha mãe, para ser honesto consigo mesmo.
Como nadar de volta para ela, como tornar a alcançá-la. Ela estava se distanciando cada vez mais — toda sua energia estava contra a casa, e toda a energia dele estava dentro da casa. Ele decidiu recuperar as forças e encontrar uma estratégia para perseguir o sr. Harvey. Culpar era mais fácil do que somar os números cada vez mais altos daquilo que tinha perdido.
Vovó Lynn viria para o dia de Ação de Graças, e Lindsey estava seguindo um regime embelezador que vovó tinha mandado para ela por carta. Tinha se sentido boba da primeira vez em que pôs pepinos nos olhos (para diminuir as bolsas) ou mingau de aveia no rosto (para limpar os poros e absorver o excesso de oleosidade) ou gema de ovo no cabelo (para fazê-lo brilhar). Seu uso de alimentos tinha até feito minha mãe rir, depois se perguntar se deveria começar a se embelezar também. Mas isso durou só um segundo, porque ela estava pensando em Len não por estar apaixonada por ele, mas porque estar com ele era o caminho mais rápido que ela conhecia para o esquecimento.
Duas semanas antes da chegada da vovó Lynn, Buckley e meu pai estavam lá fora no quintal com Holiday. Buckley e Holiday pulavam de uma imensa pilha de folhas lustrosas de carvalho para outra em um jogo de pega- pega cada vez mais frenético.
— Cuidado, Buck — disse meu pai. — Você vai fazer o Holiday morder. — E foi exatamente o que aconteceu.
Meu pai disse que queria experimentar urna coisa.
— Precisamos ver se o seu velho pai consegue carregar você nas costas de novo. Daqui a pouco você vai ficar grande demais.
Então, sem jeito, no lindo isolamento do quintal, onde se meu pai caísse só um menino e um cachorro que o amavam veriam, os dois trabalharam juntos para fazer acontecer aquilo que ambos queriam — aquela volta à normalidade pai/filho. Quando Buckley ficou em pé na cadeira de ferro — "Agora monte nas minhas costas", disse meu pai, inclinando-se para a frente, "e segure nos meus ombros", sem saber se teria força suficiente pari levantá-lo dali — cruzei os dedos com força no céu e prendi a respiração. No milharal, sim, mas nesse momento, consertando a trama mais básica de suas vidas cotidianas anteriores, enfrentando seu ferimento para recuperar um instante como aquele, meu pai se tornou o meu herói.
— Abaixa, agora abaixa de novo — dizia ele enquanto eles galopavam pelas portas do andar de baixo e subiam as escadas, cada passo um desafio ao equilíbrio do meu pai, uma dor que causava uma careta. E com Holiday passando correndo por eles nas escadas, e Buckley radiante enquanto subiam, ele soube que tinha feito a coisa certa ao desafiar a própria força. Quando os dois — mais o cachorro — descobriram Lindsey no banheiro de cima, ela reclamou com um gemido alto.
— Paaaai!
Meu pai endireitou o corpo. Buckley levantou a mão e tocou a frágil luminária.
— O que você está fazendo? — perguntou meu pai. — O que parece que eu estou fazendo?
Ela estava sentada em cima da tampa da privada enrolada em uma grande toalha branca (as toalhas que minha mãe branqueava, as toalhas que minha mãe pendurava no varal para secar, as toalhas que ela dobrava e punha dentro de um cesto e levava para a rouparia no andar de cima...). Sua perna esquerda estava apoiada na beirada da banheira, coberta de creme de barbear. Ela estava segurando a gilete do meu pai.
— Não seja petulante — disse meu pai.
— Desculpa — disse minha irmã, baixando os olhos. — Eu só quero um pouco de privacidade, só isso.
Meu pai suspendeu Buckley por cima da cabeça.
— A bancada, a bancada, filho — disse ele, e Buckley ficou encantado com o ponto intermediário ilegal da bancada do banheiro e com seus pés enlameados que sujaram o ladrilho.
— Agora pula para baixo. — E ele pulou. Holiday o encarava.
— Você é nova demais para raspar as pernas, docinho — disse meu pai. — A vovó Lynn começou a se raspar com 11 anos.
— Buckley, pode ir para o seu quarto e levar o cachorro? Eu já estou indo. — Tá bom, papai.
Buckley ainda era um menininho que meu pai podia, com paciência e
algumas manobras, suspender nos ombros para que pudessem ser um pai e um filho típicos. Mas agora ele via em Lindsey algo que causava uma dupla dor. Eu era uma menininha na banheira, um bebê sendo levantado até a altura da pia, uma menina que tinha parado para sempre logo antes de se sentar como minha irmã estava sentada.
Quando Bucklsey saiu, ele voltou a atenção para minha irmã. Cuidaria de suas duas filhas cuidando de uma só.
— Está tomando cuidado? — perguntou ele.
— Acabei de começar — disse Lindsey. — Eu gostaria de ficar sozinha, pai.
— Essa é a mesma lâmina que estava aí quando você pegou a gilete no meu kit de barbear?
— É.
— Bom, a minha barba cega a lâmina. Vou pegar uma nova para você.
— Obrigada, pai — disse minha irmã, e mais uma vez ela era a doce lindsey que subia em suas costas.
Ele saiu do banheiro e desceu o corredor até o outro lado da casa e o banheiro de casal que ele e minha mãe ainda dividiam, embora já não dormissem mais no mesmo quarto. Quando levantou o braço para pegar um pacote de lâminas novas no armário, sentiu lágrimas no peito. Ignorou-as e se concentrou no que estava fazendo. Naquele momento houve apenas um pensamento vacilante: A Abigail deveria estar fazendo isso.
Ele voltou com as lâminas, mostrou a Lindsey como trocá-las, e lhe deu alguns conselhos sobre como raspar melhor as pernas.
— Cuidado com o tornozelo e o joelho — disse ele. — Sua mãe sempre disse que essas são as zonas perigosas.
— Pode ficar se quiser — disse ela, agora pronta para deixá-lo entrar. — Mas eu talvez fique toda cortada. — Ela quis bater em si mesma. — Desculpa, pai — disse ela. — Olha, vou chegar para o outro lado — sente aqui.
Ela se levantou e foi se sentar na beirada da banheira. Abriu a torneira, e meu pai se sentou em cima da tampa da privada.
— Tudo bem, querida — disse ele. — Faz algum tempo que não falamos sobre a sua irmã.
— E precisa falar? — disse minha irmã. — Ela está em todo lugar.
— Seu irmão parece estar bem.
— Ele está colado em você.
— E — disse ele, e se deu conta de que gostava daquilo, daquela corte ao
pai que seu filho estava fazendo.
— Ai — disse Lindsey, vendo um fino veio de sangue começar a se
espalhar pela espuma branca do creme de barbear. — Mas que droga.
— Aperta o corte com o polegar. Vai parar de sangrar. Você pode raspar só o alto do joelho — sugeriu ele. — E isso que sua mãe faz a não ser quando
vamos à praia.
Lindsey fez uma pausa.
— Vocês nunca vão à praia.
— Antes nós íamos.
Meu pai tinha conhecido minha mãe quando os dois trabalhavam no
Wanamaker's, durante as férias de verão da universidade. Ele tinha acabado de fazer um comentário desagradável sobre como a sala dos empregados cheirava a cigarro quando ela sorriu e tirou do bolso seu então habitual maço de Pall Mall.
— Touché — disse ele, e ficou ao lado dela apesar do cheiro ruim de seus cigarros que o envolvia dos pés à cabeça.
— Estou tentando decidir com quem eu me pareço — disse Lindsey. — Com a vovó Lynn ou com a mamãe.
— Sempre pensei que tanto você quanto sua irmã se pareciam com a minha mãe — disse ele.
— Pai?
— O quê?
— Você ainda está convencido de que o sr. Harvey teve alguma coisa a
ver com a história?
Foi como se um graveto finalmente criasse uma fagulha com outro
graveto — a fricção pegou.
— Não existe uma dúvida sequer na minha mente, querida. Nenhuma.
— Então por que o Len não o prende?
Ela subiu a gilete de qualquer maneira e terminou a,primeira perna. Ali
hesitou, esperando.
— Eu gostaria que fosse fácil de explicar — disse ele, sentindo as palavras
se desenrolarem. Nunca tinha falado muito sobre sua suspeita com ninguém. — Quando eu o conheci naquele dia, no quintal dele, e construímos aquela tenda — aquela que ele alegou ter construído para a mulher, que eu pensava se chamar Sophie e o Len anotou como Leah —, tinha alguma coisa nos movimentos dele que me fez ter certeza.
— Todo mundo acha ele meio esquisito.
— É verdade, eu sei disso — disse ele. — Mas também ninguém nunca falou muito com ele. Não sabem se a esquisitice dele é benigna ou não.
— Benigna?
— Inofensiva.
— O Holiday não gosta dele — sugeriu Lindsey.
— Exatamente. Nunca vi aquele cachorro latir tão alto. Os pelos das
costas dele ficaram eriçados naquela manhã.
— Mas a polícia acha que você está maluco.
— "Não há provas", é tudo o que conseguem dizer. Sem provas e — desculpe, querida — sem um corpo, eles não têm nada com o que trabalhar e nenhum motivo para uma prisão.
— O que seria um motivo?
— Acho que alguma coisa o ligando à Susie. Se alguém o tivesse visto no milharal ou até rondando o colégio. Alguma coisa assim.
— Ou se ele estivesse com alguma coisa dela? — Tanto meu pai quanto Lindsey estavam conversando animadamente, com a segunda perna dela coberta de creme, mas ainda sem raspar, porque o que irradiava enquanto os dois gravetos do seu interesse produziam uma chama era que eu estava presente em algum lugar daquela casa. Meu corpo — no porão, no primeiro andar, no segundo andar, no sótão. Para evitar enfrentar aquele pensamento horrível — mas, ah, se fosse verdade, aquele pensamento tão flagrante, tão perfeito, tão conclusivo como prova — eles se lembraram do que eu estava usando naquele dia, do que eu estava carregando, da borracha do Frito Bandito que eu adorava, do broche do David Cassidy que eu tinha pregado do lado de dentro da mochila, do broche do David Bowie que eu tinha pregado do lado de fora. Enumeraram todos os objetos e acessórios que cercavam o que seria a melhor, a mais horrenda prova que alguém poderia encontrar — meu cadáver cortado em pedaços, meus olhos vazios apodrecendo.
Meus olhos: a maquiagem que vovó Lynn tinha lhe dado ajudava, mas não resolvia o problema do quanto todo mundo via os meus olhos nos olhos de Lindsey. Quando eles apareciam — um estojo de pó compacto passando na sua frente enquanto era usado por uma menina na carteira ao lado, ou um reflexo inesperado na vitrine de uma loja — ela olhava para o outro lado. Era particularmente doloroso com meu pai. O que ela percebeu enquanto eles conversavam foi que enquanto estivessem falando sobre esse assunto — o sr. Harvey, minhas roupas, minha mochila de livros, meu corpo, eu — a atenção à minha lembrança fazia meu pai vê-la como Lindsey e não como uma trágica combinação de suas duas filhas.
— Então você gostaria de poder entrar na casa dele? — disse ela.
Eles ficaram se olhando, com uma ideia perigosa começando a surgir em suas consciências. Em sua hesitação, antes de ele finalmente dizer que feia ilegal, e que não, ele não tinha pensado naquilo, ela soube que ele estava mentindo. Soube também que ele precisava de alguém para fazer aquilo por ele.
— Você deveria terminar de se raspar, querida — disse ele.
Ela concordou com ele e se virou para o outro lado, sabendo o que tinha escutado.
Vovó Lynn chegou na segunda-feira antes do dia de Ação de Graças. Com os mesmos olhos de raio laser que imediatamente procuravam qualquer imperfeição desgraciosa na minha irmã, ela agora via alguma coisa sob a superfície do sorriso de sua filha, em seus movimentos calmos, tranquilos e em como seu corpo reagia sempre que o inspetor Fenerman ou o rrabalho da polícia eram mencionados.
Quando minha mãe recusou a ajuda do meu pai para tirar a mesa depois do jantar naquela noite, os olhos de raio laser tiveram certeza. Decidida, e para espanto de todos à mesa e alívio da minha irmã — vovó Lynn fez um anúncio.
— Abigail, vou ajudar você a tirar a mesa. Vai ser uma coisa entre mãe e filha.
— O quê?
Minha mãe tinha calculado que poderia dispensar Lindsey depressa e com facilidade e então passaria o resto da noite debruçada sobre a pia, lavando a louça devagar e olhando pela janela até a escuridão lhe mostrar seu próprio reflexo. Os sons da TV iriam embora e ela ficaria sozinha de novo.
— Fiz as unhas ontem, — disse vovó Lynn depois de amarrar um avental sobre o vestido trapézio bege — então vou secar.
— Mãe, sério. Não precisa.
— Precisa sim, docinho, acredite em mim — disse minha avó. Havia algo de sóbrio e incisivo naquele "docinho".
Buckley levou meu pai pela mão até o cômodo ao lado onde ficava a TV. Eles tomaram seus lugares e Lindsey, tendo obtido uma trégua, subiu para ligar para Samuel.
Era uma coisa tão estranha de se ver. Tão fora do normal. Minha avó de avental, segurando um pano de prato suspenso como a capa vermelha de um toureiro, preparada para o primeiro prato que chegava.
Elas trabalharam caladas, e o silêncio — os únicos sons eram o chafurdar das mãos da minha mãe mergulhando na água escaldante, os rangidos dos pratos e o tilintar dos talheres — fizeram o cômodo se encher de uma tensão que ficou insuportável. Os barulhos do jogo do cômodo ao lado eram igualmente estranhos para mim. Meu pai nunca tinha assistido a futebol; basquete era seu único esporte. Vovó Lynn nunca tinha lavado a louça; comida congelada e entregas em domicílio eram suas armas preferidas.
— Ah, Jesus — disse ela enfim. — Pegue isso. — Devolveu o prato recém- lavado a minha mãe. — Quero ter uma conversa séria, mas tenho medo de deixar cair essas coisas. Vamos dar uma volta.
— Mãe, eu preciso...
— Você precisa dar uma volta.
— Depois de lavar a louça.
— Escute — disse minha avó —, eu sei que eu sou o que sou e você é o
que é, ou seja, diferente de mim, coisa que a faz feliz, mas eu sei perceber algumas coisas e sei que alguma coisa nada católica está acontecendo aqui. Capisce?
O rosto da minha mãe oscilava, macio e maleável — quase tão macio e maleável quanto sua imagem que flutuava na água suja da pia.
— O quê?
— Tenho suspeitas e não quero falar sobre elas aqui.
Positivo, vovó Lynn, pensei. Nunca a tinha visto nervosa antes.
Seria fácil para as duas saírem da casa sozinhas. Meu pai, com seu joelho,
nunca pensaria em acompanhá-las, e naqueles dias, onde quer que meu pai fosse ou não, meu irmão, Buckley, o acompanhava.
Minha mãe ficou calada. Não via alternativa. Na última hora, elas tiraram os aventais na garagem e os empilharam no teto do Mustang. Minha mãe se abaixou e levantou a porta da garagem.
Ainda era bem cedo, de modo que haveria luz no começo de seu passeio. — Poderíamos levar o Holiday — tentou minha mãe.
— Só você e sua mãe — disse minha avó. — O par mais assustador que se
poderia imaginar.
Elas nunca tinham sido próximas. Ambas sabiam disso, mas não era algo
que reconhecessem muito. Brincavam com o assunto como duas crianças que não gostam especialmente uma da outra, mas são as únicas crianças em um bairro grande e deserto. Agora, nunca tendo tentado antes, sempre tendo deixado a filha correr o mais rápido que pudesse em qualquer direção que quisesse, minha avó descobriu que estava subitamente chegando mais perto.
Elas já tinham passado pela casa dos O'Dwyer e estavam perto da dos Tarking quando minha avó disse o que tinha para dizer.
— Meu bom humor escondeu minha aceitação — disse minha avó. — Seu pai teve um caso longo em New Hampshire. A inicial do nome dela era F e eu nunca soube o que significava. Ao longo dos anos descobri mil alternativas.
— Mãe?
Minha avó continuou andando, sem se virar. Descobriu que o ar frio do outono ajudava, enchendo seus pulmões até ela senti-los mais limpos do que dois minutos atrás.
— Você sabia disso?
— Não.
— Acho que eu nunca contei para você — disse ela. — Não achei que
precisasse saber. Agora precisa, você não acha?
— Não tenho certeza de por que você está me dizendo isso.
Elas tinham chegado à curva na rua que as faria dar novamente a volta na
rotatória. Se seguissem por ali e não parassem, acabariam indo dar na frente da casa do sr. Harvey. Minha mãe congelou.
— Pobrezinha, pobrezinha do meu docinho — disse minha avó. — Me dê a mão.
Estavam pouco à vontade. Minha mãe podia contar nos dedos quantas vezes seu alto pai tinha se inclinado para beijá-la quando ela era criança. A barba áspera cheirando a uma colônia que, depois de anos de busca, ela nunca tinha conseguido identificar. Minha avó segurou sua mão e a manteve segura enquanto tomavam a outra direção.
Entraram em uma parte do bairro para onde parecia que cada vez mais novas famílias estavam se mudando. As casas-âncora: lembro-me de minha mãe tê-las chamado assim porque elas margeavam a rua que passava por todo o bairro — porque ancoravam o bairro a uma rua original construída antes de o distrito ser um distrito. A rua que levava a Valley Forge, a George Washington e à Revolução.
— A morte da Susie me fez tornar a pensar no seu pai — disse minha avó. — Nunca me permiti lamentar direito a morte dele.
— Eu sei — disse minha mãe.
— Isso a deixou chateada? Minha mãe fez uma pausa.
— Deixou.
Minha avó afagou as costas da mão da minha mãe com a mão livre.
— Que bom, está vendo, isso é um pedaço.
— Pedaço?
— Alguma coisa que está saindo disso tudo. Você e eu. Um pedacinho de
verdade entre nós duas.
Elas passaram pelos lotes de meio hectare em que árvores cresciam havia
20 anos. Se não eram exatamente imponentes, mesmo assim eram duas vezes mais altas do que os pais que as tinham segurado pela primeira vez e pisoteado a terra à sua volta com seus sapatos de trabalho de fim de semana.
— Você sabe o quanto eu sempre me senti sozinha? — perguntou minha mãe à sua mãe.
— E por isso que estamos andando, Abigail — disse vovó Lynn.
Minha mãe focalizou os olhos à sua frente, mas sua mão continuou a ligá- la à mãe. Pensou na natureza solitária de sua infância. Em como, quando tinha visto suas duas filhas amarrarem um barbante ligando dois copos de papel e ir para quartos separados sussurrar segredos uma para a outra, não podia realmente dizer que sabia o que era aquilo. Em sua casa não havia mais ninguém com ela a não ser sua mãe e seu pai, e depois seu pai tinha ido embora.
Fitou as copas das árvores que, a quilômetros de nossa área de expansão, eram as coisas mais altas por ali. Ficavam em cima de uma colina alta que nunca tinha sido limpa para construir casas e onde alguns velhos agricultores ainda moravam.
— Não posso descrever o que estou sentindo — disse ela. — Para ninguém.
Elas chegaram ao fim da área de expansão bem na hora em que o sol descia do outro lado da colina à sua frente. Um instante passou sem nenhuma das duas se virar. Minha mãe viu a última luz tremeluzir em uma a de drenagem no final da rua.
— Não sei o que fazer — disse ela. — Está tudo acabado agora.
Minha avó não teve certeza do que ela queria dizer com "tudo", mas não a pressionou mais.
— Vamos voltar? — sugeriu minha avó.
— Como? — disse minha mãe.
— Para casa, Abigail. Voltar para casa.
Viraram-se e recomeçaram a andar. As casas, uma depois da outra, de
estrutura idêntica. Apenas o que minha avó considerava seus acessórios as diferenciava. Ela nunca tinha entendido lugares como aquele — lugares onde sua própria filha tinha decidido morar.
— Quando chegarmos à curva da rotatória — disse minha mãe — quero passar lá na frente.
— Da casa dele?
— É.
Vi vovó Lynn se virar quando minha mãe se virou.
— Você me promete que não vai mais ver esse homem? — perguntou
minha avó.
— Quem?
— O homem com quem você está envolvida. E sobre isso que eu estava falando.
— Não estou envolvida com ninguém — disse minha mãe. Sua mente voava como um pássaro de um telhado a outro. — Mãe? — disse ela, e se virou.
— Abigail?
— Se eu precisar ir embora por algum tempo, posso usar a cabana do papai?
— Você ouviu o que eu disse?
Elas podiam sentir um cheiro no ar, e mais uma vez a mente ansiosa, ágil da minha mãe se esquivou.
— Tem alguém fumando — disse ela.
Vovó Lynn encarava a filha. A dona-de-casa pragmática e formal que minha mãe sempre fora tinha desaparecido. Ela estava esquiva e distraída. Minha avó não tinha mais nada a lhe dizer.
— São cigarros importados — disse minha mãe. — Vamos encontrá-los!
E na luz cada vez mais fraca minha avó ficou olhando, boquiaberta, tainha mãe começar a seguir o cheiro até sua origem.
— Eu vou voltar — disse minha avó.
Mas minha mãe continuou andando.
Logo encontrou a origem da fumaça. Era Ruana Singh, em pé atrás de um
grande pinheiro no quintal dos fundos de sua casa.
— Oi — disse minha mãe.
Ruana não se assustou como pensei que faria. Sua calma tinha virado algo
ensaiado. Ela era capaz de manter a respiração constante durante o mais surpreendente dos acontecimentos, fosse seu filho sendo acusado de assassinato pela polícia ou seu marido conduzindo um jantar em sua casa como se fosse uma reunião do comitê acadêmico. Ela tinha dito a Ray que ele podia ir lá para cima, e depois tinha desaparecido pela porta dos fundos r sua falta não tinha sido notada.
— Sra. Salmon — disse Ruana, exalando o cheiro forte de seus cigarros. Em uma onda de fumaça e calor, minha mãe segurou a mão estendida de Ruana. — Que prazer em vê-la.
— A senhora está dando uma festa? — perguntou minha mãe.
— Meu marido está dando uma festa. Eu sou a anfitriã. Minha mãe sorriu. — Este lugar em que moramos é estranho — disse Ruana.
Seus olhos se encontraram. Minha mãe balançou a cabeça, concordando.
Em algum lugar da rua lá atrás estava sua mãe, mas, por enquanto, ela, assim como Ruana, estava em uma tranquila ilha longe do continente.
— A senhora tem outro cigarro?
— Claro, sra. Salmon, tenho sim. — Ruana pôs a mão dentro do bolso de seu comprido cardigã preto e estendeu o maço e o isqueiro. — Dunhill — disse ela. — Espero que sirva.
Minha mãe acendeu seu cigarro e devolveu a Ruana o maço azul com seu papel dourado.
— Abigail — disse ela enquanto expirava. — Por favor, me chame de Abigail.
Lá em cima em seu quarto, com as luzes apagadas, Ray sentia o cheire dos cigarros da mãe, que ela nunca o acusava de roubar, assim como ele nunca deixava escapar que sabia que ela os tinha. Ouvia as vozes no andar de baixo — os sons altos do pai e de seus colegas falando seis línguas diferentes e rindo com gosto do dia de Ação de Graças próximo: ah, como aquele feriado era tipicamente americano. Não sabia que minha mãe estava lá fora no gramado com sua mãe ou que eu o estava vendo se sentar no peitoril de sua janela e sentir o cheiro doce de tabaco. Logo sairia da janela e acenderia o pequeno abajur ao lado da cama para ler. A sra. McBride tinha lhes dito para achar um soneto sobre o qual gostariam de escrever um trabalho, mas lendo os que tinha diante dos olhos em sua Norton Anthology ele não parava de voltar ao instante que desejava poder recuperar e viver de novo. Se ao menos ele tivesse me beijado no andaime, talvez tudo tivesse acontecido de forma diferente.
Vovó Lynn continuou pelo caminho que tinha decidido com minha mãe, e depois de algum tempo ali estava ela — a casa que eles tentavam esquecer morando a duas casas de distância. O Jack tinha razão, pensou minha avó. Podia sentir aquilo até no escuro. O lugar irradiava alguma coisa malévola. Ela teve um calafrio e começou a ouvir os grilos e a ver os vaga-lumes se juntarem em um enxame acima dos canteiros de flores dele. Pensou de repente que não faria nada a não ser dar apoio à sua filha. Sua filha estava vivendo no meio de uma zona devastada que nenhum caso de seu próprio marido podia ajudá-la a compreender. Pela manhã, ela diria à minha mãe que as chaves da cabana sempre estariam à sua disposição, caso ela precisasse.
Naquela noite, minha mãe teve o que considerou um sonho maravilhoso. Sonhou com a índia, onde nunca tinha estado. Havia cones de tráfego cor-de- laranja e lindos insetos de lápis-lazúli com mandíbulas de ouro. Uma menina estava sendo conduzida pelas ruas. Ela foi levada até uma pira onde foi envolta em um lençol e colocada em cima de uma plataforma feita de gravetos. O fogo brilhante que a consumiu levou minha mãe àquele estado de alegria profunda, leve, como um sonho. A menina estava sendo queimada viva, mas antes disso houvera seu corpo, limpo e inteiro.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora