Capítulo 14

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Durante uma semana Lindsey ficou manjando a casa do meu assassino. Ela estava fazendo exatamente o que ele fazia com todas as outras pessoas.
Tinha concordado em treinar com o time de futebol dos meninos durante o ano todo, preparando-se para o desafio que o sr. Dewitt e Samuel a incentivavam a aceitar: entrar para a liga de futebol do colégio formada só por meninos. E Samuel, para demonstrar seu apoio, treinava junto com ela sem esperança de ser aceito como nada, dizia ele, a não ser como "o cara mais rápido de short".
Ele sabia correr, mesmo que chutar e passar e notar a presença de uma bola em qualquer lugar ao seu redor estivessem fora de seu alcance. Assim, enquanto corriam pelo bairro, todas as vezes que Lindsey olhava na direção da casa do sr. Harvey, Samuel estava na sua frente, marcando o ritmo para ela — sem perceber nada.
Dentro da casa verde, o sr. Harvey olhava para fora. Ele a via olhando para ele e começou a ficar inquieto. Agora já fazia quase um ano, mas os Salmon continuavam decididos a pegá-lo.
Aquilo já tinha acontecido em outras cidades e em outros estados. A família de uma menina suspeitava dele, mas ninguém mais suspeitava. Ele tinha aperfeiçoado seu discurso para a polícia, uma certa inocência obsequiosa salpicada de admiração por seus procedimentos ou de ideias inúteis que ele apresentava como se pudessem ajudar. Falar do filho dos Ellis com Fenerman tinha sido uma boa jogada, e a mentira de que era viúvo sempre ajudava. Ele criava uma esposa a partir de qualquer vítima que estivesse recentemente lhe causando prazer em sua lembrança, e para personificá-la sempre havia sua mãe.
Todas as tardes ele saía de casa por uma ou duas horas. Comprava os mantimentos de que precisava e ia de carro até Valley Forge Park, onde percorria as estradas calçadas e as trilhas de terra e se via subitamente rodeado por excursões escolares para a cabana de madeira de George Washington DU para a capela em homenagem a George Washington. Isso o animava — esses momentos em que as crianças estavam ávidas para ver história, como se pudessem realmente encontrar um comprido cabelo grisalho da peruca de Washington preso na ponta áspera de uma tora de madeira.
Às vezes um dos guias da excursão ou uma das professoras o via ali em pé, desconhecido, embora simpático, e ele era alvo de um olhar curioso. Tinha milhares de respostas para eles: "Eu costumava trazer meus filhos aqui." "Foi aqui que conheci minha mulher." Tinha o cuidado de basear tudo o que dizia em algum membro de uma família imaginária, e então as mulheres sorriam para ele. Certa vez, uma mulher atraente e grandona tentou começar uma conversa com ele enquanto o guia do parque contava para as crianças a história do inverno de 1776 e da Batalha das Nuvens.
Ele tinha usado a história da viuvez e mencionado uma mulher chamada Sophie Cichetti, transformando-a em sua esposa já falecida e seu verdadeiro amor. Isso tinha sido como uma comida saborosa para aquela mulher, e enquanto ele a ouvia falar sobre seus gatos e seu irmão, que tinha três filhos, que ela adorava, ele a imaginava sentada na cadeira de seu porão, morta.
Depois disso,quando via o olhar zangado e curioso de alguma professora, ele recuava timidamente e ia para algum outro lugar do parque. Via mães com os filhos ainda no carrinho passarem depressa pelos caminhos Expostos. Via adolescentes matando aula se beijarem nos campos não aparados ou nas estradas interiores. E no ponto mais alto do parque havia um pequeno bosque ao lado do qual ele parava de vez em quando. Ficava sentado no seu Wagoneer e via homens solitários pararem ao seu lado e descerem dos carros. Homens de terno ou no horário de almoço ou homens de camisas de flanela e jeans entravam depressa naquele bosque. Algumas vezes lançavam um olhar para trás na sua direção — uma pergunta. Se estivessem perto o suficiente, esses homens podiam ver, através de seu para-brisa, o que suas vítimas viam — seu selvagem e infindável desejo.
No dia 26 de novembro de 1974, Lindsey viu o sr. Harvey sair da casa verde, e começou a ficar para trás do grupo de meninos que corria. Mais tarde poderia alegar ter ficado menstruada e todos se calariam, e ficariam até satisfeitos por isso ser uma prova de que o pouco popular plano do sr. Dewitt — uma menina no campeonato regional! — nunca daria certo.
Eu olhava minha irmã e ficava maravilhada. Ela estava virando tudo ao mesmo tempo. Mulher. Espiã. Atleta. O Ostracizado: O Homem Só.
Ela começou a andar, apertando a barriga para simular uma eólica, e acenou para os meninos continuarem quando eles se viraram para olhar para ela. Continuou andando com a mão na cintura até eles virarem a esquina no final do quarteirão. No final do terreno do sr. Harvey havia uma fileira de pinheiros altos e grossos que não eram podados há anos. Ela se sentou ao lado de um, ainda fingindo exaustão, caso algum vizinho estivesse olhando pela janela, e então, quando sentiu que era o momento certo, enrolou-se formando uma bola com o corpo e rolou entre dois pinheiros. Esperou. Ainda faltava uma volta para os meninos. Ela os viu passar por ela e os seguiu com os olhos enquanto pegavam um atalho pelo lote vazio e voltavam para o científico. Estava sozinha. Calculava ter quarenta e cinco minutos antes de nosso pai começar a se perguntar se ela já tinha chegado. O acordo era que, se ela fosse treinar com o time de futebol masculino, Samuel a levasse em casa antes das cinco horas.
As nuvens tinham pairado pesadas no céu durante todo o dia, e o frio do final do outono fazia suas pernas e braços se arrepiarem. As corridas em grupo sempre a aqueciam, mas quando ela chegava ao vestiário onde dividia os chuveiros com o time de hóquei começava a tremer até a água quente bater em seu corpo. Mas, no gramado da casa verde, seus arrepios eram de medo também.
Quando os meninos entraram no atalho, ela rolou até a janela do porão na lateral da casa do sr. Harvey. Já tinha pensado em uma história, caso fosse pega. Estava perseguindo um gatinho que tinha visto correr para o meio dos pinheiros. Diria que ele era cinza, que corria rápido, que tinha corrido na direção da casa do sr. Harvey e que ela o tinha seguido sem pensar.
Ela podia ver o interior do porão, onde estava escuro. Tentou a janela, mas o trinco estava fechado por dentro. Teria que quebrar o vidro. Pensando rápido, ficou preocupada com o barulho, mas tinha ido longe demais para parar agora. Pensou no meu pai em casa, sempre de olho no relógio perto de sua cadeira, e tirou o casaco de moletom e o enrolou em volta dos pés. Sentando-se, apoiou o corpo com os braços e depois chutou uma vez, duas vezes, três vezes com os dois pés até a janela se partir — um barulho abafado.
Com cuidado, passou o corpo para dentro, procurando na parede um apoio para o pé, mas tendo que pular os últimos metros e aterrissar em cima do vidro partido e do concreto.
O cômodo parecia limpo e varrido, diferente do nosso próprio porão, onde montes de caixas com nomes de feriados — OVOS DE PÁSCOA E GRAMA VERDE, ESTRELA DE NATAL/ENFEITES — nunca voltavam para cima das prateleiras que meu pai tinha construído.
O ar frio de fora entrou,e ela sentiu o vento em seu pescoço empurrando- a para fora do semicírculo de vidro partido em direção ao resto do modo. Viu a poltrona e uma mesinha do lado. Viu o grande despertador com números luminosos em cima da prateleira de metal. Eu queria guiar os olhos dela para o forro, onde ela encontraria os ossos dos animais, mas sabia também que, por mais que tivesse desenhado o olho de uma mosca em papel milimetrado e de ter tirado a nota máxima na aula do sr. Botte naquele outono, ela pensaria que os ossos eram meus. Por isso fiquei contente quando ela não chegou perto deles.
Apesar da minha incapacidade de aparecer ou sussurrar, empurrar ou conduzir, Lindsey, sozinha, sentiu alguma coisa. Alguma coisa carregava o ar frio e úmido do porão e a fazia se encolher. Ela estava a poucos metros da janela aberta, sabendo que de qualquer maneira andaria mais para dentro da casa, e que de qualquer maneira tinha que se acalmar e se concentrar em procurar pistas;mas naquela hora,por um instante,pensou em Samuel correndo na sua frente, achando que iria encontrá-la em sua última volta, depois correndo de volta em direção ao colégio, achando que iria encontrá-la do lado de fora, depois supondo, mas com um primeiro sinal de dúvida, que ela estava tomando banho, então ele também estaria tomando banho agora, e depois esperando por ela antes de fazer qualquer outra coisa. Quanto tempo ele poderia esperar? Enquanto seus olhos subiam as escadas até o primeiro andar antes de seus pés irem atrás, ela desejou que Samuel estivesse ali para descer atrás dela e acompanhar seus movimentos, apagando sua solidão enquanto prosseguia, seguindo seus passos. Mas não tinha contado para ele de propósito — não tinha contado para ninguém. O que ela estava fazendo passava dos limites — era um crime — e ela sabia disso.
Se pensasse a respeito depois, diria que tinha precisado de ar e que por isso tinha subido as escadas. Pequenos fragmentos de poeira branca se juntaram nos bicos dos seus sapatos enquanto ela subia as escadas, mas ela não percebeu.
Girou a maçaneta da porta do porão e chegou ao primeiro andar. Apenas cinco minutos tinham passado. Ela ainda tinha quarenta, ou assim pensava. Ainda havia um pouco de luz entrando pelas persianas fechadas. Em pé, hesitante, naquela casa idêntica à nossa, ela ouviu o som seco do Evening Bulletin batendo na varanda e o entregador tocando a campainha de sua bicicleta ao passar.
Minha irmã disse a si mesma que estava dentro de uma série de cômodos e espaços que, percorridos metodicamente, poderiam produzir aquilo de que precisava, fornecer-lhe o único troféu que poderia levar para casa para nosso pai, conseguindo assim se libertar de mim. Sempre a competição, mesmo entre os vivos e os mortos. Viu as pedras do piso da entrada — do mesmo verde-escuro e cinza das nossas — e imaginou-se engatinhando atrás de mim quando era bebê e eu estava começando a aprender a andar. Então viu meu corpo de bebê se afastando encantado para longe dela, para o cômodo ao lado, e lembrou-se de sua própria sensação de se lançar, de dar os primeiros passos enquanto eu a provocava da ala de estar.
Mas a casa do sr. Harvey era muito mais vazia do que a nossa, e não havia nenhum tapete para tornar a decoração mais calorosa. Lindsey saiu das pedras e pisou no chão de pinho polido do que na nossa casa era a sala de estar. Ela fazia ecos no hall de entrada aberto, recebendo de volta o som de rida um de seus movimentos.
Não conseguia fazer as lembranças pararem de esbarrar nela. Todas causavam um estrondo brutal. Buckley descendo as escadas montado nos meus ombros. Nossa mãe me equilibrando enquanto Lindsey olhava, invejosa por eu poder alcançar o alto da árvore de Natal com a estrela de prata nas mãos. Eu deslizando corrimão abaixo e dizendo-lhe para vir comigo. Nós duas implorando para nosso pai nos dar os quadrinhos depois do jantar. Nós todos correndo atrás de Holiday que latia sem parar. E os incontáveis sorrisos exaustos que enfeitavam artificialmente nossos rostos para fotos de aniversário, e fotos de férias, e fotos depois do colégio. Duas irmãs vestidas de forma idêntica, de veludo ou xadrez ou amarelo na cada por algo pesado, uma mosca presa no funil de uma teia de aranha, a seda grossa se amarrando à sua volta. Sabia que nosso pai tinha entrado no milharal possuído por alguma coisa que estava se infiltrando dentro dela agora. Queria levar de volta pistas que ele pudesse usar como escada para subir de volta até ela, ancorá-lo com fatos, lastrear suas frases para Len. Em vez disso, via-se caindo atrás dele em um abismo sem fundo.
Tinha vinte minutos.
Dentro daquela casa minha irmã era o único ser vivo, mas ela não estava sozinha, e eu não era sua única companhia. A arquitetura da vida do meu assassino, os corpos das meninas que ele tinha deixado para trás, começou a se revelar para mim agora que minha irmã estava naquela casa. Eu estava no céu. Comecei a dizer o nome delas:
Jackie Meyer. Delaware, 1967. 13 anos.
Uma cadeira derrubada, com os fundos de frente para o quarto. Deitada encolhida virada para a cadeira, ela vestia uma camiseta listrada e mais nada. Perto de sua cabeça, uma pequena poça de sangue.
Flora Hernandez. Delaware, 1963. 8 anos.
Ele só queria tocar nela, mas ela gritou. Uma menina pequena para sua idade. Sua meia e seu sapato esquerdos foram encontrados depois. O corpo nunca foi recuperado. Os ossos estavam enterrados no porão de terra de uma velha casa de apartamentos.
Leah Fox. Delaware, 1969. 12 anos.
Em um sofá forrado debaixo do acesso a uma autoestrada, ele a matou, muito silenciosamente. Adormeceu em cima dela, ninado pelo som dos os zunindo acima deles. Só dez horas depois, quando um sem-teto bateu na pequena cabana que o sr. Harvey tinha construído com portas abandonadas foi que ele começou a empacotar suas coisas e o corpo de Leah Fox.
Sophie Cichetti, Pensilvânia, 1960. 49 anos.
Proprietária, ela havia dividido seu apartamento de cima em dois construindo uma parede de gesso. Ele gostava da janela em meia-lua que isso Páscoa. Segurávamos cestas de coelhinhos e ovos que tínhamos mergulhado em corante. Sapatos de verniz com tiras e fivelas duras. Sorrindo muito enquanto nossa mãe tentava achar o foco de sua máquina fotográfica. As fotos sempre fora de foco, nossos olhos pontos vermelhos brilhantes. Nenhuma delas, esses artefatos deixados para a minha irmã, guardariam para a posteridade os instantes antes e os instantes depois, quando nós duas meninas brincávamos na casa ou brigávamos por algum brinquedo. Quando éramos irmãs.
Foi então que ela viu. Minhas costas correndo para o cômodo seguinte. Nossa sala de jantar, a sala onde ficavam as casas de bonecas prontas dele. Eu era uma criança correndo bem na sua frente.
Ela saiu correndo atrás de mim.
Perseguiu-me pelos cômodos do primeiro andar e, embora estivesse treinando muito para o futebol, foi incapaz de recuperar o fôlego ao voltar para o hall de entrada. Começou a ficar tonta.
Pensei no que minha mãe sempre tinha dito sobre um menino no nosso ponto de ônibus que tinha o dobro da nossa idade, mas ainda estava na primeira série.
— Ele não conhece sua própria força, então precisam ter cuidado com ele. — Ele gostava de dar abraços de urso em qualquer pessoa que fosse legal com ele, e era possível ver seu ridículo amor inundar seu rosto e despertar seu desejo de tocar. Antes de ele ser retirado do colégio normal e mandado para algum outro lugar onde ninguém falava a respeito, tinha abraçado uma menininha chamada Daphne e apertado tanto que ela caiu na rua quando ele a soltou. Eu estava empurrando o Meio-Termo com tanta força para chegar até Lindsey que de repente senti que poderia machucá-la quando minha intenção era ajudar.
Minha irmã ficou sentada nos largos degraus no fundo do hall de entrada e fechou os olhos, concentrando-se em recuperar o fôlego, em por que estava na casa do sr. Harvey para começo de conversa. Sentia-se cercada, e o aluguel era barato. Mas ela falava demais sobre o filho e insistia em ler para ele poemas de um livro de sonetos. Ele fez amor com ela na sua metade do quarto dividido, esmagou seu crânio quando ela começou a falar, e levou seu corpo para a margem do riacho ali perto.
Leidia Johnson. 1960. 6 anos.
Condado de Buck, Pensilvânia. Ele escavou uma caverna com teto abaulado dentro de uma colina perto da pedreira e esperou. Ela foi a mais nova.
Wendy Richter. Connecticut, 1971. 13 anos.
Ela estava esperando o pai do lado de fora de um bar. Ele a estuprou nos arbustos e depois a estrangulou. Dessa vez, quando voltou a si, saindo do estupor que muitas vezes durava algum tempo, ouviu barulhos. Virou o rosto da menina morta na direção do seu e, quando as vozes se aproximaram, mordeu sua orelha.
— Desculpe, cara — ouviu dois bêbados dizerem enquanto entravam nos arbustos próximos para fazer xixi.
Eu agora via essa cidade de túmulos flutuantes, frios e castigados pelo vento, para onde iam as vítimas de assassinato na mente dos vivos. Podia ver suas outras vítimas ocupando sua casa — aqueles restos de lembrança deixados para trás antes de elas fugirem desta terra —, mas naquele dia as deixei ir embora e fui para junto da minha irmã.
Lindsey se levantou no instante em que tornei a prestar atenção nela. Juntas, nós duas subimos as escadas. Ela se sentia como os zumbis dos filmes que Samuel e Hal adoravam. Um pé na frente do outro, olhando para a frente com um olhar vazio. Chegou ao que era o quarto dos meus pais na nossa casa e não encontrou nada. Percorreu o hall do andar de cima. Nada. Então entrou no que tinha sido meu quarto na nossa casa, e encontrou o do meu assassino.
Era o quarto menos desocupado da casa, e ela fez o possível para não tirar nada do lugar. Passou a mão entre os suéteres empilhados na prateleira, preparada para encontrar qualquer coisa em seu interior aquecido — uma faca, uma arma, uma caneta Bic mastigada por Holiday. Nada. Mas então, enquanto ouvia alguma coisa, mas não conseguia identificar o que era, ela se virou para a cama e viu a mesa de cabeceira e, bem dentro do círculo de luz de um abajur deixado aceso, o caderno de desenho dele. Correu para lá e ouviu outro som, de novo, sem juntar os dois sons. Carro chegando. Carro freando com um rangido. Porta do carro batendo.
Virou as páginas do caderno e viu os desenhos feitos à tinta de vigas e suportes ou torretas e plataformas, e viu as medidas e anotações, nenhuma das quais significava nada para ela. Então, enquanto virava a última página, pensou ouvir passos do lado de fora e muito perto.
Enquanto o sr. Harvey girava a chave na fechadura da sua porta da frente, ela viu o leve desenho a lápis na página à sua frente. Era um pequeno desenho de galhos acima de um buraco escavado, um detalhe mais para o lado de uma prateleira e de como uma chaminé podia eliminar a fumaça de uma fogueira, e a coisa que chamou sua atenção: em uma caligrafia fina e angulosa ele tinha escrito "milharal de Stolfuz". Não fossem os artigos de jornal depois da descoberta do meu cotovelo, ela não teria sabido que o milharal pertencia a um homem chamado Stolfuz. Eu tinha morrido dentro daquele buraco; eu tinha gritado e lutado e perdido.
Ela arrancou a página. O sr. Harvey estava na cozinha preparando algo para comer — a salsicha de que mais gostava, uma tigela de uvas verdes doces. Ouviu uma tábua ranger. Retesou o corpo. Ouviu outra e suas costas se levantaram e se expandiram com súbita compreensão.
As uvas caíram no chão para serem esmagadas pelo pé esquerdo, enquanto minha irmã no quarto de cima pulava para as persianas de alumínio e destrancava a janela emperrada. O sr. Harvey subiu as escadas dois degraus de cada vez, e minha irmã rasgou a tela, pulando para o telhado da varanda e rolando para baixo enquanto ele chegava no hall de cima e vinha voando em sua direção. A calha quebrou quando o corpo dela passou. Quando ele chegou em seu quarto, ela caiu em cima dos arbustos e das sarças e da terra.
Mas ela estava intacta. Gloriosamente intacta. Gloriosamente jovem. Levantou-se no instante em que ele chegava na janela para pular para o outro lado. Mas ele parou. Viu-a correndo em direção ao sabugueiro. O número serigrafado em suas costas gritava para ele. 5! 5! 5!
Lindsey Salmon com sua camisa de futebol.
Samuel estava sentado com meus pais e vovó Lynn quando Lindsey chegou em casa.
— Ah, meu Deus — disse minha mãe, a primeira a vê-la através das pequenas janelas quadradas que emolduravam os dois lados da nossa porta da frente.
E quando minha mãe abriu a porta Samuel já tinha corrido para preencher o espaço aberto, e ela entrou, sem olhar para minha mãe nem mesmo para meu pai que se aproximava mancando, direto para o abraço de Samuel.
— Meu Deus, meu Deus, meu Deus — disse minha mãe enquanto constatava a sujeira e os cortes.
Minha avó veio postar-se ao seu lado.
Samuel pôs a mão na cabeça da minha irmã e alisou seus cabelos.
— Onde você estava?
Mas Lindsey se virou para nosso pai, tão diminuída agora — pequena,
mais fraca do que esta criança zangada. O quanto ela estava viva tinha me atormentado naquele dia.
— Papai?
— O que foi, querida?
— Eu fui lá. Eu entrei na casa dele. — Ela estava tremendo um pouco e
tentando não chorar.
Minha mãe recuou:
— Você o quê?
Mas minha irmã não olhou para ela, nenhuma vez sequer.
— Eu trouxe isso para você. Achei que pudesse ser importante.
Ela havia guardado o desenho na mão, amassado com força, formando uma bola. Aquilo tinha dificultado sua aterrissagem, mas ela havia escapado mesmo assim.
Uma expressão que meu pai tinha lido naquele dia surgiu na sua cabeça nessa hora. Ele a disse em voz alta enquanto olhava Lindsey nos olhos.
— Não há nenhuma condição à qual alguém se ajuste tão rápido quanto um estado de guerra.
Lindsey entregou-lhe o desenho.
— Vou pegar o Buckley — disse minha mãe.
— Você não quer nem olhar para isso, mãe?
— Não sei o que dizer. Sua avó está aqui. Preciso fazer compras, cozinhar
um peru. Ninguém parece perceber que temos uma família. Temos uma família, uma família e um filho, e eu estou indo.
Vovó Lynn acompanhou minha mãe até a porta dos fundos, mas não tentou detê-la.
Depois que minha mãe saiu, minha irmã estendeu a mão para Samuel. Meu pai viu o que Lindsey tinha visto na caligrafia fina e angulosa do sr. Harvey: a possível planta baixa do meu túmulo. Levantou os olhos.
— Você acredita em mim agora? — perguntou ele a Lindsey.
— Acredito, papai. Meu pai — muito agradecido — precisava dar um telefonema.
— Pai — disse ela.
— O quê?
— Acho que ele me viu.
Eu nunca poderia ter imaginado uma bênção maior para mim do que a segurança física da minha irmã naquele dia. Enquanto ia embora do mirante, eu tremia com o medo que tinha sentido, com a possibilidade de sua perda na Terra, não apenas para meu pai, minha mãe, Buckley e Samue. Mas, egoisticamente, sua perda na Terra para mim.
Franny caminhou na minha direção vinda da lanchonete. Mal levante: a cabeça.
— Susie — disse ela. — Tenho uma coisa para lhe dizer.
Ela me conduziu até debaixo de um dos postes antiquados e depois para longe da luz. Entregou-me um pedaço de papel dobrado em quatro.
— Quando se sentir mais forte, olhe o papel e vá até lá.
Dois dias mais tarde, o mapa de Franny me levou a um campo pelo qual eu sempre passava, mas que, embora fosse lindo, nunca tinha explorado. O desenho tinha uma linha pontilhada indicando um caminho. Procurando com nervosismo, busquei uma entrada nas intermináveis fileiras de pés de trigo. Logo na minha frente eu a vi, e quando comecei a andar entre as fileiras o papel se dissolveu na minha mão.
Eu podia ver uma velha e linda oliveira logo em frente.
O sol estava alto, e na frente da oliveira havia uma clareira. Esperei apenas um instante antes de ver o trigo do outro lado começar a pulsar com a chegada de alguém mais baixo do que os caules.
Ela era pequena para sua idade, como tinha sido na Terra, e usava um vestido florido puído na bainha e nos punhos.
Ela parou e olhamos uma para a outra.
— Eu venho aqui quase todo dia — disse ela. — Gosto de escutar os sons. Percebi que ao nosso redor o trigo farfalhava enquanto se movia com o vento.
— Você conhece a Franny? — perguntei. A menininha assentiu solenemente.
— Ela me deu um mapa deste lugar.
— Então você deve estar pronta — disse ela, mas também estava no seu céu, e isso exigia rodopios e sua saia voando em círculos. Sentei-me no chão debaixo da árvore e fiquei olhando para ela.
Quando ela terminou, veio na minha direção e se sentou, sem fôlego.
— Eu era a Flora Hernandez — disse ela. — Qual era o seu nome?
Eu lhe disse, e então comecei a chorar de alívio, por conhecer outra
menina que ele havia matado.
— As outras vão chegar daqui a pouco — disse ela.
E enquanto Flora rodopiava, outras meninas e mulheres chegaram do
campo em todas as direções. A dor de cada uma de nós foi se derramando dentro das outras como água passando de copo em copo. Todas as vezes que eu contava a minha história, perdia um pedacinho, uma minúscula gota de dor. Foi naquele dia que eu soube que queria contar a história da minha família. Porque o horror na Terra é real e acontece todos os dias. É como uma flor ou como o sol; não pode ser contido.

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora