Capítulo 7

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Está vendo ela? — perguntou Buckley para Nate enquanto subiam as escadas, com Holiday atrás. — É a minha irmã.
— Não. — disse Nate.
— Ela foi embora por um tempo, mas agora voltou. Corrida!
E os três — dois meninos e um cachorro — subiram correndo o resto da
grande curva da escada.
Eu nunca sequer tinha me permitido ter saudades de Buckley, com medo
de que ele pudesse ver minha imagem em um espelho ou na tampa de uma
garrafa. Como todo mundo, eu estava tentando protegê-lo.
— Ele é novo demais — disse eu para Franny.
— De onde você acha que vêm os amigos imaginários? — disse ela.
Durante alguns minutos, os dois meninos ficaram sentados debaixo do
decalque emoldurado de um túmulo, do lado de fora do quarto dos meus
pais. Era o túmulo de um cemitério londrino. Minha mãe tinha contado para
Lindsey e eu a história de como meu pai e ela queriam coisas para pendurar
nas paredes e uma velha que conheceram durante a lua-de-me tinha lhes
ensinado a fazer decalques de túmulos. Depois dos meus 9 anos a maioria dos
decalques tinha sido guardada no porão, e os espaços em nossas paredes
suburbanas tinham sido ocupados por gravuras abstratas brilhantes que
pretendiam estimular as crianças. Mas Lindsey e eu adorávamos os decalques
de túmulos, especialmente aquele debaixo do qual Nate e Buckley estavam
sentados naquela tarde.
Lindsey e eu costumávamos nos deitar no chão debaixo dele. Eu fingia ter
o cavaleiro retratado, e Holiday era o cão fiel deitado a seus pés. Lindsey era a
mulher que ele tinha deixado. Por mais sério que fosse o início, a brincadeira
sempre terminava em risos. Lindsey dizia ao cavaleiro morto que uma mulher
precisava tocar a vida, que ela não podia ficar presa pelo resto da existência a
um homem congelado no tempo. Eu fingia exaltação e raiva, mas nunca por muito tempo. Ela acabava descrevendo seu novo imante: o açougueiro gordo
que lhe dava pedaços de carne de primeira, o ágil ferreiro que lhe fazia
ganchos.
— Você está morto, cavaleiro — dizia ela. — É hora de tocar a vida.
— Ontem à noite ela entrou aqui e beijou a minha bochecha — disse
Buckley.
— Beijou nada.
— Beijou sim.
— Foi?
— Foi.
— Você contou para a sua mãe?
— É segredo — disse Buckley. — A Susie me disse que ainda não está
preparada para falar com eles. Quer ver outra coisa?
— Claro — disse Nate.
Os dois se levantaram e foram para o lado da casa reservado às crianças,
deixando Holiday adormecido debaixo do decalque do túmulo.
— Vem ver — disse Buckley.
Estavam no meu quarto. O retrato da minha mãe tinha sido levado por
Lindsey. Depois de pensar um pouco, ela tinha voltado para pegar o broche
"Hippy-Dippy Diz Amor" também.
— O quarto da Susie — disse Nate.
Buckley levou o dedo aos lábios. Tinha visto minha mãe fazer isso quando
queria que ficássemos quietos, e agora queria o mesmo de Nate. Ele se deitou
de bruços e acenou para Nate se deitar também, e eles se arrastaram como
Holiday para debaixo da pilha de poeira que era minha cama até meu
esconderijo secreto.
No material esticado na parte de baixo do colchão tinha um buraco, e lá
dentro coisas que eu não queria que ninguém visse. Eu precisava proteger o
buraco de Holiday ou ele ficava arranhando para tentar soltar os objetos. Foi
exatamente o que aconteceu vinte e quatro horas depois de eu sumir. Meus
pais tinham vasculhado meu quarto à procura de um bilhete que explicasse
meu sumiço e deixado a porta aberta. Holiday tinha levado embora as balas
que eu guardava lá dentro. Espalhados debaixo da minha cama estavam os
objetos que eu tinha escondido, e um deles só Buckley e Nate poderiam
reconhecer. Buckley desenrolou um velho lenço do meu pai e ali estava ele: o
graveto manchado de sangue.
No ano anterior, Buckley, então com 3 anos, tinha engolido o graveto.
Nate e ele estavam enfiando pedras dentro de seus narizes no nosso quintal
dos fundos, mas Buckley tinha encontrado um pequeno graveto debaixo do
carvalho em que minha mãe amarrava uma das pontas do varal. Pôs o galho
na boca como um cigarro. Eu o via do telhado do lado de fora do meu quarto,
onde estava sentada pintando as unhas dos pés com o Glitter Magenta da
Clarissa e lendo a Seventeen.
Eu sempre era incumbida da tarefa de vigiar o irmão menor. Lindsey não
era considerada grande o suficiente. Além disso, era um cérebro em expansão,
o que queria dizer que tinha liberdade para fazer coisas como passar aquela
tarde de verão fazendo desenhos detalhados do olho de uma mosca em um
papel milimetrado com sua caixa de cento e trinta lápis de cor.
Não estava calor demais lá fora e era verão, e eu ia passar o tempo
confinada em casa me embelezando. Tinha começado o dia tomando banho,
lavando os cabelos e tomando banho de vapor. No telhado, me sequei ao
vento e passei laquê.
Tinha aplicado duas camadas de Glitter Magenta quando uma mosca
pousou no aplicador do esmalte. Ouvi Nate fazer barulhos de provocação e
ameaça, e olhei para a mosca com os olhos apertados tentando distinguir
rodos os quadrantes de seus olhos que Lindsey estava colorindo dentro de
casa. Uma brisa soprou, fazendo meus pedaços de unha cortada voarem rara
cima das minhas coxas.
— Susie! Susie! — Nate estava gritando.
Olhei para baixo e vi Buckley no chão.
Era sobre esse dia que eu sempre contava a Holly quando falávamos
sobre salvamento. Eu acreditava que fosse possível; ela não.
Passei as pernas para o outro lado e desci pela minha janela aberta, com
um dos pés aterrissando em cima do banquinho de costura e o outro
imediatamente na frente do primeiro em cima do tapete trançado e depois
caindo de joelhos e me levantando como uma atleta. Desci o corredor a toda e
deslizei corrimão abaixo como tinhamos sido proibidos de fazer. Gritei o nome
de Lindsey e depois me esqueci dela, corri para o quintal dos fundos passando pela varanda fechada com tela e pulei por cima da mureta do cachorro até o
carvalho.
Buckley estava sufocando, seu corpo dava pinotes, e eu o carreguei com
Nate atrás até a garagem, onde o precioso Mustang do meu pai ficava
estacionado. Eu tinha visto meus pais dirigindo, e minha mãe tinha me
mostrado como passar um carro hidramático da posição neutra para a posição
de ré. Pus Buckley no banco de trás e peguei as chaves dentro do vaso de
barro vazio em que meu pai escondia. Dirigi até o hospital acima do limite de
velocidade o tempo todo.
Queimei o freio de mão, mas ninguém pareceu se importar com isso.
— Se ela não estivesse lá — disse o médico mais tarde para minha mãe — a senhora teria perdido seu menininho.
Vovó Lynn previu que eu teria uma vida longa por ter salvado a do meu irmão. Como sempre, vovó Lynn estava errada.
— Uau — disse Nate, segurando o graveto, maravilhado ao ver como com
o tempo o sangue vermelho ficava preto.
— É — disse Buckley. Seu estômago se revirou com a lembrança.
Lembrança da imensa dor que ele tinha sentido, de como os rostos dos
adultos mudavam em volta dele na imensa cama de hospital. Ele só os tinha
visto tão sérios uma outra vez. Mas enquanto no hospital seus olhos estavam
preocupados e depois não estavam mais, atravessados por tanta luz e alívio a
ponto de contagiá-lo, agora os olhos dos nossos pais tinham se apagado e
nunca mais voltado.
Senti-me fraca no céu naquele dia. Inclinei-me para trás no mirante e
meus olhos se abriram. Estava escuro, e na minha frente havia um grande
prédio em que eu nunca tinha entrado.
Eu tinha lido James e o pêssego gigante quando era pequena. O prédio
parecia a casa de seus tios. Enorme, escuro e vitoriano. Tinha um belvedere.
Durante um instante, enquanto meus olhos se acostumavam com a escuridão, pensei ver uma longa fila de mulheres no belvedere apontando para mim. Mas um segundo depois vi outra coisa. Eram corvos alinhados, com os bicos segurando gravetos tortos. Quando me levantei para voltar para o duplex, eles levantaram voo e me seguiram. Será que meu irmão tinha realmente me visto de alguma maneira, ou será que ele era apenas um menininho contando lindas mentiras?

Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado Onde histórias criam vida. Descubra agora